Portugal é um país de dimensões singelas, população pouco numerosa, mas um profundo legado no campo da arquitetura, sobretudo a produzida a partir de meados do século XX, que dispensa a necessidade de citar aqueles nomes que se destacaram no contexto do modernismo. Sua produção contemporânea, contudo, também merece atenção – e não apenas pelo virtuosismo com que projetam e constróem estes jovens profissionais do Porto, Lisboa e outras localidades, mas por tensionarem os limites de nosso campo disciplinar, na prática e na teoria.
Um exemplo destes escritórios e coletivos que se situam num território entre campos é a Architectural Affairs, liderada pela arquiteta Andreia Garcia. Fundado no Porto em 2016, o grupo lida com a prática arquitetônica a partir de três dimensões – o projeto, a curadoria e a editoração – e vem sendo reconhecido com diversos prêmios nacionais e internacionais. Dentre seus trabalhos mais recentes, Andreia Garcia e o Architectural Affairs ficaram a cargo da curadoria da Bienal de Arte Contemporânea da Maia’19 e da exposição em homenagem aos 20 anos de carreira de Fernando Guerra, na Roca Lisboa Gallery.
Tivemos a oportunidade de conversar com a arquiteta sobre a atuação do escritório, seus interesses além da arquitetura e a geração atual de arquitetas e arquitetos portugueses. Leia a entrevista completa, a seguir:
Romullo Baratto (ArchDaily): Poderia, por favor, explicar a origem do nome do escritório, Architectural Affairs, e sua estrutura de trabalho?
Andreia Garcia: A Architectural Affairs surgiu como uma reação por defeito. O defeito de não conseguir actuar sozinha na prática da arquitectura porque nunca a consegui entender como algo circunscrito a uma só disciplina, ou a uma só pessoa. A arquitectura não é autista, ou individualista, ou autocentrada. Este nome que, traduzido significa “Assuntos de Arquitectura”, representa isso mesmo, o encontro de um lugar comum onde cabem todos os temas e rostos que nos últimos 35 anos me permitiram construir uma amálgama de trilhos exploratórios para o meu sentido de existir, ora através da constelação de novos imaginários, ora da composição de cenários de escalas variadas, ora da vontade de questionar as tipologias arquitectónicas, ora da perseguição por geometrias naturais, ora da procura pelas múltiplas razões que dão origem à silhueta do vazio.
Talvez tenha aqui de considerar a pressão da conclusão do ciclo do doutoramento como um momento importante para consagrar a dimensão do tempo como pertinente para a preparação de algo útil, mais do que belo. Este contexto apresentou-se como a charneira para continuar a projectar o meu acto de pensar no futuro, actuando no presente. É também nesta mesma vontade de concentrar energias que se movem de forma dispersa pela história, por estórias e pelas suas pessoas que decorre a nossa estrutura de trabalho. Uma estrutura que se concretiza em articulação com outros pensamentos e outras formas de fazer.
RB: Vocês trabalham, basicamente, em três eixos – projeto, curadoria e edição – e parece haver muitas aproximações e sobreposições entre os trabalhos desenvolvidos em cada um deles. De que forma estas áreas se complementam ou tensionam?
AG: No universo infinito do ser e do habitar, a nossa imagem do mundo está em constante transformação. Só a crença de que a primeira função da Arquitectura é abrigar os nossos sonhos é que nos permite acreditar que a Arquitectura é efectivamente um benefício precioso. Somos os responsáveis por projectar uma poética que está em constante actualização já que cada um de nós transporta consigo um arquivo de natureza onírica, resultado do que vê e do que experiência. Carregamos um composto de imagens, de memórias e de ideias e todas elas sobrevivem em nós como uma bacteria multi-resistente que nunca deixa de nos habitar. Como arquitectos, todos os objectos, gestos e pensamentos em que tocamos irão de alguma forma reproduzir o que carregamos connosco. Esse toque não tem de ser feito sobre um dispositivo arquitectónico. O objecto arquitectónico não é o único que consciencializa as qualidades de intensificar aquilo que desejamos construir. As especificidades, fragilidades, questões, vocações, transformações, intensidades, contingências, instintos, programas são tudo partes de um corpo que pode assumir-se em algo material, mas também imaterial.
Uma casa, um praça, um livro, uma exposição, uma performance, tudo isto pode ser Arquitectura. A ferramenta de trabalho é comum. Para a condição de sonhar, a caneta é a mesma qualquer que seja a substância do resultado.
RB: Sobre isto que você acabou de comentar, projetar uma instalação ou uma edificação é, essencialmente, o mesmo exercício realizado em escalas distintas. Mas, e projetar uma exposição ou um livro?
AG: Acredito que somos limitados ou nos estamos a limitar quando trazemos apenas uma visão ou uma imagem para fazer aparecer o que desejamos.
