Paisagem, geometria e materialidade na arquitetura peruana: entrevista com Juan Carlos Doblado

A Escola da Cidade, através do curso de pós-graduação Geografia, Cidade e Arquitetura, recebeu o arquiteto peruano Juan Carlos Doblado para uma série de aulas. O arquiteto apresentou sua produção arquitetônica, algumas influências em sua formação, arquitetura contemporânea do Peru e explorou temas relacionados ao ensino no curso de arquitetura da Universidad Peruana de Ciências Aplicadas (UPC), onde é professor. As estudantes, Alline Lais Nunes, Carolina Lyra e Adelí Palacios, convidadas pelo Conselho Científico da Escola da Cidade (EC), entrevistaram-no sobre alguns desses temas abordados durante o curso.

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Escola da Cidade: Durante as aulas ministradas na Escola da Cidade, você apontou a relação entre o natural (paisagem) e o artificial (construído), como uma questão recorrente na arquitetura peruana. Como isso é interpretado em sua produção arquitetônica?

Juan Carlos Doblado: Isso ocorre em várias leituras. Em particular, meu trabalho está localizado na Costa Central do Peru, onde fica Lima, e também em balneários, na praia, onde a presença da paisagem é muito forte, pois a Costa do Peru é basicamente um deserto longitudinal de aproximadamente dois mil quilômetros de extensão, caracterizado pela ausência de chuvas devido à corrente marinha de Humboldt que esfria a costa peruana inteira e faz com que as chuvas não sejam frequentes.

Então, por um lado, é muito fácil fazer arquitetura, porque os problemas tecnológicos e/ou técnicos, com relação ao clima são excluídos, já que não há temperaturas extremas, não chove, e isso nos dá muita liberdade. Logo, as preocupações estão em outros aspectos, espaciais, da materialidade e assim por diante.

Por outro lado, nessa paisagem natural há uma presença artificial, ou seja, existem construções desde os tempos pré-hispânicos que estão espalhadas por toda a costa peruana, e essas construções, queiram ou não, exercem uma forte presença que, de algum modo, se impõe sobre a paisagem. 

Casa nos Andes, Juan Carlos Doblado. Imagem cortesia de Juan Carlos Doblado

Nesse sentido, a arquitetura é algo que se impõe sobre o natural, algo que o modifica e, de alguma forma, quando há essa presença, essa paisagem que poderia passar despercebida, com a arquitetura, é aprimorada. 

Por outro lado, a cidade de Lima em si é uma imposição artificial, porque é a segunda maior cidade em um deserto, então, essa relação entre o artificial e o natural não está presente apenas na arquitetura, mas também no nível urbano, e essas são algumas das premissas que levo em consideração em meu trabalho.

EC: Quais os desafios de pensar e produzir arquitetura em um local onde a memória da cultura pré-hispânica é tão forte e está presente em quase todo o território? 

JCD: Eu acho que a preocupação dos arquitetos, quando começou o modernismo no Peru, nos anos 50, era fazer uma arquitetura que já tinha sido feita no resto do mundo, assim como o Estilo Internacional, semelhante ao que foi feito na Europa, nos Estados Unidos, etc., o que durou mais ou menos até 1980.

Já o período entre 1980 e 2000 foi de transição, no qual o fenômeno do pós-modernismo aparece, mas sem deixar claro como fazer uma arquitetura que, de alguma forma, tenha o selo local e, ao mesmo tempo, mantenha esta relação com o internacional. Esse foi um período confuso, porque o Peru ficou isolado durante o governo militar dos anos 70 e o que era arquitetura contemporânea da época acabou chegando um pouco tarde ao país.

Portanto, quando o pós-modernismo aparece numa fase inicial, tentou-se que, através da referência histórica explícita, se fizesse uma arquitetura que se relacionasse com o local e, ao mesmo tempo, fizesse parte do pós-modernismo internacional.

