O curso de pós-graduação da Escola da Cidade - Geografia, Cidade e Arquitetura recebeu o arquiteto Solano Benítez e a arquiteta Gloria Cabral para uma série de aulas. Na ocasião, foi realizada uma entrevista com os sócios do escritório Gabinete de Arquitetura, que conquistou prêmios como SI Swiss Architectural Award 2007-2008 (SUI), o AIA Honorary Fellowship 2012 (EUA) e o Leão de Ouro da Bienal de Veneza de 2016.
Escola da Cidade: Vocês receberam muitas indicações e prêmios internacionais nesses últimos anos. Gostaríamos de saber se isso mudou alguma coisa na arquitetura de vocês ou na forma como vocês projetam?
Solano Benítez: Na arquitetura nada, mas no meu caso, só me tornou mais modesto, hehehehe!
Gloria Cabral: É muito difícil ter diretamente uma resposta para nós no nosso entorno. Mas, ao mesmo tempo, tem essas conexões que vão se dando com o resto do mundo, tem mais convites, gente tentando escutar o que estamos fazendo. Mas, para nós, nossa arquitetura é a construção de uma sonhada sociedade, então todo projeto que fazemos é para nós uma oportunidade de construir. Quando o Gabinete fez a Unilever, que tinha um capital na frente. Na verdade, para nós, era uma oportunidade para ensaiar o que queríamos fazer na casa do carteiro. Ao mesmo tempo que estávamos fazendo a Unilever e o Teleton, tínhamos outras oportunidades de fazer uma casa com a mesma tecnologia que estávamos provando com quem podia pagar e estava dando certo para fazer. A ideia da construção da arquitetura não muda com o prêmio. Para nós, receber um prêmio é uma surpresa. Não estamos fazendo uma coisa para receber prêmio.
SB: Nossa sociedade não tem conhecimento da importância das disciplinas. As relações são todas construídas no interior do mercado onde você pode comprar ou vender o que você quiser. Você pode fazer um trabalho de marketing para vender sua popularidade ao interesse das pessoas sobre aquilo que você compreende que é interessante. Por isso, é muito importante que você tenha uma boa carta de apresentação. Mas isso não é verdade. Pra fazer arquitetura, você precisa de um relacionamento muito mais forte que é a disponibilidade inicial que se verifica. Leva um compromisso de todas as partes que têm que ser fortalecido para que você consiga fazer um bom projeto. Os prêmios têm a condição de apontar como, num momento dado, as coisas são. Alguns deles orientam, outros deles são para distrair. A premiação não é só um momento de alegria, mas um momento de grande responsabilidade que faz pressão sobre aquilo que você tem que construir. Faz a ideia do refinamento, uma coisa que tem mais clareza, que você pode olhar com mais claridade a finalidade das coisas que você faz. Quando você percebe essa pressão, você tem que poder administrar aquilo com justeza para poder fazer essa construção.
EC: O escritório de vocês sempre teve uma preocupação em construir muito barato em um país que não tem indústria, esse sempre foi um discurso forte. Quais são as novas questões e desafios que estão surgindo no escritório?
SB: Quando eu comecei a estudar arquitetura, o Paraguai estava construindo ainda duas das maiores hidrelétricas do mundo. Portanto, para um país assim pequeno era uma quantidade gigantesca de dinheiro. O melhor arquiteto era aquele que utilizava tudo aquilo para construir a ideia que a sociedade tinha de arquitetura. Todos os recursos estavam presentes: porcelanato, metais, fibras. Porque Paraguai sempre foi uma sociedade aberta e tínhamos as mesmas condições. A decisão nossa foi compreender que aquela disponibilidade de recursos era somente para uma quantidade de pessoas da sociedade. Aquilo era interessante, mas a disciplina estava muito cômoda, operando uma franja que era totalmente intranscendente em termos reais de transformação e produção, e que não era para todo mundo.
