Quem caminha por São Paulo já se acostumou com muros coloridos espalhados pela capital. Em geral, os grafites que dão cor às ruas da cidade são assinados por homens e, raramente, por mulheres. Este cenário vem mudando nas periferias da capital. Cada vez mais há mulheres que levam arte para as ruas, e unem a rotina da maternidade com o grafite.
Elas contam as dificuldades de reconhecimento e a estranheza que enfrentaram na família ao se tornarem grafiteiras. Ao mesmo tempo, relatam que a arte urbana tem possibilitado novas oportunidades e geração de renda para quem vive nas bordas do município.
Grafite com Artitude
No Itaim Paulista, na zona leste de São Paulo, Stefanie Fabian Torelli, 28, Fatyma Regina, 38, e Angélica de Sena Correa, 30, criaram o Mulheres de Artitude. As meninas integram um dos únicos grupos formados inteiramente por mulheres no grafite na região.
Nele, as garotas reforçam a luta feminina. “A Artitude segue a linha de empoderamento feminino não só na pintura, mas na troca de ideias, conhecimentos e experiências”, afirma Stephanie. “Quando contamos que somos grafiteiras, vemos o espanto no rosto das pessoas”, ressalta.
Para Angélica de Senna, o que era um hobby de infância se tornou a cura para a depressão. Em 2013, ela foi orientada pelo médico a usar a arte como terapia complementar. “Mal sabia ele que isso transformaria minha vida e me faria parar com todas as medicações”.
Em 2018, o grupo foi contemplado com o projeto VAI (Valorização de Iniciativas Culturais), que apoia financeiramente projetos culturais de jovens de baixa renda. Foram expostos quatro murais além de um evento com grafites, batalhas de MC’s e DJ’s, tudo feito por mulheres.
Em abril, teve início uma exposição na Casa de Cultura de São Miguel Paulista que ficou exposta até o dia 27 deste mês. “Fomos o primeiro grupo de mulheres que trabalham com grafite a expor nas Casas de Cultura do bairro”, conta Stephanie.
Stephanie é formada em artes plásticas e se diz apaixonada por arte desde a infância. Mas o primeiro contato com o grafite foi em 2013, por meio de amigos. Começou a estudar o gênero e, em 2016, decidiu pintar junto de um grupo de meninas, o DamafiaGirls. “Mesmo com o passar do tempo o cenário é de resistência masculina”, diz Stephanie.
No caso de Fatyma, ela deixou o trabalho administrativo em escolas para se dedicar a maternidade e a arte. Unir as duas coisas não foi fácil. “É comum ver um pai deixando o filho com a mãe para ir pintar, mas o contrário não”, conta. “Não há apenas preconceitos com isso, mas também a própria mãe que fica pensando se o filho está bem. Quando o Mike, meu filho, era bebê, eu ficava preocupada”.
Mães no grafite
A 70 km do Itaim Paulista, a avaliação é semelhante. A suporte técnica, Thainá Soares, 24, conhecida artisticamente por Índia, mora no Grajaú, na zona sul de São Paulo, e também viu resistência para grafitar após ter o filho, aos 21 anos.
“Após ser mãe a gente vê que as coisas mudam, o tratamento muda. Se você leva a criança no rolê, você é irresponsável. Se deixa [o filho] com alguém é desnaturada, mas os julgamentos são apenas quando se é grafiteira”, afirma. “Quando é grafiteiro, é quase o herói do rolê. É por isso que muitas minas param de pintar, porque não tem uma estrutura para elas prosseguirem fazendo o seu rolê”, completa.
Durante a gravidez, Índia não deixou de pincelar os murais da capital. Ela conta que utilizava máscaras para não prejudicar a saúde do bebê, mas que era um processo difícil, pois se cansava com mais facilidade. A partir deste período a conexão com o grafite ficou mais intensa e passou a desenvolver um trabalho mais expressivo, visando mostrar a ligação entre mães e filhos.
O contato com a arte começou cedo, pois a mãe também desenhava. Ela soube mais sobre a arte urbana na escola e começou a grafitar aos 17.
