'Choreographies' apresenta a construção arquitetônica nos desenhos animados dos EUA e URSS para a Trienal de Lisboa

O projeto Choreographies (Coreografias), dos chilenos Pedro Alonso e Hugo Palmarola, busca apresentar a 'construção' conceitual dos canteiros de obra, em sua dimensão política e cultural. Por meio de uma comparação crítica de filmes cômicos e animações infantis realizadas nos Estados Unidos e na União Soviética entre 1921 e 1980, a obra mostra que estes lugares não são somente onde se constroem os edifícios, mas também, lugares onde a ideologia e a imaginação combinam através de coreografias definidas cuidadosamente por gruas, no movimento pendular de vigas de aço nos EUA e de painéis flutuantes na URSS. Estes dois elementos simbolizam a construção do mundo moderno, o otimismo tecnológico da industrialização, a relevância dos processos produtivos sobre os edifícios terminados e o status dos trabalhadores em tais processos - soldadores, montadores e operadores de gruas - em oposição ao papel convencional que as narrativas da modernidade atribuem à figura do arquiteto.

Na 4° edição da Trienal de Lisboa 2016, estas Coreografias serão apresentadas através da projeção simultânea de dois filmes em loop, que contém fragmentos selecionados de alguns segundos das distintas animações, para assim expor tanto as similaridades como as diferenças entre os EUA e a URSS. A seleção enfatizará a encenação dos canteiros de obra nestas animações e no cinema em geral, especialmente em gags visuais em cadeia (tayloristas) que são desenvolvidos além de um contexto da 'montagem em cadeira' de vigas e painéis dentro de lugares de construção.

A comédia protagonizada por Harold Lloyd, Never Weaken (1921), foi o filme inaugural deste gênero nos Estados Unidos. Nele, uma viga de aço entra casualmente pela janela de um edifício e leva o protagonista para o alto, ele faz todo o tipo de piruetas com as vigas, tudo isto no marco da construção dos arranha-céus na prosperidade econômica dos anos vinte. Posteriormente, este filme foi tido como referência por diversos estúdios de animação como Looney Tunes, Walt Disney e Fleischer. Seus reconhecidos personagens realizaram, então, proezas similares as de Llody, é o caso de Bosko, Mickey Mouse, Popeye, Porky, Mr. Magoo, Bugs Bunny, Tom and Jerry, Daffy Duck, e Droopy, dentro de uma grande quantidade de curtas, como Hold Anything (1930), Building a Building (1933), A Dream Walking (1934), Bridge Ahoy (1936), Porky's Building (1937), The Riveter (1940), Rhapsody in Rivets (1941), Nix on Hypnotricks (1941), Construction Mayhem (1949), Homeless Hare (1950), Child Sockology (1953), Tot Watchers (1958), Cat Feud (1958), Pent House Mouse (1960), Base on Bawls (1960), Bad Day at Cat Rock (1965), Skyscraper Caper (1968), Droopy's Restless Night (1980) e Droopy's Good Luck Charm (1980).

Cortesia de Pedro Alonso e Hugo Palmarola

No caso da União Soviética, houve o filme Cheryomushki (1963) - baseado em uma opereta de Dimitri Shostakovich - a obra encarregada de fundar a apologia sobre os novos painéis pré-fabricados de concreto armado, técnica construtiva que começava a ser instalada sob o governo de Nikita Jruschov durante os anos cinquenta. O filme mostrou, inclusive, a frenética dança de um casal sobre um painel que era transportado pelo ar. Este filme, somado a comédia Operation Y and Shurik’s Other Adventures (Operatsiya Y i drugie priklyucheniya Shurika) (1965), foram contemporâneos a algumas animações que trataram dos mesmos temas do painel, como The Story of a Crime (Istoriya odnogo prestupleniya) (1962); Cheryomushki (1963) (a animação de abertura), How the House Was Built to the Kitten (Kak Kotenku Postroili Dom) (1963); Granny's Umbrella (Babushkin zontik) (1969); e I'll get you! (Nú,! pogoduí!) (1976).

How the House Was Built to the Kitten (Kak kotenku postroili dom), URSS, 1963, produzida por Soyuzmultfilm e dirigida por Roman Kachanov.. Imagem Cortesia de Pedro Alonso e Hugo Palmarola

Nestas animações, as vigas de aço e os painéis de concreto armado são representados como elementos que alcançam o céu graças à tecnologia, a construção e a arquitetura. Nos EUA, estas animações valorizam os arranha-céus e seu papel no desenvolvimento do capitalismo. Na Rússia soviética, estes filmes utilizaram os movimentos coreográficos de painéis transportados por gruas, simbolizando o igualitarismo e uma estética crua que retomava alguns princípios do construtivismo, destinada a substituir o Realismo Socialista próprio do regime de Joseph Stalin. Em ambos casos, vigas e painéis foram elementos fundamentais da trama destes filmes, refletindo simultaneamente os dois paradigmas estruturais mais representativos do século XX. Devido a sua função primária, que era entreter, os filmes tiveram êxito ao apresentar de maneira simples e lúdica os lugares de construção como pertencentes a vida cotidiana das cidades, sem estar submetidos ao peso característico que lhes designam os discursos próprios da teoria ou da história da arquitetura e do urbanismo modernos. 

