A fotografia de arquitetura ganhou, com o novo milênio, uma preponderância exponencial na relação dos arquitetos com a sociedade. O escritório FG+SG tem assumido os desafios da mediatização da arquitetura, sendo hoje uma prática fotográfica premiada e reconhecida internacionalmente. A afirmação progressiva do fotógrafo e arquiteto Fernando Guerra tem acompanhado a produção arquitetônica recente e as suas reportagens fotográficas, difundidas a uma escala global através da plataforma virtual Últimas Reportagens, constituem um ponto de vista privilegiado sobre a arquitetura contemporânea.
A verdade é que a história da fotografia de arquitetura é tão fascinante quanto ambígua. Continuam a faltar-nos critérios consensuais quanto ao seu território disciplinar e objetivos programáticos, configurando uma área da cultura visual amplamente problemática. É a fotografia de arquitetura um género temático da fotografia? Ou pertence a fotografia de arquitetura aos modos de representação da arquitetura?
Estas perguntas não têm uma resposta clara. Sabemos que a cidade foi um dos primeiros motivos da fotografia. O aparente paradoxo entre a condição estática da arquitetura e a perceção de um ambiente urbano em transformação tornaram a metrópole um dos focos fundamentais das câmaras de fotógrafos como Eugène Atget, em Paris, e Alfred Stieglitz, em Nova Iorque. Paradoxo esse que, com O Homem da Câmara de Filmar, de Dziga Vertov de 1929, prometia resolução com a emergência do cinema. Mais tarde, seriam os territórios imprecisos e marginais da metrópole que levariam artistas como Robert Smithson, Dan Graham e Ed Ruscha, a recorrer ao medium da fotografia. Mas, a partir dos anos 1970, fotógrafos como Bernd e Hilla Becher, Thomas Struth e Andreas Gursky continuariam a reflexão artística da condição urbana e territorial contemporânea.
Porém, não seria pela via da arte, com a sua assunção da autonomia do artista, mas pela da arquitetura moderna, que a fotografia de arquitetura se instauraria profissionalmente. Não que os artistas deixassem de contribuir para esse debate, como se comprova desde Alexander Rodchenko até Hiroshi Sugimoto. Mas foi na órbita dos arquitetos e sob a forma contratual de encomenda, de editores de revistas e dos próprios arquitetos, que a fotografia de arquitetura entrou definitivamente na esfera pública. Conhecemos bem as ligações umbilicais entre arquitetos e os fotógrafos que construíram o olhar sobre as suas obras: Le Corbusier com Lucién Hervé, Frank Lloyd Wright com Pedro Guerrero, Richard Neutra com Julius Schulman, ou mais recentemente, Herzog & de Meuron com Thomas Ruff, Zaha Hadid e Peter Zumthor com Heléne Binet, Kazuyo Sejima e Ryue Nishizawa com Walter Niedermayr, ou mesmo uma série de arquitetos-estrela com Iwan Baan. O mesmo se poderá dizer da relação de Fernando Guerra com a obra recente de Álvaro Siza.
A afinidade da arquitetura com a fotografia não se espelha no vínculo entre o arquiteto e o fotógrafo. Grande parte da indefinição e conflitualidade do campo da fotografia de arquitetura hoje parte dessa justaposição das questões culturais e comerciais e das vertentes estéticas e documentais. Entre a independência artística e a natureza da encomenda, entre a liberdade conceptual e a existência de um objeto, os fotógrafos de arquitetura habitam um campo multifacetado.
Mas esta situação não é propriamente nova. Pensemos, no âmbito internacional, em Julius Schulman ou, em Portugal, nos estúdios dos irmãos Novais. Com ambos é possível estabelecer paralelos com o escritório FG+SG. Não apenas na atividade apoiada na encomenda e numa relevante lista de clientes arquitetos, mas igualmente no ímpeto de construir uma perspectiva de uma cultura arquitetónica particular, seja a californiana moderna, seja a portuguesa modernista, seja, em Fernando Guerra, a portuguesa contemporânea, facto esse apontado por vários críticos.
