Duas Casas de Paulo Mendes da Rocha

Abrindo as suas portas em simultâneo com a Exposição Infinito Vão, “Duas Casas de Paulo Mendes da Rocha” vai estar patente até 10 de fevereiro de 2019 na Galeria da Casa. Com curadoria de Nuno Sampaio, “Duas Casas” oferece a possibilidade de visitar dois projetos singulares no acervo do arquiteto Paulo Mendes da Rocha que, na lógica transatlântica desta programação, se situam em Portugal e no Brasil.

© Leonardo Finotti

MEU ENDEREÇO

A Casa da Arquitectura — Centro Português de Arquitectura decidiu dedicar na sua programação uma atenção especial à arquitetura brasileira, designadamente à produção dos últimos 90 anos, de 1928 a 2018. Ao falar de arquitetura brasileira torna-se indispensável e incontornável falar de Paulo Mendes da Rocha e da sua produção como uma das mais prestigiadas e reconhecida internacionalmente. A sua obra tornou-se global, não por estar espalhada pelo mundo, mas por ser uma obra “universal”, um “lugar comum” da arquitetura respeitada, uma referência singular.

“Duas Casas de Paulo Mendes da Rocha” dá a conhecer uma parte menos conhecida da obra do arquiteto: as casas unifamiliares. No seu discurso sobre a arquitetura e sobre a vida, Paulo sempre pôs em primeiro plano o que é público, aquilo que a todos se destina e diz respeito. Nesse sentido, e pela coerência do seu discurso, a obra coletiva ganhou ao longo dos anos maior divulgação e um consequente destaque. Mas é exatamente pela coerência de Paulo Mendes de Rocha, caraterística a que voltarei mais à frente, que me interessou pesquisar e salientar a sua presença também nas suas obras menos conhecidas.

© Leonardo Finotti

A partir do acervo da Casa da Arquitectura coloca-se lado a lados duas casas separadas por três décadas e construídas em contextos muito diferentes: uma do “mundo novo”, em São Paulo, território de expansão (a Casa Gerassi); e a outra do “velho mundo”, no centro histórico da cidade de Lisboa, num tecido urbano consolidado e parcialmente classificado (a Casa Quelhas). Os dois projetos têm na sua forma de produção diferenças notórias, sendo a Casa Gerassi totalmente desenhada à mão e realizada totalmente no seu escritório, enquanto a Casa Quelhas, feita em coautoria com Inês Lobo, foi já produzida na era do computador.

“Duas Casas de Paulo Mendes da Rocha” permite leituras distintas através de três mecanismos explicativos: a exposição, o livro que a acompanha e um filme das duas casas em duas projeções. Diferentes perspetivas são suscitadas sobre as duas obras: a percepção espacial lida nas maquetes realizadas para o efeito, o ensaio estético no registo fotográfico pela lente do fotógrafo Leonardo Finotti, as várias leituras arquitetônicas dadas pelos textos de autores que se relacionam com o arquiteto ou com as obras em questão. Por fim, o filme oferece duas visões de diferentes índoles: uma mais técnica, através da visualização das visitas às obras em construção, como complemento dos desenhos; e outra mais pessoal, dada através do testemunho dos clientes que relatam o processo de trabalho com o arquiteto e a experiência de habitar uma obra concebida por Paulo Mendes da Rocha.

Paulo Mendes da Rocha Casa Gerassi, São Paulo (1988)

A arquitetura não anda nunca dissociada da pessoa que a produz e do seu contexto. Paulo Mendes da Rocha, que é seguramente a pessoa mais coerente que conheço, transfere para a sua produção a mesma coerência que é transversal à sua forma de pensar e de agir, reduzindo à inexistência qualquer possível dissonância cognitiva do processo criativo.

Fernando Pessoa refere que “obra de arte, por dispersa que seja a sua realização detalhada, deve ser sempre uma coisa una e orgânica, em que cada parte é essencial tanto ao todo, como às outras que lhe são anexas”(1). E assim é a obra de Paulo Mendes da Rocha. Para ser compreendida deve ser lida como um todo, em que cada realização faz parte de um universo mais amplo, claro, translúcido e nítido: o seu. Felizmente não é um universo simples ou de compreensão imediata, requer preparação e alguns instrumentos para a sua compreensão, mas é um universo sistematizado, organizado, ordenado e pleno de sentido, tal como a sua arquitetura. Os que têm tido a sorte de privarem com o Paulo contam frequentemente com a generosidade das viagens que, antes de chegarem à arquitetura, cruzam esse seu universo. Tal como dito pelo arquiteto e registado no filme “Tudo é Projeto”(2) das realizadoras Joana Mendes da Rocha e Patricia Rubano, “a conversa está indo um pouco à estratosfera, podemos falar de arquitetura, mas eu não consigo falar de arquitetura sem falar destas coisas”.

A arquitetura é parte do universo de Paulo Mendes da Rocha e as casas são uma parte indissociável da sua obra. Os princípios compositivos, formais, estéticos, organizacionais presentes nas casas são os mesmos da restante obra arquitetônica do autor, e sobretudo, seguem a mesma linha de coerência na sua relação com a cidade e com a sociedade.

