O curso de pós-graduação da Escola da Cidade - Geografia, Cidade e Arquitetura recebeu David Barragán para uma série de aulas. Na ocasião, foi realizada uma entrevista com o sócio do Al Borde, escritório vencedor de prêmios com o 100+ Best Architecture Firms 2019, Panorama Iberoamericano de Obras, XI BIAU, Asunción, Melhor documentário longa-metragem - 5to CINETEKTON, entre outros.
Escola da Cidade: David, pode falar um pouco sobre a Casa em Construção, onde era o escritório de vocês, como foi o processo de projeto?
David Barragán: Tínhamos um escritório perto dessa casa, mas subiu muito o aluguel. Começamos a pensar outras opções e não era possível encontrar o que procurávamos, porque havíamos decidido fazer uma mudança na organização. Nessa época muitos estagiários nos escreviam e os aceitávamos. Vinham dois, três, alguns meses. Alteramos a estrutura e estabelecemos o programa de estágio de seis meses e quatro pessoas, porque conseguíamos manter quatro pessoas. Começamos a pensar como poderia ser essa troca porque dinheiro é muito complexo em meses em que não temos salário, mas era importante encontrar uma maneira de troca. Fizemos, então, esse projeto para um cliente. Ele tinha uma casa de 600m² e 15 mil dólares. Podíamos fazer 30m² dessa casa, em 2012. Fizemos a primeira intervenção, tudo deu certo, ficamos amigos e no final de 2013 falamos “e se fizéssemos uma troca? ” Ele tinha uma casa que não usa, nós o conhecíamos, e lá só tinha ele em seus 30m². Construímos o modelo econômico para explicar quanto tinha que investir e como iríamos converter matéria em projeto e quais seriam as próximas etapas de construção. A Monica Moreira foi nossa assessora na área do patrimônio, tivemos outro assessor para economia e outro para áreas urbanas.
EC: No documentário Hacer Mucho con Poco, comentam que têm as sextas feiras livres. Esse sistema continua?
DB: Em trabalhos de arquitetura você não ganha por horas de trabalho. Quando é professor sim, porque tem número de aulas ou se está em cargos de direção, é diferente. Pode trabalhar sete dias ou um dia da semana, o importante é o resultado final. Começamos a pensar que nossa qualidade de vida é melhor se trabalhamos menos. Nosso tempo livre tem valor. Na sociedade do capital este tempo não tem valor, você só tem que trabalhar, trabalhar. Somos mais produtivos se só trabalhamos quatro dias, porque voltamos muito contentes na segunda-feira. Quando entendemos que voltar contente para trabalhar é importante, mudou tudo em nossas cabeças.
EC: Al Borde começou com você e Pascual, depois vieram mais sócios?
DB: Exato, mas não procurávamos ter escritório. Quando você mora em um país que não tem esperança, não sonha com isso. Por que não tem esperança? Os anos 90 foram muito complexos para o Equador, grande crise, o mundo todo fechou as portas. Comecei a escola de arquitetura no fim dos anos 90, junto com o Pascual. Tivemos sorte de estudar, nossos pais pagavam a escola.
EC: Depois disso, como foi a evolução da demanda de projeto, relação com clientes e processo de trabalho do escritório?