Todavia, importa perceber o trabalho de Fernando Guerra perante os novos desafios da fotografia de arquitetura. A sua prática fotográfica, embora iniciando-se no analógico, responde de modo afirmativo à evolução técnica da fotografia nas últimas décadas, marcada pela afirmação dos novos meios digitais. Só estes permitem a produção massiva de imagens das suas reportagens, tanto ao nível do processo da sua captura nas sessões fotográficas, normalmente compreendendo um dia do amanhecer ao anoitecer, como do seu cuidado tratamento posterior, com os seus processos de seleção, reenquadramento, colagem, apagamento e acerto de contrastes e tonalidade. Toda a máquina de produção da FG+SG, gerida por Sérgio Guerra, implica uma consciência aguda das inauditas possibilidades do mundo digital. A abertura em 2004 da plataforma Últimas Reportagens, com a disponibilização livre e atualização constante de todo o arquivo de imagens, é uma evidência disso.
Fernando Guerra é um fotógrafo da era digital. E isto tem implicações na sua atividade. Desde logo, no encontro do fotógrafo com a obra, como nos diz Nuno Grande, realizado através desse “processo errante, diligente e empírico” que procede por multiplicação dos disparos e atenção ao desenrolar da situação real. Não será por acaso que o fotógrafo não tem interesse em conhecer a obra em antecipação, para não retirar a intensidade da experiência anunciada. O olhar de Fernando Guerra inspeciona, deteta e captura em tempo real, planeia somente numa temporalidade curta, assumindo-se como uma prática experimental alimentada pelo aparelho técnico, das diversas máquinas digitais aos drones. Como refere Ana Vaz Milheiro, a sua prática manifesta um posicionamento num “plano neutral” que, assente num “profundo conhecimento dos skills técnicos”, evita um “juízo de valor” sobre as obras. Fernando Guerra procura incessantemente a fotografia perfeita. O seu mundo perfeito, apresentado em 2008 na exposição comissariada por Luís Urbano, revela-se na composição fotográfica subtraída à obra. Aos arquitetos clientes será oferecido o resultado da produção dessa alquimia que acontece no encontro do edifício que projetaram e viram construir com a visão intuitiva do fotógrafo.
Este momento mágico remete para o que Julius Schulman denominou de “dressing the scene”. Existe no fotógrafo português essa mesma vontade narrativa, um apelo irresistível pelo ficcional. Se Schulman construía a imagem com diversos meios cenográficos, desde atores contratados para encenar a vida moderna americana até enquadramentos vegetais fictícios, Fernando Guerra dá vida à arquitetura, normalmente ainda vazia, explorando uma panóplia de estratégias. A presença continuada do fantasma do próprio fotógrafo, o recurso às pessoas presentes ou convocadas para a sessão fotográfica, a captação de animais que se atravessam na cena, o empréstimo de um automóvel icónico ou mesmo de uma barcaça com o respectivo remador, revelam bem como Fernando Guerra é exímio em desestabilizar a autonomia da arquitetura. As suas fotografias apresentam, muitas vezes, esse contraste de uma realidade pura da arquitetura contaminada por um acontecimento estranho ou inesperado, tornando-as irresistivelmente sedutoras. Talvez isso explique a extensa coleção de capas que vem acumulando.
A exposição Fernando Guerra: Raio X de uma prática fotográfica apresenta o trabalho autoral do fotógrafo português atravessado por uma cartografia da atividade do escritório FG+SG, convocando o seu arquivo de imagens e evidenciando os seus processos de produção. Mostrando a obra fotográfica segundo múltiplos pontos de vista e os seus aparelhos técnicos e modos de fazer, a prática de Fernando Guerra é assim exposta como que submetida a um Raio X.
Ficha Técnica da Exposição
- Programação: Madalena Reis
- Curadoria: Luís Santiago Baptista
- Projeto expositivo: Studio Pedrita
- Construção: Carpintauto
- Design gráfico: Atelier Pedro Falcão
- Infografias: Marta Carvalho
- Críticos convidados: Álvaro Domingues, David Santos, Jorge Figueira, Pedro Gadanho, Susana Ventura
- Som e vídeo: Flávio Pereira
- Debate de encerramento: 7 de outubro | 17:00h
- Texto: Luís Santiago Baptista (texto de folha da exposição)