Então a Gloria explicava que inicialmente fizemos muitos projetos que se poderia intitular de interesse social, mas era impossível, porque ninguém queria aquilo culturalmente. As pessoas não tinham afinidades e não produziam simpatia com aquilo. Mas quando aparece a primeira classe produtiva, os primeiros empresários com ideias claras sobre produzir com menor custo e melhores oportunidades, começamos a trabalhar com eles. Podíamos perceber que era possível trabalhar no duplo sentido, com proximidade com as pessoas que tivessem um olhar diferente e com uma classe empresarial que tentasse ter certas diferenças no processo. Aquilo significa uma economia, uma possiblidade de fazer um investimento maior em outra área, não apenas destinada a arquitetura.
Acho que hoje estamos exatamente igual. Em um mundo totalmente conectado, em que todo mundo pode perceber que pertencemos à uma sociedade mundial. Para que nós finalmente conseguimos ter uma vida boa é preciso transformar a vida daquelas que hoje não estão vivendo bem, para permitir que finalmente nossa vida seja possível. Se não nós vamos viver nos defendendo dos outros, não transformando o mundo com as pessoas. Nessas ideias é que a condição da economia é interessante, que é a condição de um olhar que permita estabelecer uma certa sedução pela capacidade de uma economia que você pode ter, então você pode finalmente ter a decisão. Sendo assim, é muito importante que a ideia de discurso coletivo é fazer compreender a importância da responsabilidade de suportar uma sociedade global que hoje se pode ler com mais claridade. Na verdade, você pode colocar ouro sobre o chão, mas também pode utilizar um material que não tem custo, uma mão de obra que não tem treinamento. Quando você faz isso, você não somente está dando oportunidade de resolver o problema pelo qual você foi comunicado, você também está resolvendo um problema global muito mais importante, e isso que nós ainda [estamos] mudando um pouquinho. Como é que poderíamos fazer para dar uma resposta desde nossa disciplina, para coisas que hoje não tem respostas.
Acho que nós temos que mudar muita coisa, mas a primeira coisa que temos que ser capazes de mudar é compreender que nós precisamos construir um olhar solidário o tempo todo que se questione a cerca daquilo que é transcendente ou não. Não só para nós, pra nosso grupo, para a sociedade, isso que é importante. Não estamos tentando utilizar o mesmo diálogo que nós temos com aqueles que fazem a normativa europeia, ou a normativa de construção, os engenheiros de outros países, engenheiros de materiais, engenheiros de cálculo. Nós estamos falando com eles só pra trocar a maneira em que todos eles trabalham para estabelecer oportunidade para as pessoas. Uma maneira foi aquele código que eles fizeram, mas não pode ser a única, podemos inventar uma outra, podemos estabelecer aquela diferença.
GC: Uma das coisas que o engenheiro sempre falava quando nós estávamos fazendo a visita na Villa 31 era que as normativas eram feitas para nunca ter uma fissura. Então, quanto é a porcentagem real de segurança no cálculo e quanto já é pra nunca ter uma linha [de fissura]? A ideia é trabalhar com isso, com essas porcentagens para que isso esteja em segurança e, ao mesmo tempo, começar a pensar como nós podemos transformar essas favelas construindo ainda mais, aumentando a densidade das villas, pra ter lugar para espaço público, lugar para todas as atividades que normalmente a cidade necessita, e para ter ventilação, para ter luz natural. A ideia é começar a trabalhar quais as modificações que podemos fazer dentro da construção feita.
EC: É impressionante quando a gente olha para a favela e para a palafita e vê todo um conhecimento de construção. Se a gente já possui todo esse conhecimento, por que é difícil se resolver um problema simples como, por exemplo, o déficit habitacional?