DB: Creio que não era consciente no início. Alguns clientes nos ligavam e pediam casas. A Escola Nova Esperança mudou tudo. Começamos a entender que haviam outras áreas de trabalho. Nenhum meio da arquitetura publicava projetos de desenvolvimento social nessa época e então esse projeto começa a ser visto em todo mundo, em todos os idiomas. Por que ele é tão importante para a gente? 2009 – 2019. Dez anos de trabalho na mesma área. A nossa vida mudou, a Escola Nova Esperança sempre foi o espaço aonde aprendemos tudo. Pela primeira vez trabalhamos como escritório em projeto de desenvolvimento social. Em nossas aulas ninguém falava de arquitetura para áreas marginais. Quando eu estudei – estudo de arquitetura no Equador agora é diferente, a América Latina é diferente – era só Europa, Estados Unidos e Japão. Da América Latina só existiam Luís Barragán, México e Oscar Niemeyer, Brasil. Ninguém estudava arquitetos da América Latina no início dos anos 2000. Para nós, a experiência na Nova Esperança foi impactante, porque começamos a entender que podíamos trabalhar diferente, que o conhecimento local é muito importante. Entendemos a primeira parte do projeto como uma construção participativa, porque fizemos o primeiro desenho e mostramos ao professor que coordenou tudo para construção. Uns anos depois, o projeto cresce muito, precisamos de área para as crianças maiores, agora a escola é o centro da comunidade e precisamos de um centro comunitário, vamos construir e vamos fazer participação. Convidamos uma antropóloga para fazer o encontro social, porque essas áreas da humanidade precisam de expertise diferente da do arquiteto. Em 2011 construímos uma lógica modular para construir com a comunidade. Esse sistema foi replicado em 2012 - as pessoas queriam mais espaço para a biblioteca, área para os adolescentes. Em 2013 voltamos ali e vimos que os pescadores, que não terminaram escola primária, em suas novas casas começaram a fazer estruturas diferentes, experimentaram com geometria. Um pescador fez uma planta decagonal. Isso é uma loucura para quem não terminou o primário! Dupla altura em algumas áreas, uma coisa louca! É muito difícil chegar lá, por isso [a comunidade] é tão charmosa e acontece tanta coisa. A metodologia de ensino é completamente diferente. Entendemos outras maneiras de ensinar, entendemos aprendizagem por motivação. Ninguém tem nota, nem avaliação, trabalham por projetos. Uma coisa maravilhosa. Agora vamos fazer uma escola de arquitetura lá e visitamos todos os meses, fazemos workshops, oficinas...
EC: A partir desse momento vocês identificaram a arquitetura vernacular como um objeto de estudo, estudam isso sistematicamente?
DB: Cada situação tem uma resposta. Se vamos para uma comunidade entendemos seu conhecimento vernáculo. Se vamos trabalhar em um edifício na cidade, trabalhamos com o que temos na cidade. É muito específico. Não temos uma especialidade.
EC: Como foi o processo de registro desse projeto?
DB: Dez anos nos fizeram querer fazer uma reflexão sobre o projeto. Então aplicamos para uma bolsa do Ministério da Cultura e pudemos pegar um drone. Foi muito emocionante. Porque não tínhamos planos construtivos para uma parte do projeto. Começamos a trabalhar tão unidos, tão juntos da comunidade que muita coisa foi definida com eles. A estrutura, a geometria é complexa, mas simples de construir. Foi muito bonito quando vimos tudo do ar.
EC: Fizeram todo o levantamento?
DB: Sim. Como o projeto ficou conhecido, sempre pediam desenhos e não tínhamos. Agora enviamos uma estagiária um ano atrás - pudemos pagar para viajar e desenhar. Também muitos amigos escreveram [no livro sobre o projeto], há muita reflexão sobre esses processos. Não falamos muito de arquitetura, vocês veem. Arquitetura é um pretexto para falar de nossas vidas. Se fossemos advogados, faríamos om mesmo... Ou se fizéssemos teatro. Porque na vida, tudo é o mesmo. A vida, escritório, escola, academia...
EC: Quando vocês usam maquetes e qual importância delas para construção?
DB: Sem modelos não podemos fazer nada. Desde o início, Pascual criou uma relação muito forte com nosso engenheiro que é o único que calcula adobe, terra, madeira, bambu. Investimos muito tempo do projeto em estrutura. Desenhamos, temos a ideia e depois conversamos com Pascual para resolver a estrutura. Explicamos nossos projetos ao engenheiro com maquetes. Maquetes em várias escalas. Fazemos uma primeira prova menor e fazemos mais modelos... de estrutura, não de espaço. Não estamos pensando como entra a luz. Estamos pensando em construir, em fazer possível. Sempre tem a possibilidade que não dê certo. Sem modelos não faríamos nada. São 100% modelos de construção. Por isso temos muitas ferramentas em nossa oficina e todos sabem usar. Eu não construo muito, mas sei usar todas. Sempre estamos construindo.
