Após quatro meses de atividades e exposições, ao fim de janeiro se encerra a 11a Bienal de Arquitetura de São Paulo. Caracterizada por uma abordagem descentralizada - talvez mais que qualquer outra Bienal no mundo - a décima primeira edição do evento contou com mais de 80 ações em diferentes locais da cidade, articuladas por quatro exposições principais e um Observatório, que além de reunir trabalhos produzidos por agentes de diferentes regiões do Brasil e do mundo, serve como arquivo e legado da Bienal.
Realizamos uma entrevista com o Diretor de Conteúdo desta edição do evento, o arquiteto Marcos L. Rosa, sobre as principais discussões levantadas nesta Bienal, seu enfoque multidisciplinar e o aspecto descentralizado das atividades e exposições. Leia a seguir.
ArchDaily: Há muita discussão em todo o mundo sobre qual o propósito de uma Bienal de Arquitetura. Para a equipe desta edição, como esse propósito está pautado? Quais os pressupostos de fazer um evento dessa relevância e quem é o público?
Marcos L. Rosa: O título da 11a Bienal - Em Projeto - propõe discutir o lugar da arquitetura, mas também o lugar da Bienal de Arquitetura. Pensamos que a Bienal de Arquitetura nos oferece uma oportunidade de discutir o espaço urbano e sua experiência junto a uma série de outros agentes (não arquitetos) que participam da construção da cidade, de seus espaços e que são aqueles que os vivenciam.
Nosso principal objetivo nesta edição do evento foi buscar entender formas de atuação possíveis do arquiteto nas cidades junto a outros atores visando entender como o arquiteto pode colaborar na qualificação do espaço e da vida urbana. Isso faz sentido sobretudo em uma cidade majoritariamente construída sem a participação de arquitetos. Nos pareceu fundamental primeiro reconhecer práticas e o lugar de fala de agentes que atuam na coprodução urbana, a fim de entender e situar formas de contribuição da arquitetura; assim como dar visibilidade a práticas menos tradicionais da arquitetura que desvelam possibilidades de atuação e oportunidades nas cidades.
Esta abordagem revela nossa vontade de falar sobre os projetos possíveis de arquitetura, colocando o desafio de se discutir aquilo que ele pode ser e significar. A Bienal de Arquitetura é um lugar onde se encontra a abertura e liberdade para se questionar e repensar nossa forma de atuação, apresentando alternativas, reflexão, inspiração.
Para tanto, a 11a Bienal de Arquitetura de São Paulo propôs reposicionar o evento enquanto uma plataforma de pesquisa permanente no intervalo de tempo que a configura. Como tal, apresenta-se como um processo de pesquisa e construção aberta que se conclui em uma série de ações no território articuladas a uma exposição. As ações, ao invés de eventos criados especificamente para a Bienal, são momentos e situações desdobrados de projetos e iniciativas que, em sua grande maioria, já existem na cidade. Acompanha este processo a exposição da Bienal. Ela se apresenta como uma série de arquivos em distintos formatos que revelam o resultado das pesquisas desenvolvidas, somadas às contribuições recebidas em quatro chamadas abertas. Como num inventário de práticas, apresentamos um glossário, necessariamente aberto e não terminado, que ilustra muitas frentes de atuação do arquiteto na coprodução da cidade, junto a outros agentes.
AD: Como vocês encaram a importância da Bienal de São Paulo no contexto mundial? Por que a arquitetura internacional deveria olhar para São Paulo hoje?
MR: As Bienais de Arquitetura, por todo o mundo, apresentam mostras de conteúdo muito distintos e linhas de pensamento próprias. É isso que as fortalece enquanto eventos localizados, porém internacionais. Historicamente, podemos dizer que a Bienal de Arquitetura de São Paulo, para além de uma mostra internacional, se estabeleceu como um espaço para falar dos desafios daqui, dentro de um contexto internacional. É um lugar a partir do qual se fala de nossa arquitetura e de nossas cidades.
A 11a Bienal reafirma o compromisso de falar sobre seu território, articulando uma discussão internacional a partir de suas próprias referências. As ações, realizadas em São Paulo, fomentam trocas internacionais e se articulam à exposição, onde são apresentados projetos de todo o mundo é referências de pensamentos urbanos daqui. É assim que ela se afirma na perspectiva internacional, entre tantas outras bienais.
A partir deste raciocínio, a Bienal e Veneza talvez seja aquela que traz propostas mais autorais e presentes em um discurso internacional disseminado entre instituições tradicionais; a de Roterdã vem explorando o formato de estúdios mirando oportunidades para a transformação de áreas específicas; a de Chicago parece enfocar a arquitetura a partir de um entendimento mais tradicional e com foco em contribuições (sobretudo) do hemisfério norte; a do Equador parece dar ênfase à arquitetura local e de países vizinhos, fomentando uma reflexão sobre a produção regional. Trata-se de uma série de abordagens que, todas elas, superaram o modelo das feiras de projetos do passado, apresentando posicionamentos consistentes por sua continuidade e inovação. Assim é que se apresentam para o mundo nesta perspectiva internacional.
