O ensino de arquitetura no Brasil completou na última sexta-feira, 12 de agosto de 2016, 200 anos de história. A arquitetura é uma das profissões mais antigas do mundo. As técnicas de construção foram transmitidas oralmente, de geração em geração entre os praticantes do ofício, ao longo do tempo. No país, o ensino acadêmico começou a partir da assinatura do decreto de criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, por D. João VI. De lá para cá, naturalmente, muita coisa mudou. Seja na forma de ensinar, de construir e até mesmo de pensar a arquitetura, seja na forma como a sociedade se organiza, habita e ocupa os espaços.
Hoje, a arquitetura e urbanismo se veem diante de uma série de desafios, que vão desde o reconhecimento mais amplo da importância do papel dos profissionais pela sociedade ao frequente descaso com projetos completos em obras públicas, passando por dilemas éticos como a reserva técnica. Os arquitetos e urbanistas são fundamentais para colaborar para amenizar grandes problemas urbanos como a falta de integração entre as cidades, a mobilidade urbana, o déficit habitacional.
Esse cenário se reflete no ensino. As universidades buscam uma formação que possa acompanhar não só os avanços tecnológicos em relação a técnicas e materiais de construção, mas que dê protagonismo aos arquitetos e urbanistas, possibilitando que atuem levando em considerando questões como o bem-estar social, o desenvolvimento urbano e a sustentabilidade.
A comemoração dos 200 anos do ensino de arquitetura e urbanismo no Brasil é, além de uma forma de resgatar as origens dos cursos de graduação, uma pausa para refletir sobre a formação que queremos para os profissionais que construirão nossas casas e cidades nos séculos seguintes.
A seguir, um pouco dessa história:
AS ORIGENS
“Atendendo ao bem comum, que provem aos meus fiéis vassalos de se estabelecer no Brasil uma Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios em que se promova, e difunda a instrução, e conhecimentos indispensáveis aos homens (…)”*, decretou D. João VI, em 12 de agosto de 1816, dando origem ao primeiro curso de arquitetura do Brasil. Fundada durante missão artística francesa ao país, então sede do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios também oferecia os cursos de pintura e escultura.
De acordo com a professora do Prourb/UFRJ Margareth da Silva Pereira, nos séculos XVIII e XIX, o arquiteto é considerado um artista, o que explica a proximidade com as Belas Artes. “Até 1816, não havia no país uma escola ou formação específica para arquitetos. A própria palavra arquiteto não circulava por aqui. A assinatura do decreto foi um marco jurídico, político e administrativo para a formalização do ensino”, explicou.
História da Arquitetura, Construção e Perspectiva, Estereotomia (técnica para corte de materiais de construção), Desenho, Cópia de Modelos, Estudo de escalas e Composição eram algumas das matérias estudadas pelos primeiros arquitetos. Os professores da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios foram grandes nomes da cena artística na França pós-Napoleão. Entre eles, os pintores Jean-Baptiste Debret e Nicolas-Antoine Taunay e o arquiteto Auguste Henry Victor Grandjean de Montigny, um dos vencedores do Prix de Rome, principal reconhecimento aos artistas da época.
Em 1822, com a Independência, a escola recebeu o nome de Academia Imperial de Belas Artes e, em 5 de novembro de 1826, uma nova casa, inaugurada por D. Pedro I. A sede da Academia, situada na Avenida Passos, no Centro do Rio, foi projetada por Grandjean de Montigny. O prédio foi demolido durante o Estado Novo e pórtico, trasladado para o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, onde está situado atualmente.
Um novo decreto de 1937, desta vez de Getulio Vargas, criou o Museu Nacional de Belas Artes, local que abrigou o curso de arquitetura até sua transferência para a cidade universitária, em 1961. A desvinculação da Escola de Belas Artes aconteceu em 1945. As graduações de Arquitetura e de Urbanismo passaram a compor a Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro. Na década de 60, a faculdade foi transferida para seu endereço atual, na Ilha do Fundão, ocupando um prédio projetado pelo arquiteto Jorge Machado Moreira.
Em relação ao urbanismo, a professora Margareth da Silva Pereira contou que houve diversas tentativas de incluí-lo no ensino da arquitetura. “Na década de 20, em São Paulo, tentou-se criar uma cadeira de urbanismo e, em 1928, a Associação Brasileira de Urbanismo. No começo da década de 30, o arquiteto Lúcio Costa propôs uma reforma curricular na Escola de Belas Artes, que incluía uma disciplina de urbanismo e outra de arquitetura paisagística. No entanto, a reforma fracassou”, informou.
“Embora não seja muito lembrado, o curso de urbanismo no Brasil surgiu com a Universidade do Distrito Federal em 1935 e, em 1939, como pós-graduação. Era formado por uma geração preocupada com a redução das desigualdades e a educação para uma vida em cidade”, acrescentou Margareth Pereira. Com professores como os arquitetos Lúcio Costa e Carlos Leão, a Universidade do Distrito Federal, até então no Rio de Janeiro, formou nomes como Carmem Portinho e Paulo Camargo.
