Habitações compactas se tornaram a regra na maioria das grandes cidades do mundo. Altas densidades e o valor do solo nas áras urbanas tornou obrigatório que a maioria dos empreendimentos explorassem ao máximo a área edificável. O resultado disso são residências cada vez menores. Hong Kong talvez seja o caso mais extremo – com cerca de três quartos de seu território preservado como mata nativa, a porção restante é lar de mais 7 milhões de pessoas que vivem em um dos ambientes urbanos mais densos do planeta.
Recentemente, tivemos a oportunidade de conversar com o arquiteto Gary Chang, fundador do Edge Design Institute de Hong Kong, sobre sua visão em relação a habitações compactas, arquitetura de pequena escala, flexibilidade e o futuro de nossas cidades.
ArchDaily (Romullo Baratto): Você e seu escritório, Edge Design Institute, têm uma longa história de projetos que exploram a pequena escala. Poderia falar um pouco sobre este seu interesse?
Gary Chang: Natural da cidade de Hong Kong, sempre fui fascinado por cidades muito densas e intensas. Em Hong Kong, refletimos sobre a hipereficiência e a diversidade da vida urbana, apesar de seus desafios intrínsecos. Venho explorando esse assunto desde que fundei o Edge Design Institute, há mais de 26 anos, e estamos em busca de novas dinâmicas urbanas que lidem com temas como Mudança, Escolha, Coexistência e Conectividade [em inglês: Change, Choice, Co-existence e Connectivity].
Um projeto importante que realizamos no início do milênio é a Suitcase House, localizada na Comuna perto da Grande Muralha de Badaling, em um subúrbio de Pequim. Desenvolvemos um sistema de flexibilização espacial totalmente novo, com 50 painéis no piso que podiam abrir e fechar, resultando em diversas permutações em uma casa de 250 m².
Também experimentamos essas ideias em outras escalas de projeto, como, por exemplo, o jogo de chá Kung-Fu para a Alessi, em 2003. Com o tempo, fomos naturalmente desenvolvendo nossa pesquisa voltada para uma vida compacta – algo que teve início, na realidade, com o projeto e construção de minha própria casa, onde vivo desde os anos 70.
AD: O projeto da sua casa, recentemente apresentado na série Home da Apple Tv, continua a ser um marco em termos de habitat em pequena escala. O que o levou a projetá-la como um “transformer” doméstico?
GC: Moro neste apartamento compacto há mais de 40 anos e estabeleci um ritual de transformar minha casa de tempos em tempos, como uma pesquisa contínua para uma vida melhor, apesar de ser um apartamento relativamente pequeno de aproximadamente 4 por 8 metros.
Ao longo dos anos, centrei minha atenção mais na noção de tempo do que no próprio espaço físico, e neste último modelo M-2007 (chamado de Domestic Transformer, pois coincidiu com o ano de lançamento do primeiro filme da série Transformer), eu simplesmente exploro um sistema de vida baseado no tempo; em vez de eu passar de um cômodo para outro, como seria o tradicional, o apartamento se transforma para mim dependendo das funções que eu necessito e desempenho naquele momento. Basicamente, utilizo a casa toda o tempo todo – algo bastante distinto da definição convencional de uma casa, como o sistema japonês nLDK (n é o número de quartos, L para a sala de estar, D para a sala de jantar e K para a cozinha).
AD: Este projeto específico exigiu muita pesquisa em termos de materiais e sistemas mecânicos. Como foi o processo de pesquisa? Onde você encontrou inspiração e informações para isso?
GC: De fato, passei seis meses (um longo tempo para os padrões de Hong Kong) pesquisando e desenvolvendo o conceito do transformer, e levei mais seis meses para construí-lo juntamente com o empreiteiro. Na verdade, podemos dizer que passei muito mais tempo conhecendo o espaço – pois moro aqui desde os anos 1970 – e minhas necessidades. Estes são, por assim dizer, o ponto de partida e a metodologia da pesquisa.
A ideia por trás dessa casa é bastante simples: quando preciso de algo, aquilo aparece; quando não preciso, desaparece. Com cada função doméstica definida basicamente por seus limites verticais (isto é, uma parede que é, convencionalmente, estática), criei um sistema de paredes móveis que me permitiu transformar o espaço facilmente, brincando de esconde-esconde com os vários programas. Não acredito que uma casa se defina pelos cômodos que possui, mas pelas atividades que proporciona, desde escovar os dentes a ver um filme, tomar banho ou ler à janela.
Minhas memórias me influenciaram muito e me trouxeram muita inspiração. Lembro, por exemplo, dos dias em que não era muito comum ascender tantas luzes e, como resultado, os membros da família ficavam mais perto da janela e, consequentemente, mais próximos uns dos outros.