Em nosso caso, para articular as discussões daqui à discussão internacional, montamos a bienal como plataforma de pesquisa, e criamos o que chamamos do Observatório da Bienal. O Observatório resulta em um arquivo de referências, casos, exemplos de formas de atuação de arquitetos e não arquitetos nas cidades. É no observatório que identificamos praticas de escuta, de observação, de colaboração, de participação, de ação experimental participativa, de marcação temporária, do fazer artesão, da corpografia, de mapeamento, de denúncia, de cartografia social, de ativismo, de prototipagem, de manifesto, entre tantas outras. E esta compilação aparece na exposição da Bienal, recebida em uma rede de espaços e programas parceiros.
A 11a Bienal não é só uma exposição, ela é uma processo de pesquisa e troca e ela é uma programação contínua de ações por toda a cidade.
A melhor imagem do que propomos é a de uma constelação de ações, ou de lâmpadas no território que vão se ascendendo. Nesse sentido, podemos falar que a Bienal é muito mais situação do que espetáculo, e privilegia em seu formato a experiência/vivência ativa, através de suas atividades, sem focar exclusivamente em uma grande exposição. Esta perspectiva postula uma ação relevante tanto na esfera local, já que reflete sobre a utilidade pública da arquitetura para nossas cidades, quanto na esfera internacional, já que apresenta formas de organização e atuação inovadoras e daqui, por vezes distantes dos prefeitos modernos aplicados genericamente em todo mundo, e que podem ser relevantes também para discutir outras realidades. Essa reflexão abre espaço para pensarmos sobre outras direções possíveis, trocas e transferência de conhecimento.
AD: Como pressuposto, a 11a Bienal pretende discutir processos. Não os que já são institucionalizados, mas aqueles que experimentam questões projetuais em um sentido mais amplo e interdisciplinar. Há possibilidades de pontuar características comuns dessas experiências, levantadas e propostas? Como essas características comuns podem influenciar o cotidiano urbano?
MR: "Em projeto”, sugere um evento em construção, colaborativo e col
Falar sobre o processo é falar sobre formas de negociação, sobre acertos e erros, é um lugar de muito aprendizado. Não se trata de belas imagens prontas, que registram momentos, mas de toda a complexidade por traz delas quer com frequência a prática do projeto simplifica e achata, ou não encontra espaço para entender e desenvolver. É um grande desafio, sem dúvidas. Lançamos esse projeto para falar disso de forma experimental e aceitando as dificuldades e desafios e um processo tão complexo.
O primeiro ponto comum encontrado, ou que deve ser ressaltado neste processo é provavelmente a humildade, enquanto arquiteto, de entender que seu papel pode impactar o desenvolvimento urbano ao encontrar formas de colaboração a partir e seu conhecimento específico, do que ao postular-se como o técnico que predefine o desenho de maneira solitária e desconectada do mundo e de sua experiência, a partir de seu escritório, ou o arquiteto-herói, responsável por sanar os problemas do mundo a partir de um desenho imposto e muitas vezes descolado da realidade cotidiana.
As mais de 50 ações participantes destas Bienal apontam para possibilidades de se valorizar e aprender com outros saberes, com outras disciplinas, presentes e aplicados cotidianamente na construção das cidades. Um ponto comum e importante que valorizamos é o lugar de fala daqueles que são responsáveis por iniciativas diversas na construção das cidades, assim como agentes envolvidos na produção cultural, responsável pela transformação nos usos e experiência urbana. Em muitos casos, o arquiteto não é o protagonista da ação, nem aquele que apresenta soluções prontas de antemão. Trata-se de um olhar cuidadoso que valoriza a leitura, a escuta, o mapeamento, as narrativas, assim como formas de ação mais propositivas que envolvem a construção efetiva. Vale ainda ressaltar que, neste último caso, trata-se de níveis de colaboração e participação distintos (quanto a sua intensidade e formato) que abrem para pensarmos muitas possibilidades de atuação do arquiteto junto ao coletivo, de maneira prática e objetiva, a partir de práticas concretas e não de um projeto utópico.
Dentro desta perspectiva, algo comum entre muitos projetos, é uma reivindicação sobre o direito e lugar de fala de grupos que, tradicionalmente, não tiveram lugar no debate sobre o projeto de cidade. Teve representatividade dentro de nossa programação, por exemplo, a discussão sobre a questão de gênero na cidade, buscando pensar como outros atores podem contribuir para se pensar uma cidade mais equânime neste e em outros aspectos, raramente abordados no desenho urbano.