SB:Porque essas coisas são novas na disciplina. Nos livros da pós-modernidade, falam que a modernidade acabou no momento em que aquela construção de vivendas [Pruitt-Igoe] explodiu. Porque aquilo sempre foi a maneira como a disciplina trabalhou. Você tem a necessidade, não tem vivenda, vamos colocar todo mundo junto aí. Mas a resposta é muito tola a uma condição muito mais complexa que o domicílio das pessoas. Onde as pessoas moram, com quem ela se relaciona, onde trabalha, como obtém alimento, como é o conjunto daquelas construções que eles fazem, como é a cidade imaginada na sua integração, em sua simultaneidade, que tem uma complexidade muito maior do que aquela de contabilizar a quantidade de pessoas que não tem uma vivenda própria e fazer uma resposta habitacional direta para ela. Então deve-se a uma preguiça, a uma certa ideia de que você fazendo isso já está fazendo uma diferença. E, na verdade, você está fazendo uma diferença. Morar abaixo de um teto de cartão é bem mais difícil que morar abaixo de um teto que tivesse maior capacidade e tal. Mas aquilo não garante a felicidade das pessoas. Aquilo são as reflexões que aparecem depois. Então aquele jeito é extraordinário.
Por exemplo, você pode estar em Calcutá e vai compreender que é uma cidade com milhões de habitantes. Se você olhar a cidade, pode compreender a crise política, filosófica que até hoje está presente. Quando o país se separa entre mulçumanos e hindus, todos os mulçumanos se mudam para o norte e criam o Paquistão, aquele estado mulçumano. Todas aquelas pessoas hindus que estavam lá vão para a Índia para morar. E como são da mesma religião, da mesma sociedade, eles permitem, nessa situação de desamparo absoluto, que aquelas pessoas utilizassem a calçada. Então eles moram na calçada que é pequena. O lugar em que eles vão estar é bem menor que uma banca de jornal, tem três lajes de 1,60x1,70m. Eles não têm nada, não têm espaço, não têm dormitório. É tudo um closet. Eles moram em closets sucessivos, mas eles estão integrados com a sociedade. A sociedade não criminaliza. E você pode comparar nos subúrbios de Paris, aquelas construções feitas uma maravilha, uma técnica moderna incrível, onde todas aquelas pessoas têm muito mais metros quadrados, tem água, tem eletricidade. Eles percebem o isolamento da sociedade. Bem, tudo aquilo que está aí, mas que não coincidem com os períodos curtos de observação, que tem que ter um olhar no tempo só para compreender a complexidade de tudo isso, não é coincidente com os passos políticos. E o político precisa inaugurar uma coisa agora, num prazo de 4 anos. Termina fazendo asa norte, asa sul, porque é aquilo que ele pode fazer nesse momento, como a mentalidade daquela época. Só que agora temos que forçar um olhar diferente, porque aquele tampouco é uma perfeita resposta, foi uma resposta num momento dado, mas agora nós podemos fazer uma aproximação evolutiva melhor que aquilo.
Mas tudo aquilo que envolve uma mudança, precisa de uma energia extra para convencer, para fazer aquilo que a gente não tá acostumado. Precisa de uma energia para deter aquilo, fazer uma suspensão, imaginar um cenário e agora, sobre a dúvida, tentar se comprometer. E tudo aquilo tem que ser feito num arco onde a ideia de integração da sociedade está plenamente fortalecida. Se você não tem aquela condição, você não vai fazer aquelas transformações. Nós temos hoje um panorama com receitas que já foram feitas e divulgadas como soluções possíveis para problemas como aqueles. Mas aquelas não foram efetivas. Ainda hoje há muita gente que está fora daquilo e precisa ser integrada. Então nós temos que continuar conversando. É um esforço coletivo.
GC: E o déficit é maior ainda porque estamos imaginando como deveria ser, mas não sabemos se isso vai dar certo, por isso que é importante o compromisso de todos. Porque talvez não dê certo. Temos que tentar uma outra coisa, temos que ir modificando enquanto vamos andando, temos que ir modificando o que estávamos pensando, então o compromisso é maior ainda. Porque com certeza vão ter algumas coisas que não vão dar certo no caminho, mas é parte do processo. O erro é parte desse processo. Tem que ter erros pra ver quando tem acertos.
Entrevista realizada no dia 17 de abril de 2019 pelos alunos da pós-graduação “Geografia, Cidade e Arquitetura” (Escola da Cidade), transcrita pelos alunos Lucas Borges e Matheus Pardal. Edição de texto por Sabrina Fontenele e Ana Paula de Castro.