Casa nos Andes, Juan Carlos Doblado. Imagem cortesia de Juan Carlos Doblado

Precisamente, no meio desse fenômeno é que aparecemos, como uma nova geração que, de alguma forma, não usa mais a referência histórica explícita, mas tenta fazer uma arquitetura que já veio do modernismo e ao mesmo tempo usava o que era chamado “el doble código”. Era o modernismo, com um pouco de pós-modernismo, porém um pouco mais filtrado. 

As gerações que vieram depois já tiveram uma imagem um pouco mais clara. Então, eu diria que a arquitetura que começa a ser feita a partir de 2000 é uma arquitetura que está começando a se preocupar com outras questões, dentre as quais, está essa relação entre arquitetura e paisagem, e a materialidade.

Creio que estamos nesse estágio. Não é um estágio em que se procura fazer o mesmo que em outros lugares, mas sim responder aos problemas locais, ao ambiente local, aos materiais locais, ao clima, (etc.). Ao mesmo tempo, essas respostas às condições específicas do Peru, servem ou podem interessar a outras culturas, como estamos vendo aqui na Escola da Cidade.

Eu diria que a geometria e a materialidade são duas características (que manifestam a memória da cultura pré-hispânica na arquitetura contemporânea) e, a terceira, é o vazio, que tenta se ligar à paisagem em relação ao aspecto visual. O uso da geometria toma como ponto de partida uma forma que é bastante clara e limpa, mas que é então distorcida em planos e/ou em seções para se relacionar com a paisagem. 

Essa arquitetura (pré-hispânica) é feita principalmente de terra/barro, e a partir desse material se produz adobes com os quais são construídas as grandes superfícies que existem até hoje ao longo da costa peruana, inclusive na cidade de Lima. Ou seja, é uma arquitetura feita de uma superfície contínua, que se estende basicamente de um único material. 

Assim, a materialidade de que falamos (hoje) está basicamente no uso do concreto, como o material que dialoga melhor com a paisagem do deserto e também constitui uma superfície contínua.

Já nas montanhas, essa arquitetura (pré-hispânica) ocorre de forma completamente diferente das superfícies feitas de barro, porque é constituída principalmente de pedra, como peças de um quebra-cabeça, e essa situação demonstra que o pré-hispânico teve que atuar de uma forma diferente para estabelecer um diálogo com essa paisagem (específica).

Então, o que pode ser resgatado dessas ruínas, sem fazer uma arquitetura que imite o passado ou sem cair numa imitação formal, é preservar a ideia de materialidade que muitas vezes está relacionada ao uso do concreto, como um material que também produz uma superfície contínua, ou da arquitetura feita com o que chamamos de “enlucidas”, isto é, uma superfície contínua simplesmente pintada.

Acho que a terceira relação (dessa memória pré-hispânica) com a arquitetura contemporânea, particularmente em minhas obras, está na tentativa de se conectar à paisagem através do vazio, buscando de alguma maneira introduzi-la nas obras e mantê-las relacionadas.

Isso é um pouco da relação que tentei estabelecer, a transparência para manter o vínculo com a paisagem, a definição de uma arquitetura que é geometricamente muito clara, como a arquitetura dos antigos peruanos na costa do Peru, e o uso de superfícies contínuas que estabeleçam certo diálogo com essa arquitetura (pré-hispânica).

Residencial San Felipe / Enrique Ciriani, Mario Bernuy, Jacques Crousse, Oswaldo Núñez, Luis Vásquez, Nikita Smirnoff. Imagem © Fabio Rodríguez

EC: Você cita Juvenal Baracco como uma influência importante na formação dos arquitetos peruanos e Enrique Ciriani como uma figura que abriu muitos caminhos para as novas gerações. Quais caminhos você vislumbra para esses novos profissionais no Peru? 

JCD: Baracco e Ciriani são dois dos mais importantes formadores de arquitetos que surgiram no Peru no final do século XX. A influência de Juvenal Barraco, como professor, foi muito marcante na minha geração e para aqueles que vieram depois.

No caso do Juvenal Baracco, (essa influência foi) em nível de formação, porque era um professor que nos acompanhava em vários períodos da graduação, em um sistema de oficinas verticais, baseado em uma metodologia que proporciona grande liberdade de pensamento, sem impor nenhuma questão estilística, diferente dos professores do funcionalismo nos anos 50 no Peru.

