Distante dos maiores centros econômicos e culturais do Brasil, o escritórios sauermartins, de Porto Alegre, vem colecionando reconhecimentos nacionais e internacionais que não condizem com sua dimensão e estrutura. Fundado por Cássio Sauer e Elisa T. Martins e, atualmente, composto por apenas mais dois profissionais, o estúdio foi um dos selecionados para a participação brasileira na Bienal de Arquitetura de Veneza em 2018, finalista do Prémio Debut da Trienal de Lisboa de 2019, teve uma obra escolhida para a seleção nacional do 3º Prêmio Oscar Niemeier, foi recentemente selecionado como um dos melhores Jovens Escritórios de 2020 pelo ArchDaily e representará o Brasil na próxima Bienal de Arquitectura Latinoamericana de Pamplona
Com uma prática caracterizada por sua singular posição geográfica e cultural, que condensa referências tanto do Brasil como de outros países do sul da América Latina, sauermartins explora uma estética do frio e do universo rural, matizada por influências modernas e preocupada em responder problemas concretos e atuais.
Tivemos a oportunidade de conversar com Elisa e Cássio sobre a trajetória do escritório, suas inspirações e alguns de seus projetos. Leia a entrevista a seguir.
Romullo Baratto (ArchDaily): Como é a estrutura do escritório? Além de vocês, há outros arquitetos ou estagiários?
sauermartins: Somos um escritório pequeno, formado pelos sócios Cássio Sauer e Elisa T. Martins, que configuram uma espécie de núcleo central complementado por arquitetos e estagiários, que aumentam ou diminuem de número conforme as exigências e escalas dos trabalhos em andamento. No momento o escritório está composto além dos sócios, pelo arquiteto Tomás Culleton e pelo estudante Antonio Cornely. Em concursos ou trabalhos de maior escala temos buscado parcerias com outros arquitetos, escritórios ou equipes multidisciplinares, o que tem proporcionado diferentes possibilidades de discussão e atuação.
RB: Vocês têm uma produção ainda reduzida, mas, em contrapartida, já ganharam certo reconhecimento nacional e internacional. Podem falar um pouco sobre como isso acabou acontecendo?
sm: Nossa produção sempre foi impulsionada por um questionamento constante em relação ao papel atual da disciplina. Buscamos respostas concretas para problemas também muito concretos, questionando contextos – locais, históricos, geográficos, culturais, econômicos, suas características e restrições – com intenção de produzir projetos que respondam ao maior número de variáveis possível e interajam positivamente com estes contextos em que estão inseridos. Os projetos são, de certa forma, aproximações, discussões sobre o mundo em que nos encontramos e sobre as relações possíveis com o lugar, sua memória e identidade, em busca de transformar realidades.
Nesse sentido, propomos um trabalho experimental e investigativo, que parte de um reconhecimento da importância da disciplina em uma constante busca por respostas capazes de estabelecer um vínculo entre a teoria e a prática profissional.
Nosso processo de trabalho se aproxima muito do artesanal. Trabalhamos com desenhos à mão, maquetes físicas e fotografias analógicas, nos interessa o envolvimento em todas as fases de projeto e de construção, e ainda a possibilidade de fotografar as obras, processos que entendemos também como partes fundamentais do projeto. Esta visão crítica aplicada aos projetos, o processo de trabalho e uma vontade ou necessidade de produzir projetos muito próprios é o que nos impulsiona e talvez seja o que tenha levado a algum tipo de reconhecimento.
RB: Vocês dois já trabalharam com arquitetos de grande reconhecimento. Elisa trabalhou com Álvaro Siza e Paulo Mendes da Rocha, enquanto que Cássio trabalhou com o Elemental. Como essas experiências contribuíram com a formação individual de vocês e, posteriormente, com a produção do escritório.
sm: Ao longo de nossa trajetória acadêmica e profissional tivemos a oportunidade e a sorte de colaborar, com escritórios e arquitetos que admiramos muito e que são muito distintos entre si. essas experiências nos proporcionaram vivenciar uma importante aproximação entre projeto e obra e também a constante busca por uma arquitetura com algum significado.
A construção do edifício sede da Fundação Iberê Camargo (1998-2008) foi o acontecimento que marcou nosso período de formação acadêmica (2002-2009). Foi uma grande escola, possibilitou uma nova forma de ver a arquitetura, gerou um interesse nas relações entre obra e projeto, e uma aproximação a Portugal, à FAUP – na qual tivemos a oportunidade de realizar intercâmbio acadêmico – e ao escritório do arquiteto Álvaro Siza Vieira, no Porto, que proporcionou um período de estágio de intenso aprendizado em um universo particular repleto de maquetes e desenhos, que refletem um enorme esfoço e dedicação no processo de projeto.
Da mesma forma, o interesse pelo que acontece no centro do país nos levou, em distintos períodos, a São Paulo. Desde um curto período no escritório montado dentro da obra do Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, projeto de Pedro e Paulo Mendes da Rocha, e o interesse em estudar e entender a obra do Paulo, ao período de estudos na Escola da Cidade, ou mesmo na colaboração na equipe local do projeto para o Complexo Cultural da Luz, junto a José Luiz Canal, acompanhado por um período de trabalho no escritório de Herzog & de Meuron na Suíça, nos proporcionaram experiências muito diversas que foram se sobrepondo com interesses de estudo e pesquisa, o que se reflete tanto na prática profissional como na prática acadêmica em questões como o interesse pela intervenção no construído e pela aproximação entre arquitetura e arte, que também se mostram presentes em nossa recente trajetória.