A Universidade, no entanto, foi fechada por Getulio Vargas, em 1939. “Depois dessa data, surgiram alguns cursos de formação rápida, no pós-guerra, em Belo Horizonte, mas o urbanismo só volta a ter destaque no ensino de arquitetura com a reforma universitária da década de 70”, informou a professora do Prourb. Com a Reforma do Ensino Superior, aprovada pelo Conselho Federal de Educação, em 25 de junho de 1969, os cursos de arquitetura e urbanismo são unificados, criando o modelo que vigora até hoje*, de acordo com o pesquisador Joany Machado.
Atualmente, há 20 cursos de Arquitetura e Urbanismo no Rio de Janeiro, e outros cinco aguardam reconhecimento pelo MEC. No país são 418 cursos de graduação, segundo informações do Sistema de Inteligência Geográfica do CAU (IGEO).
“Ao resgatar a história do ensino da arquitetura no Brasil, devemos refletir sobre os desafios atuais da formação do arquiteto e urbanista. É importante para discutir os caminhos para o futuro do ensino e, dessa forma, cumprir uma de nossas funções como Conselho, que é promover a educação permanente dos arquitetos e urbanistas”, afirmou o presidente do CAU/RJ, Jerônimo de Moraes.
200 ANOS DEPOIS
Do decreto de D. João VI ao BIM (Building Information Modeling – Modelagem de Informações da Construção), passando pela arquitetura moderna, houve muitas transformações, não apenas no ensino. A forma como a sociedade se organiza também mudou, impactando a formação das cidades e, consequentemente, a arquitetura e o urbanismo.
“Se décadas atrás havia uma migração do campo e a construção das cidades, hoje a população vive, predominantemente, em áreas urbanas, mas em cidades precárias. Também houve mudanças estruturais com a redução do número de filhos por família”, disse o coordenador da Comissão de Ensino e Formação (CEF) do CAU/RJ, Leonardo Mesentier. “Há, ainda, o desenvolvimento da tecnologia e da ciência, que acelera o ritmo das pesquisas”, acrescentou.
Todas essas transformações colocam o ensino da arquitetura e do urbanismo diante de vários desafios. “Os conteúdos se renovam e se expandem de um ano para o outro. A questão é como lidar com as disciplinas de forma que a carga horária do curso não seja incompatível. Há uma necessidade de adaptar a educação profissional, no sentido de atualizar os métodos de ensino a práticas mais contemporâneas e preparar o aluno, inclusive, para as pressões do campo ético em um mercado de trabalho que atropela os planos e projetos completos”, avaliou Mesentier.
Para o diretor da Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (Abea), vice-reitor de extensão e professor da Universidade Estácio de Sá, Carlos Eduardo Nunes Ferreira, a graduação não tem a função de ensinar todos os conteúdos, mas de formar um arquiteto “pensador”. “A universidade forma o generalista. Não é possível ampliar o currículo dos cursos para comportar todas as inovações, mas o papel da universidade está mais denso. O ensino da arquitetura e do urbanismo está mais complexo e multidisciplinar”, ponderou.
O diretor da Abea cita a flexibilidade das fronteiras entre os países como outro fator de impacto na formação dos profissionais. “Hoje o arquiteto e urbanista pode trabalhar em qualquer lugar do mundo. A universidade precisa ensinar o aluno a pensar a arquitetura para qualquer contexto, do Complexo ao Alemão ao centro de Xangai”, aponta. “Além disso, atualmente, o modo de trabalho dos arquitetos e urbanistas é muito mais complexo e colaborativo em diversas áreas”, completou.
Os problemas das grandes cidades, como a falta de infraestrutura urbana e déficit habitacional, também estão entre as preocupações dos arquitetos e urbanistas. Cada vez mais, as universidades têm buscado adequar a formação para que os futuros profissionais possam atuar em áreas como a assistência técnica a habitações de interesse social (HIS).
A criação de escritórios-modelos nas universidades para este fim, como previsto pela Lei de Assistência Técnica (Lei 11.888/2008), tem sido objeto de discussão entre universidades e entidades. O assunto vem recebendo atenção dos organizadores do Congresso da UIA 2020 e também será tema do II Fórum CEF-CAU/RJ-Escolas de Arquitetura, que acontece em setembro.
“Os arquitetos e urbanistas de hoje precisam lidar com a realidade das comunidades. Os escritórios-modelos, que algumas universidades já possuem, são uma forma de aplicar o conhecimento produzido na universidade com essa finalidade social, capacitando os estudantes”, defendeu o diretor da Abea, Carlos Eduardo Nunes.
Leia o decreto completo de D. João VI que estabelece a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios.
Via CAU/RJ