Nessa metodologia, ele abria seus olhos para o panorama e você tinha que encontrar (de maneira independente), as respostas para os seus problemas.

Por outro lado, Enrique Ciriani, um arquiteto peruano que trabalhou no Peru, depois vai para a França, e nela triunfa (como arquiteto e), também como professor, talvez tenha sido a outra referência, das duas mais importantes para a minha geração.

Foi também durante o período em que estávamos na faculdade que tivemos a oportunidade de ver, estudar e visitar a obra de Ciriani e, desde então, amamos tanto o seu lado acadêmico, quanto sua produção arquitetônica, que para o Peru é uma referencia muito importante.

Apesar da distância, Ciriani estabelecia uma proximidade muito grande conosco todas as vezes que vinha ao país para conferências e exposições.

Aproximando-se mais da segunda questão, o que buscamos (como professores) é dar ferramentas aos alunos durante sua curta vida universitária, para que quando saiam possam encontrar sozinhos as respostas.

Eu acho que essa é um pouco a ideia de formação que tentamos transmitir aos estudantes de arquitetura. 

Por outro lado, nós também tentamos estabelecer relações com o que já existe e que sirvam como base para o futuro, já que nem tudo começa do zero, como na Bauhaus. 

Eu diria que existem as duas linhas importantes na formação de um arquiteto, essa relação com a paisagem e com a sociedade, que não podem faltar, já que a finalidade do trabalho do arquiteto e da arquitetura é ser utilizada por todos. 

Eu acho que sou otimista, porque no Peru muitas coisas foram feitas, mas ainda está tudo por fazer. Penso que o olhar sobre o futuro dos arquitetos peruanos tem que ser otimista, porque se para nós, que começamos no meio de uma situação de destruição da sociedade, foi possível emergir como arquitetos, para os novos profissionais o cenário atual não pode ser pior do que já foi, então acredito que você tem que olhar para o futuro.

Casa Vertical / Juan Carlos Doblado. Imagem © Elsa Ramirez

EC: Você transita entre várias escalas de discussão sobre a arquitetura latino-americana, seja dentro do TECTURA, do meio acadêmico ou da própria produção arquitetônica. Neste contexto, quais são as suas reflexões sobre a arquitetura produzida na América Latina nos últimos anos e quais respostas ela tem dado aos problemas econômicos e sociais crescentes neste território?

O TECTURA é um congresso de arquitetura latino-americana que acontece em Lima a cada dois anos ou mais, reunindo arquitetos latino-americanos de vários países, (como), Chile, Brasil, Colômbia, México, Peru, Paraguai, Venezuela, Costa Rica.

Ao longo desses anos e dessas várias participações, (esse congresso) nos permitiu ver que tínhamos uma série de temas e discussões comuns e que não estávamos sozinhos. 

Tínhamos as mesmas preocupações, respostas, alguns casos parecidos, etc. e vimos que projetos de pequena e até grandes escalas na América Latina tinham algo muito semelhante, que não ocorre na Europa ou nos Estados Unidos. 

De alguma forma, a arquitetura latino-americana mantém em grande parte, ou quer manter, esse caráter artesanal e, nas mais variadas escalas, mantém certa tradição na construção, como por exemplo, no tipo de mão-de-obra utilizada, na forma de desenhar todos os elementos (detalhamento), incluindo a materialidade.

Nós até editamos um livro especificamente sobre o concreto, porque vimos que em todos os lugares da América Latina a construção em concreto aparente, que exige uma mão de obra muito precisa e um processo construtivo muito artesanal, se desenvolveu mais do que na Europa, ou em qualquer outro lugar, onde é muito mais caro e difícil utilizá-lo.

Temos muitos pontos convergentes e, nessas discussões promovidas por esses congressos, percebemos que temos mais em comum do que diferenças.