Acredito numa prática de Arquitectura que é feita de forma livre e experimental, mas rigorosa e processual. O método de trabalho de uma casa, é o mesmo do método de um livro, ou de uma exposição. Porque não nos interessa o resultado, mas o processo.
Qualquer que seja o exercício conceptual, qualquer que seja o espaço, qualquer que seja o dispositivo, o nosso arquivo de memórias e referências será sempre o que nos irá qualificar e que irá intensificar o nosso sonho. Daí a necessidade de colaborações com outros estúdios, artistas, designers, sociólogos, antropólogos, investigadores etc. Porque todos nós somos Arquitectura, mesmo os não Arquitectos, e, por isso, todos nós, carregando a possibilidade de “essencializar”, somos o que construimos, qualquer que seja a sua aparência ou forma física.
RB: É cada vez mais recorrente vermos escritórios e coletivos de arquitetura se voltarem a outras áreas sem, necessariamente, abandonar a prática projetual, mas complementando-a. Acha que essa interdisciplinaridade é um aspecto específico deste período ou enxerga isso como normalidade – ou, até mesmo, essencial – para o futuro da arquitetura?
AG: É muito recente esta necessidade de darmos títulos a tudo e de querermos sectorizar o mundo. O nosso cérebro, com todas as suas limitações, é uma máquina desejante. Não é porque nos dizem que fizemos uma formação que nos permite desenhar uma casa que nos tornamos máquinas de um processo muitas vezes sublinhado por uma prática capitalista que subverte inclusivamente essa mesma formação que nos evoca para a necessidade de questionarmos, transformarmos e libertarmos pensamentos capazes de alterar os espaços da vida quotidiana. Não temos todos de testar os limites da disciplina da arquitectura para tornarmos pertinente a nossa prática. Não devemos querer encontrar uma forma única de soprar aquilo em que nos tornamos. Penso que ao Arquitecto compete caminhar melhor, só assim será mais livre, só assim errará melhor, só assim aprenderá melhor.
Não temos de ser todos iguais. Não acredito na sectorização da prática, na padronização do método. Acredito que não devemos perder de vista a possibilidade de chegarmos sempre mais longe se caminharmos juntos, e não só com os arquitectos se faz esse caminho.
RB: Portugal, há décadas, se destaca no campo da arquitetura, apresentando ao mundo referências históricas incontornáveis. Mas em relação ao que se produz atualmente, como você observa a atuação da nova geração de arquitetas e arquitetos em Portugal?
AG: O mundo está cada vez mais global, mais igual. Por um lado acho que nunca fui muito apoiante do discurso associado às escolas da Arquitectura: a escola suíça, a escola portuguesa, a escola italiana etc. Volto sempre à consciencialização para a importância de vermos o mundo que nos rodeia e trabalharmos o atlas que habita a nossa memória. Somos um corpo em constante construção e constelação. O mais importante de uma escola é termos a sorte de sermos sensibilizados para a importância da percepção. É a multiplicidade de experiências, de lugares, de trajectos percepcionados e interceptados, que nos permitirá sermos autoconscientes para contribuir para a transformação do mundo. Não consigo dizer que a nova geração portuguesa vê o mundo a transformar-se desde uma posição privilegiada e por isso mais capaz de reagir às possibilidades desse diálogo. Também não vou dizer que esta geração tem um pensamento mais valioso do que no passado, ou que é um produtor de linguagens mais pertinentes do que outros arquitectos sediados em outros contextos.
Da mesma forma que não acredito nas fronteiras disciplinares, não acredito nas fronteiras geográficas ou geracionais. Prefiro pensar nas experiências sobre qualquer contexto como mais uma camada ao tal museu de memórias que cada um de nós é.
Somos já todos cidadãos geolocais e, como arquitectos, quase que deveríamos ser obrigados a fazer um juramento nos valores do bem comum e continuar a pulverizar a empatia e o reconhecimento pelo contributo por qualquer um de nós que consegue encontrar um novo impulso, que, por sua vez, em algum momento nos vai permitir desenhar uma nova imagem. Essa imagem poderá ser um símbolo, um segredo, um signo do qual sairá um caminho de transformação. E se somos feitos por camadas, nunca saberemos se não é na composição menos exótica que está a mais finíssima concretização do novo caminho.
Esta entrevista é parte do tópico do mês do ArchDaily: Escritórios Jovens. Todo mês, exploramos um tópico através de artigos, entrevistas, notícias e obras. Saiba mais sobre nossos tópicos aqui. Como sempre, no ArchDaily valorizamos as contribuições de nossos leitores; se você deseja enviar um artigo ou um trabalho, entre em contato conosco.
N.E.: A entrevista foi feita por email e optamos por manter as respostas em seu idioma original, o português falado em Portugal.