Em todas essas práticas percebemos uma vontade crescente de participação nas decisões e construção direta de espaços, mas também nas formas de seu uso e ocupação. Transformam a experiência da vida urbana. Trata-se de uma demanda legítima e de uma forma de atuação política na esfera micro do espaço, a partir da ação direta, 'mão na massa'. Este fato postula ao arquiteto demandas específicas e urgentes acerca de um desenho mais afinado com seus usuários, sensível ao cotidiano e vida urbana, mas também desenhado com a participação deles, o que pode ocorrer de uma série de maneiras.
Trata-se de debruçar-se sobre o que significa 'habitar' nossas cidades!
Esta é uma condição urbana que, poderíamos dizer, talvez siga uma tendência internacional, mas que encontra aqui condições de desenvolvimento muito peculiares, pautadas por urgências, pela atuação resultante de movimentos de resistência, pela frequente escassez de recursos destinada à qualificação é valorização da cultura urbana, assim como pelas oportunidades oferecidas pelo emprego de saberes distintos (da culinária à biologia) no desenho urbano, na transformação de lugares, pela criatividade, resiliência, tolerância do uso e ocupação em espaços onde as atividades não haviam sido previstas pelo projeto, etc.
Ao se aproximar destes atores, os aprendizados são muitos e crescemos muito como arquitetos ao questionar nosso papel e forma de atuar, contando com outros saberes e experiências, com frequência espacializados em formas de ocupação que podem ser entendidas como construções-teste e pilotos.
AD: A 11a Bienal apresenta um formato diferente das edições passadas em que o módulo expositivo não configura seu corpo principal. As principais atividades acontecem espalhadas na cidade, diante dos problemas urbanos cotidianos. Quais foram as decisões por trás dessa atitude e quais as expectativas?
MR: A valorização do fazer e das formas de ação daqueles que participam da construção e produção urbana em uma cidade como São Paulo poderia ser algo absolutamente óbvio dentro da nossa disciplina e, sem dúvida alguma, se transformou em algo urgente a se fazer. Além disso, faz-se também urgente aproximar a arquitetura de um público mais amplo. Com quem falamos? Com quem queremos e podemos falar? Que oportunidades se pode criar a partir de novos diálogos para que possamos encontrar outras formas de contribuir com o espaço vivido de nossas cidades? Estes foram alguns dos pontos e questões que nos nortearam desde o começo, buscando criar esta abertura, abrir espaço para este diálogo.
Em certo momento pensamos em nem mesmo fazer a tradicional exposição. Isso porque queríamos enfocar o processo, levar a Bienal à cidade, desvelar práticas no espaço de formatos diversos e refletir com generosidade sobre muitas arquiteturas encontradas na cidade.
Finalmente, decidimos que seria importante realizar uma exposição com o objetivo de articular as ações a um arquivo que naturalmente resultava de nossa pesquisa no Observatório. As exposições apresentam registros de momentos, de ‘conteúdos vividos’, que se alinham com a noção de que o espaço apenas se transforma em um lugar a partir da vivência daquele lugar, que transforma a experiência e a percepção sobre ele.
A escolha dos espaços expositivos seguiu alguns critérios comuns. Buscamos espaços conectados com a cidade de maneira fluida, procurando evitar espaços fechados e o cubo branco e buscamos articular um caminho a pé pela região central da cidade, que recebe diariamente milhões de pessoas, com o objetivo se apresentar a um público que com frequência nao tem ligação alguma com as discussões dos arquitetos. Criamos ainda, o Satélite da Bienal, um pequeno módulo sobre rodas que permite que a Bienal percorra a cidade. Ele é um suporte para a realização de ações, para uma série de trocas e apresenta a documentação dos processos em ensaios fotográficos. Marca fisicamente a expansão geográfica proposta pelo evento.
AD: Pensando no contexto brasileiro e internacional e no legado proposto por esta edição, com quais questões a próxima edição da Bienal deveria trabalhar, na sua opinião?
MR: Eu ficaria feliz de ver a próxima Bienal seguir enfocando nosso território, nossas cidades, conectada internacionalmente e contribuindo para nossa realidade. Me parece importante seguir desenvolvendo um projeto coerente neste sentido, por conta da representatividade do evento. Eu também acho que seria benéfico à Bienal de Arquitetura ter um processo aberto de escolha da equipe curatorial a partir de chamada aberta para dar oportunidade de participação. Mas eu não ousaria definir questões ou temas, até porque o mais interessante da Bienal, enquanto evento, é, de fato, a transformação de suas reflexões a partir de muitas contribuições, além de um afinamento com as questões da atualidade. São muitos os temas e abordagens e interessa escutar, estabelecer diálogos e reconhecer as contribuições de muitas vozes.
SERVIÇO
A 11a Bienal de Arquitetura de São Paulo ainda está aberta e sua exposição Imaginário da Cidade, em cartaz no Sesc Parque Dom Pedro II, pode ser visitada até o dia 28 de janeiro. Além disso, outras ações ainda estão por acontecer. Para saber mais, acesse a página oficial da 11ª Bienal.