Existe uma conexão em nível de ideias, em nível de materialidade, no manuseio das escalas, etc., que ficaram evidentes na produção de muitos arquitetos que foram (ao TECTURA), como Marcelo Ferraz e Carla Juaçaba, do Brasil; Giancarlo Mazzanti, da Colômbia; Alberto Kalach e Mauricio Rocha, do México, entre outros arquitetos.

Não há muitas relações, mesmo nos discursos, quando se ouve um arquiteto de outras latitudes, como da Europa e dos Estados Unidos, e acredito que essa é parte da diferença, a de que arquitetos latino-americanos têm uma linguagem comum, não na linguagem arquitetônica, mas no nível de ideias e relações de cada um com os problemas de seus próprios lugares.

EC: Esses problemas mudaram ao longo dos anos?

JCD: Digamos que cada arquiteto tira partido do seu próprio lugar, em sua própria circunstância para que, a partir daí, de alguma forma, esses projetos tenham uma leitura global, ou seja, eles procuraram primeiro resolver problemas locais e, em seguida, essas soluções se tornam interessante globalmente. O oposto do que foi feito nos anos 50 e 60, em que o projeto era feito diretamente para ser global, e acho que aí está a diferença (mudança).

Casa Vertical / Juan Carlos Doblado. Imagem © Elsa Ramirez

EC: É a primeira vez que você vem a São Paulo. O que mais chamou sua atenção na produção arquitetônica local? É possível traçar um paralelo entre a arquitetura paulistana e a limenha?

JCD: Sim, tenho que dizer que uma das razões para vir, além do convite (da Escola da Cidade), foi poder conhecer alguns edifícios da Escola Paulista.

Eu já havia estado no Rio e em Brasília em seu 50º aniversário, mas tinha muita curiosidade em ver o trabalho de Vilanova Artigas e conhecer sua Faculdade de Arquitetura (FAU-SP), que considero um dos melhores edifícios do mundo, uma coisa impressionante que eu só tinha visto através de fotos e que pude conferir pessoalmente.

Além disso, o trabalho de Lina Bo Bardi e de Mendes da Rocha também me pareceram muito impressionantes, mas o que mais me surpreendeu foi como os habitantes de São Paulo se apropriam desses projetos, a vitalidade que, por exemplo, têm os Sescs, assim como a quantidade de pessoas que vão aos museus e que utilizam esses espaços.  

Em São Paulo, estive no Sesc Pompeia, no Sesc 24 de Maio, também visitei o trabalho do Niemeyer, o Centro Cultural da cidade e achei todos esses projetos muito impressionantes, mas ver as pessoas dançando e fazendo outras coisas de forma espontânea e informal nestes espaços, mesmo não havendo uma organização especifica para isso, foi o que mais me impressionou.

Essa relação entre pessoas, arquitetura e esse tipo de projeto é algo que ainda não acontece em Lima, onde há um déficit de equipamentos públicos.

Acredito que a arquitetura da Escola Paulista, sem dúvida, teve influência no Peru, especialmente na arquitetura que foi feita nos anos 70 em Lima. Essa arquitetura do Brutalismo que se consolida com o governo militar entre 1968, 1969 até o fim dos anos 70 e, sem dúvida, bebeu, entre outras fontes, da Escola Paulista, o que é inquestionável e acho que essa é um pouco da impressão que tive ao conhecer esses projetos.

Entevista realizada por Alline Lais Nunes, Carolina Lyra e Adelí Palacios em maio de 2019. Transcrição das autoras, edição de texto por Ana Paula de Castro.

Alline Lais Nunes, Carolina Lyra e Adelí Palacios, são arquitetas e urbanistas formadas, respectivamente, pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (2011), Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017), e Universidad Continetal (Peru – 2015), e cursam a pós-graduação Geografia, cidade e arquitetura da Escola da Cidade.

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Sobre este autor
Cita: Escola da Cidade. "Paisagem, geometria e materialidade na arquitetura peruana: entrevista com Juan Carlos Doblado" 14 Mai 2020. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/939454/paisagem-geometria-e-materialidade-na-arquitetura-peruana-entrevista-com-juan-carlos-doblado> ISSN 0719-8906

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