AD: A flexibilidade parece ser um aspecto fundamental de seus projetos, quase como se a pequena escala só pudesse ser acessível com designs altamente flexíveis. Poderia falar sobre a relação entre elas?
GC: A flexibilidade pode, definitivamente, fazer milagres em um espaço reduzido, permitindo que se façam mais coisas com maior conforto. Por outro lado, observo que a flexibilidade não se aplica apenas a uma casa compacta; desenvolvemos essa noção de uso flexível do espaço em projetos muito maiores, mesmo para residências de 4.000m².
Descobrimos que a flexibilidade do uso do espaço é cada vez mais comum e até “natural”, um aperfeiçoamento para fazer frente às incertezas e imprevisibilidades do futuro. Talvez ser flexível seja o nosso “novo modo de vida”. Um bom exemplo de flexibilidade em uma residência maior é um apartamento de 100m² que concluímos aqui em Hong Kong, em que projetamos uma série de paredes deslizantes que transformam a casa em vários espaços. Em outro projeto que realizamos em Guangzhou, uma cidade ao sul da China, criamos uma parede giratória que permite várias combinações de sala de estar, sala de jantar e sala de estudo.
AD: Vindo de um contexto urbano altamente denso como o de Hong Kong, você acha que seu interesse e consciência da importância de lidar com espaços compactos é algo, digamos, natural para você?
GC: Completamente! Não estamos apenas vivendo em um ambiente hiperdenso, mas também em uma situação hiperintensa em que as atividades colidem, onde somos capazes de fazer muitas coisas a cada dia e nossas vidas são condicionadas não apenas pelas dimensões físicas mas, sobretudo, pela noção de tempo. Estranhamente, as pessoas em Hong Kong estão ficando cada vez mais impacientes, especialmente em relação ao tempo; raramente vamos a lugares a mais de 30 minutos de distância e sempre queremos fazer várias coisas ao mesmo tempo. Porém, é preciso ressaltar que isso só funciona em uma cidade hipereficiente, com infraestrutura de transporte adequada.
Em relação a ser compacta, por outro lado, minha casa de 32m² está ficando “grande demais” para o contexto atual. Hong Kong está gradualmente se desenvolvendo no que chamamos de “nanocasas”, residências com área útil de até 18m². Recentemente, desenvolvemos um desses nanoapartamentos em Hong Kong, encomendado por uma das maiores construtoras que queria fazer uma pesquisa sobre as melhores proporções para apartamento ultracompactos de aproximadamente 16m² com "tudo o que você precisa" em uma casa, incluindo uma pequena adega.
AD: A pandemia global fez com que algumas pessoas repensassem sua vida na cidade e até considerassem a possibilidade de viver no campo. Ao entrarmos na terceira década do milênio, você acredita que espaços compactos e cidades densas terão o mesmo papel em nosso futuro?
GC: Acredito que a grande maioria da população ainda viverá em cidades urbanas, um movimento que seria totalmente impossível de reverter; a pandemia só vai desacelerar um pouco o processo, acredito. Em Hong Kong, desde a SARS em 2003 até a Covid-19, há um interesse crescente dos cidadãos em explorar o interior, as zonas naturais. Felizmente, mais de 70 por cento do território em Hong Kong é designado como parque e, ao que parece, a cidade manteve um equilíbrio bastante sustentável com as áreas hiperurbanizadas, mantendo a maior parte do território em sua condição natural, com abundância de verde e grandes extensões de água. Aqui nunca estamos muito longe da natureza, apesar da densidade.
AD: Em quais novos projetos você e o Edge Design Institute estão trabalhando?
GC: Nossa próxima missão é “exportar” nossas ideias de espaços compactos e nossa nova dinâmica para outros lugares. Percebemos que todos compartilhamos um fenômeno comum que define que se você viver em cidades, sua casa será menor. Deste modo, Mudança, Escolha, Coexistência e Conectividade farão parte de seu novo “kit de sobrevivência”.
Trabalhamos em um projeto em Estocolmo chamado Tellus Tower, onde a maior parte da torre residencial de 78 pavimentos é composta por unidades compactas, exatamente do mesmo tamanho e configuração da minha casa. Mais recentemente, desenvolvemos um projeto habitacional em Bangalore para famílias de renda média. Em 2006, projetamos uma casa de fim de semana no subúrbio de Moscou – batizada de The Domestic Express – onde desenvolvemos uma série de móveis que podiam se mover para dentro e para fora da casa por meio de um sistema bastante complexo de trilhos. Infelizmente, a casa nunca foi construída, embora o cliente tenha gostado do projeto e este exercício tenha alimentado nossas pesquisas sobre a arquitetura para uma vida flexível e compacta.
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