O espaço habitacional de excelência nas distintas casas projetadas pelo arquiteto, valoriza o encontro, a partilha e a socialização da família, quer na sua relação entre os diversos elementos do agregado familiar, quer na relação destes com o visitante ou convidado da casa. A arquitetura condiciona a forma como o espaço é habitado e até certo ponto contribui para uma educação diária no respeito, na convivência e na partilha entre os diferentes membros da família. Na Casa do Butantã, construída para a sua família, esta valorização do coletivo assume especial importância pela valorização das áreas sociais, sendo as áreas privadas mais restritas e com paredes que não chegam ao teto. A partilha é quase total.

Tanto na Casa Gerassi como na Casa Quelhas, de uma forma distinta, os espaços sociais de encontro e partilha são os mais beneficiados, sendo que na casa de Lisboa esta condição aparece reforçada pela relação espacial criada pelas duplas alturas e espaços vazados que permitem a franca comunicação entre pisos. Aqui, à visão possível entre os diversos espaços acresce a partilha do som e dos odores dos diferentes ambientes. Enquanto estamos na sala de estar, a ler ou contemplar a magnífica paisagem, somos convidados a percepcionar a preparação do jantar, podendo adivinhar a ementa mesmo antes de ser servida a refeição no piso de baixo. A condição de comunicabilidade e abertura dos espaços diminui o distanciamento que poderia resultar de uma habitação que se distribui por cinco pisos.

A piscina, também recorrente em edifícios públicos com outros programas, surge como elemento agregador de vivências e socialização. No caso das casas, e independentemente da piscina ser construída no piso térreo ou num piso elevado, esta surge como prolongamento exterior da sala, sendo o fundo em mosaico hidráulico com o mesmo desenho do pavimento da sala. A piscina é “a sala inundada”.

A presença do betão, elemento construtivo de função estrutural, é assumido nas duas casas também com partido estético. O betão aparente de textura trabalhada torna-se um elemento com importante e forte presença que vai unificando e “abraçando” os distintos espaços das habitações. A forma como o betão é trabalhado nas duas casas é diferente, mas responde aos diferentes desafios solicitados pela arquitetura. Na casa de Lisboa, o arrojo estrutural, da autoria do engenheiro Rui Furtado, para além de conter a existente fachada frontal e a abertura de grandes vãos, permite elevar e suster a piscina num andar elevado. Na casa de São Paulo, o betão pré-fabricado calculado pelo engenheiro Siguer Mitsutani permitiu responder a um desafio económico e temporal concreto criado pela hiperinflação da época, permitindo montar a casa em apenas quatro dias. Acresce que no caso da Casa Gerassi, o betão é pré-fabricado, transferindo para a técnica em questão que é ideológica, a valorização do trabalhador que construiu a casa.

© Leonardo Finotti

Outra caraterística da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha é a valorização da técnica e o amplo recurso à liberdade dada pelo uso de soluções estruturais audazes realizadas pelas produtivas parcerias de trabalho com engenheiros competentes. Esta é uma caraterística do trabalho de Paulo Mendes da Rocha, a frutuosa relação interdisciplinar no trabalho de concepção da sua arquitetura, resultante do constante diálogo entre parceiros que se apoiam mutuamente. A arquitetura, segundo Paulo, serve para “amparar a imprevisibilidade da vida”, e “evidenciar o êxito da técnica”.

A relação com a rua tem nestas duas casas a comum capacidade de permitir a saudável e franca relação entre o espaço público e o privado, entre interior e exterior, entre o miolo do lote ou do quarteirão e a rua. Esta procura de relações formais entre espaços privativos e coletivos, entre rua e lote, é decorrente da necessidade de contrariar a esquizofrenia coletiva e a concepção errática da sociedade contemporânea, segundo a qual os muros criam segurança, pois o perigo vem do “outro”, daquele que não nos é conhecido.

© Leonardo Finotti

A arquitetura, nomeadamente aquela que é feita pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, propicia-nos a oportunidade de viver o quotidiano de forma diferente, de experimentar novos hábitos, de fomentar relações humanas, quer em família, quer em sociedade, de forma diferente.

Os espaços habitacionais projetados por Paulo Mendes da Rocha trazem uma proposta de vida associada, de partilha, criadora de crescimento e felicidade. É “a alegria que a arquitetura proporciona”. Cada casa é uma proposta de transformar o lugar, gerar a habitação, criar o próprio endereço. O endereço de cada um — o meu endereço.

Assim é habitar por Paulo Mendes da Rocha.

(1) Carta de Fernando Pessoa em resposta a Cabral do Nascimento.
(2) Filme sobre a vida e obra de Paulo Mendes da Rocha produzido em 2017 por Olé Produções em parceria com Opa e Canal Curta e com o apoio Casa da Arquitectura.

“Duas Casas”
28 de setembro a 10 de fevereiro de 2019
Casa da Arquitectura
Avenida Menéres, 456, Matosinhos, Portugal
Informações: www.casadaarquitectura.pt

Sobre este autor
Cita: Nuno Sampaio. "Duas Casas de Paulo Mendes da Rocha" 28 Set 2018. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/902872/duas-casas-de-paulo-mendes-da-rocha> ISSN 0719-8906

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