No grafite, Índia busca expressar a beleza feminina e a valorização da cultura negra e indígena. “Criei personagens que representassem não só a mim, mas também as que me cercam, minha mãe, irmã, tias, primas, amigas e tantas outras mulheres, que são invisibilizadas pelo padrão da sociedade de que só o branco é bonito”, diz Índia.
Além da expressão artística, Thainá tem usado o trabalho produzido em casa para empreender com a criação de pinturas em quadros e personalizações de jaquetas e bolsas.
Poesia, música e arte
Quem também tem buscado uma renda extra por meio dos desenhos é Bruna Muniz, 26, no Jardim Fontális, no distrito do Tremembé, na zona norte. “Já ganhei dinheiro com grafite e muito material também, que é sempre bom e ajuda”, afirma.
Bruna começou a grafitar em 2010, por influência dos amigos, quando tinha 18 anos. A grafiteira conta que foi desinibindo aos poucos. “Ficava admirando de longe”, diz. “Um dia soube do estêncil (aplicação da tinta através de um papel desenhado) que foi uma luz no fim do túnel para mim. Usava chapas de raio-x para praticar”.
Ela foi atrás de um curso de desenho, perto de casa, para se especializar. Mas o estudo que durou dois anos teve de ser encerrado por motivos financeiros. Sem condições de continuar a especialização, ela passou a treinar técnicas de spray e se inspirou em outros artistas como Crânio, morador da zona norte que tem trabalhos expostos fora do Brasil.
A arte urbana não para nos muros. Em 2018, a artista que também é MC lançou um disco chamado S.O.S Pátria Amada. “Sempre escrevi poesias e músicas também. Aprendi a rimar e daí o rap começou a surgir. Tenho até uma que fala de mulher, chamada Onna Bugeisha.”
Apesar da experiência na área e ter diversos trabalhos expostos, ela ainda não vive por completo da arte, apesar de ser este o objetivo para os próximos anos.
Bruna trabalha como body piercing (perfuração corporal). Quando perguntada se já sofreu preconceito por ser mulher em um ramo que a maioria é masculina, Bruna responde. “Nunca sofri preconceito por fazer grafite, mas algumas pessoas às vezes olham diferente por eu estar suja de tinta”.
A Arte na Religião
“A presença masculina se sobressai à feminina nos meios das artes, mas não me importo com o que as pessoas falam. Aprendi a não me importar. E a fazer o que eu gosto”, afirma Talita Martins de Souza, 34, moradora da Vila Mangalot, bairro de Pirituba, zona noroeste da capital.
Ela tem como marca a abordagem da religião nos desenhos. Mãe, esposa, professora de artes, fotógrafa e grafiteira, Tali começou a desenhar há quatro anos. É dela a criação de um polvo com traços delicados e cores divertidas. Pelos bairros da cidade é possível encontrar ele em diferentes cores: roxo, verde, azul, laranja, rosa. Embora aponte a dificuldade das mulheres entrarem no grafite, diz não concordar com o que chama de feminismo extremo. “Para mim não se encaixa”.
Antes de grafitar, Tali participou com o marido de um grupo de pichação em Pirituba. Mãe de um casal de adolescentes, Kauai, 16, e Lanai, 14, Tali resolveu parar de pichar em 2012.
A decisão foi impulsionada por vários motivos como um processo. “Tivemos que pagar R$ 900 à vista. A partir daquele momento refleti sobre os prejuízos, fora a questão de correr perigo, risco de morte”, diz. “No grafite eu posso levar eles [filhos] e conversar sobre isso [grafite]”, pontua.
Por meio da arte, a grafiteira diz ampliar o diálogo com os filhos. O mesmo ajuda em sala de aula, onde ensina alunos do ensino fundamental e médio. Além disso, como cristã, ela diz usar o grafite para evangelizar.
“Na Igreja em que congrego tenho super carta branca. Porque a arte é uma criação de Deus. Então meus pastores não encanam comigo. Na realidade tem até um culto de adoração em que eu tenho a liberdade de pintar telas enquanto ele ocorre”, conta.
Publicado originalmente na Agência Mural. Via Portal Aprendiz.