EC: O compromisso social que assumem com as comunidades, acredita ter transformação na sociedade ou na realidade das pessoas?
DB: Não iniciamos com compromisso social. Porque não os vemos como diferentes. Desenhamos uma casa de U$500.000,00 como desenhamos um centro comunitário com U$20.000,00 ou uma escola de U$200,00. Nesse sentido, não é uma questão de transformação social, mas é a sua transformação. Temos um conhecimento que podemos levar, mas também ganhamos um conhecimento. Não há uma relação hierárquica. Uma das perguntas que nos fazem sempre é “como fazem para que as pessoas participem?”. Não fazemos nada, só trabalhamos em projetos em que elas necessitam. Porque o problema de muitas ONGs ou de estúdios de arquitetura que veem o social como algo interessante é “vamos ajudar essa comunidade! ”, e quando chegam como arquiteto dizem “essa comunidade precisa de uma escola” ou “essa comunidade precisa organizar-se”. E, claro, se chega e presenteia seu trabalho, bom, mas os projetos muitas vezes não funcionam. Então nos perguntam, “por que [as pessoas] participam dos seus? ” Não é nada em especial. Trabalhamos só com necessidades reais. Há um professor que tem uma escola e 12m² em uma cabana muito pequena. Essa escola funciona muito bem e quer uma ampliação de 12m² para 26m². O que pode dar errado? Os pais de família estão felizes porque tem a melhor escola. O professor se envolve, os pais vêm a construir. Isso acontece com tudo, com qualquer centro produtivo para a comunidade. Trabalhamos em centros comunitários, em escolas, em todos esses projetos. Não nos vemos como superiores para fazer essas cosias. É só um trabalho mais.
EC: Você acha que esse tipo de prática, esse tipo de estúdio, só poderia existir na América Latina?
DB: Creio que sim. Somos uma prática que trabalha no Equador, porque ali é de onde vem nosso pensamento. Somos muito locais. Se estivéssemos em Guayaquil e não em Quito, seríamos diferentes. Não poderíamos ser os mesmos. Não temos um pensamento de multinacional. Por isso eu falava que achamos melhor esse pensamento de células terroristas, temos muito mais identificação com isso. Quando conhecemos o Assemble em Londres, ficamos muito felizes, era como se tivéssemos nascido em Londres. No momento da comida, eles também fazem a comida, o almoço, e brigam pela comida. Nós brigamos pela comida porque alguém sempre pega algo do prato do outro. Era muito similar. Então encontramos que em cada território podem haver pessoas que respondem ao território. Essa é a maneira de nos identificarmos. E essa é a gente com quem nos aliamos, que fazemos amigos.
EC: O que você comenta sobre a situação atual do Equador? Vê correspondência com o que está passando na América do Sul?