A Dream Walking, EUA, 1934, produzida por Fleischer Studios e dirigida por Dave Fleischer. Imagem Cortesia de Pedro Alonso e Hugo Palmarola
At the Port (V portu), URSS, 1975, produzida por Soyuzmultfilm e dirigida por Inessa Kovalevskaya. Imagem Cortesia de Pedro Alonso e Hugo Palmarola

Nos EUA e na URSS, as vigas e os painéis - presentes nos filmes mencionados - nunca detiveram seu movimento. A única diferença substancial era precisamente o elemento construtivo escolhido em cada caso para representar o capitalismo norte-americano e o comunismo soviético. Este movimento permanente não foi acidental, mas sim central, ao argumento cômico, com piadas que se desenvolviam em torno de temas comuns associados a estes componentes suspensos: acrobacias descuidadas realizadas no alto nas estruturas, saltando ou dançando de viga em viga no estado de sonambulismo e vertigem repentina, todos elementos que podem ser considerados evidências de uma fé absoluta nas novas tecnologias construtivas e suas ideologias. Mas, ao mesmo tempo, reconhece o perigo que estas também representavam. Na medida que estas animações estavam dirigidas a um público geral, e as crianças, estes canteiros de obras com coreografias de vigas e painéis eram também campos de batalha na construção de uma certa consciência social em relação à política e à educação. Vigas e painéis que não somente sustentavam cargas estruturais, mas sim, toda uma gama de pesos culturais e ideológicos. 

Cheryomushki, URSS, 1963, produzida por Lenfilm Studio e dirigida por Gerbert Rappaport. Imagem Cortesia de Pedro Alonso e Hugo Palmarola
Never Weaken, EUA, 1921, protagonizada por Harold Lloyd e dirigida por Fred Newmeyer.. Imagem Cortesia de Pedro Alonso e Hugo Palmarola

Fora do cinema, uma das imagens mais famosas sobre uma viga é a fotografia “Lunch atop a Skyscraper”, que mostra onze trabalhadores almoçando sobre uma grande viga metálica no pavimento 69, durante a construção do Edifício RCA no Rockefeller Center de Nova York em 1932. A imagem - ainda que não espontânea - refletia a precariedade laboral causada pela Grande Depressão quando eram aceitos trabalhos perigosos sem normas de segurança. Coincidentemente desde a mesma década, mas em contraste com esta imagem, os desenhos animados construíram um imaginário oposto. No Dream Walking (1934) Olive Oyl caminha sonâmbula sobre as vigas de uma construção. Vestida somente com uma camisola que se tornava transparente com a luz da lua, Olive Oyl colocava os pés descalços sobre cada viga que aparecia no seu caminho formando uma notável coreografia. Praticamente todos os desenhos animados estadunidenses mencionados parecem insistir no fato de que a viga é um caminho seguro a ser seguido, inclusive com personagens que - por distintas razões - estavam absolutamente inconscientes. Seguindo a ideia de Giorgio Agamben, "como estes personagens dos desenhos animados da nossa infância, que podem caminhar no ar, sempre e quando não percebam; mas, quando se dão conta, somente quando tomam consciência disso, não podem fazer nada a não ser cair" (Giorgio Agamben, Infancy and History: The Destruction of Experience , Verso, Londres-Nova York, 1993 <1978>, p. 16), neste sentido poderíamos dizer que desenhos animados, como a irracional coreografia de caminhada de Olive Oyl sobre as vigas, não se veem obrigados a cair porque neste momento de confiança total na infraestrutura eles precisam de uma consciência reflexiva. Inclusive não caem estando sonâmbulos, eles só se assustam quando despertam. O interessante é a maneira como as vigas e os painéis conformam uma infraestrutura sólida que permite criar um caminho confiável para estadunidenses ou soviéticos, inclusive no meio de um momento inconsciente e perigoso destes canteiros de obra.

Choreographies Dois vídeos simultâneos em loop, 2:56 minutos.
Compilado, editado e produzido
por Paulina Bitran
Créditos:
Pedro Ignacio Alonso e Hugo Palmarola, 2016.
Música: Akai 47 por Nortec Collective, apresenta:Bostich & Fussible (Cortesia de Nacional Records e Canções Nacionais).
Trabalho patrocinado por DIRAC do Ministério de Relações Exteriores de Chile, e a Direção de Artes e Cultura, Vice-reitoria de Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de Chile.

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Cita: "'Choreographies' apresenta a construção arquitetônica nos desenhos animados dos EUA e URSS para a Trienal de Lisboa" ['Choreographies' presenta la construcción arquitectónica en los dibujos animados de EEUU y URSS para la Trienal de Lisboa] 21 Out 2016. ArchDaily Brasil. (Trad. Sbeghen Ghisleni, Camila) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/797830/choreographies-apresenta-a-construcao-arquitetonica-nos-desenhos-animados-dos-eua-e-urss-para-a-trienal-de-lisboa> ISSN 0719-8906

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