DB: Cada país é muito diferente. Não é possível fazer um paralelismo entre os processos. Mudam muito, não gosto de pensar que o que acontece de um lado acontece do outro. Também não gosto de pensar que há uma teoria de conspiração, que são os russos que estão pagando ou que os governos de direita são russos, cubanos e venezuelanos e de esquerda são dos Estados Unidos. O que creio é que a sociedade explodiu. Vivemos sociedades muito injustas, é demasiada injusta a diferença econômica, é demasiada alta. Não faz sentido que quem faça a limpeza de uma casa ganhe 40 vezes menos que o CEO de uma empresa. Nunca vão se encontrar em nada, nem seus filhos e suas famílias. Eu vi uma coisa que na Suíça é 1/7 em salário. Um quem faz a limpeza e sete o CEO. Nós somos 1/40 acho eu... ou mais, pode ser mais. Sim, tranquilamente! Sim, na Suíça está o dinheiro de todo mundo, está o dinheiro obscuro, fale o que queira, está a grana do narcotráfico e de todos os presidentes corruptos. Mas, ao final, há uma relação muito mais distinta e uma paridade, eles vão poder se encontrar. Em nossa sociedade, você não vai poder. Então, ao final, penso que a América Latina precisava explodir. É o momento de explodir. É complexo para nossa economia isso. É complexo para o trabalho sempre, porque os clientes já não querem fazer certos projetos, mas o mundo, a ordem precisa mudar. Precisamos encontrar outro modelo de vida, de uso de recursos. Não acho que tenhamos mudanças muito fáceis. Vai ser um processo mais largo. Há um tempo pensava que era como o que aconteceu na Europa no final dos anos 60 e 70 com toda essas mudanças sociais drásticas que houveram. Maio de 1968, Revolução de los Claveles (de 25 de Abril de 74) ... pensava que fosse talvez como esse momento agora nosso, vai tudo explodir de distintas formas. Porque já nem a direita e nem a esquerda te representam bem, já não estão funcionando os sistemas. Penso que é tudo muito diferente, mas que todos têm o mesmo problema: desigualdade. O dinheiro nas mãos de muito poucos.
EC: Nos projetos colaborativos, já passaram por algum episódio impedindo que trabalhassem no nível social que vocês estavam chegando nas comunidades?
DB: Trabalhamos juntos de forma colaborativa e de forma cooperativa. O melhor é explicar o projeto [para a comunidade], porque se têm dúvidas de como é a relação de trabalho ou se não o querem no seu território, nós não fazemos. É simples, sabe? É assim. Mudamos [o projeto] para outro lado. O que acontece, às vezes, quando trabalhamos em projetos que estão em desenvolvimento, é que os problemas não são de participação, são organizacionais da comunidade, políticas internas. Um presidente ou um líder da comunidade que quer esse projeto, mas isso entendemos logo. Nós estamos trabalhando muitas vezes – sempre – com um intermediário. Por exemplo, trabalhamos com uma ONG, com uma universidade, com uma fundação, que são quem precisa desse projeto com essa comunidade e estão trabalhando juntos. Não começamos do zero. Nossa antropóloga, Paula Castelo, nos ensinou a não trabalhar as diferenças, mas a encontrar as coisas comuns. Isso mudou para nós. Por exemplo, vocês três têm problemas, mas não vamos em tentar resolver esses problemas. Estamos trabalhando com o motivo de estarem juntos e de permanecerem juntos. Então se a nossa energia é focada nesse projeto juntos, vocês vão ter que resolver os seus problemas de outra maneira. Estamos trabalhando com o que nos une. Aprendemos com a antropóloga: o que nos une, nada mais. Não podemos perder tempo em outras questões, nunca vamos chegar a um acordo, porque somos arquitetos. Se você é sociólogo, antropólogo, trabalhador social que está construindo essa relação e resolvendo problemas da comunidade, então tudo bem. Mas somos arquitetos, não podemos fazer esses encontros. Temos que trabalhar no que todos temos claro que é o comum. Malu, por exemplo, que faz todas as oficinas de participação, ocupa muito tempo para entender o que é isso, o que eles têm juntos. Por isso quando assinamos contratos com ONGs falamos que precisamos de liberdade de operação, mudar o projeto. Você queria um centro de comunidade, mas agora tem um centro produtivo ou tem uma escola. Porque isso é o que todos querem, o que lhes une. Muito tempo e paciência, é conversa, conversa. Entender todo o panorama.
Entrevista realizada em 10 de dezembro de 2019 pelos alunos da pós-graduação “Geografia, Cidade e Arquitetura”, transcrita por Victor Piza. Produção de texto por Stela Mori Neri e Ana Paula de Castro.