A relação com o contexto latino-americano se deu desde as viagens em tempos de faculdade e as colaborações com o MAPA Arquitetos, na pós-graduação na Escola da Cidade, e, principalmente, no período de colaboração no Elemental. esse interesse na arquitetura do sul do continente motivou uma das linhas de pesquisa que seguimos, e gerou a dissertação de mestrado Arquitetura x Escassez, sobre a importância da produção recente latino-americana e sua relevância no cenário mundial, reconhecendo a qualidade da arquitetura produzida em países economicamente periféricos e em contextos de escassez de recursos.
Procuramos incorporar um pouco dessas experiências no nosso processo de trabalho. Talvez a forma como elas mais colaboram seja em uma visão crítica da disciplina e daquilo que projetamos, incorporando a intenção à arquitetura e a busca por questionar e propor. Nesse sentido, nos interessa estudar e entender a produção tanto dos arquitetos com maior reconhecimento que, de certa forma, participaram de nossa trajetória, como a de escritórios jovens que atuam em condições e contextos semelhantes aos nossos e têm produzido arquiteturas muito significativas.
RB: Parece que existe uma conexão muito forte entre o escritório e outros países latino- americanos: participações em eventos, seleções para prêmios e bienais etc. Seria isso um reflexo da posição geográfica do escritório – o Rio Grande do Sul tem muitas similaridades com o Uruguai e a Argentina, por exemplo – fora do eixo Rio - São Paulo - Belo Horizonte?
sm: Porto Alegre é a capital mais austral do país, está localizada quase que equidistantemente – no centro de um círculo imaginário com aproximadamente 1.000 km de raio – de cidades tão importantes e distintas como São Paulo (br), Asunción (py), Montevideo (uy) e Buenos Aires (ar). Se pensarmos em distâncias em linha reta, estamos mais próximos de cidades como Santiago do Chile (1.870 km) do que da capital de nosso país (2.260 km); mais próximos do Ushuaia, extremo sul do continente (3.069 km) do que de Natal, no Rio Grande do Norte (3.175 km), ou ainda, estranhamente, mais próximos da estação Comandante Ferraz, na Antártica (3.600 km) do que do Monte Roraima (4.046 km), no extremo norte do país. Essa associação acaba por ser importante, pois entendemos que apesar das intrínsecas relações com o restante do país, estamos de alguma forma um pouco distantes dos principais centros econômicos e culturais brasileiros e, ao mesmo tempo, historicamente marcados por esta contiguidade com os países vizinhos.
O mate, de origem indígena, é um aspecto cultural muito marcante e que evidencia este território comum do sul do Brasil, do Uruguai, da Argentina e Paraguai. Outras aproximações culturais podem ser encontradas na música, nos costumes, na geografia dos Pampas e até mesmo na produção de uma arquitetura mais singela e austera.
É possível, inclusive, como propõe Vitor Ramil, estabelecer uma aproximação estética com o sul do continente, uma ‘estética do frio’ – que, para Ramil, em um diálogo com Ítalo Calvino, aparece na forma de sete cidades frias: rigor, profundidade, clareza, concisão, pureza, leveza e melancolia; conceitos que de alguma forma identificamos também em nosso trabalho - e que estão ligados a estas particularidades do clima e da paisagem que tanto diferenciam a região sul do restante do país. Somos subtropicais em um país marcado pela tropicalidade.
Esta aproximação com a memória e a identidade do sul, dos campos, do frio, do rural se faz presente nos projetos em uma referência a alguma simplicidade essencial da relação entre lugar e arquitetura revelada na austeridade e no pragmatismo presentes em suas construções.
Porto Alegre é, ainda, uma cidade marcada por edifícios projetados por ‘estrangeiros’: a CEASA, de Eladio Dieste - junto a Carlos Maximiliano Fayet, Cláudio Luiz Araújo e Carlos Eduardo Comas -, e o Edifício Esplanada, de Román Fresnedo Siri, mostram as fortes aproximações entre Brasil e Uruguai também na arquitetura; por outro lado, o Centro de Mecanização do Banco do Brasil, dos Irmãos Roberto é uma importante conexão com a arquitetura do centro do país, e recentemente a Fundação Iberê Camargo, uma conexão com Portugal. Todos esses edifícios estão muito presentes e marcados em nosso imaginário. Nesse sentido, nos colocamos entre dois mundos muito distintos com os quais procuramos dialogar, um deles conformado pela excelência destas arquiteturas, e o outro, pelas autóctones construções rurais e tradicionais que surgem ao nos afastarmos da área metropolitana: construções frágeis e singelas que tanto nos interessam.
RB: E como essa especificidade territorial interfere ou condiciona a prática do escritório?
sm: Por termos referências tão distintas, nosso trabalho parece ser, pelo menos até este momento, uma constante busca pelo que é possível construir aqui. Em geral trabalhamos em uma realidade comum às grandes cidades brasileiras, vivemos em uma cidade segregada, lidamos com projetos com pouco orçamento disponível, geralmente não dispomos das grandes equipes multidisciplinares com as quais aprendemos a trabalhar em outros contextos, não contamos com a disponibilidade imediata da industrialização nem da mão de obra especializada de grandes centros como São Paulo ou Buenos Aires, por outro lado, nosso contexto não é tão escasso em recursos como outras partes da América Latina.
No nosso caso, não estamos condicionados por uma linha de pensamento hegemônica, nesse sentido cada projeto é uma descoberta e a busca por uma solução eficiente, viável e que faça sentido em nosso contexto e em nosso tempo.
RB: Um dos projetos mais conhecidos de vocês é a Casa de Lata, publicada e exposta em diversos meios. Podem falar um pouco sobre as decisões projetuais envolvidas aqui, sobretudo em relação à escolha por estrutura mista de concreto e aço?
sm: A casa de lata está localizada em Canela - RS, e pode-se dizer que é uma tentativa de aproximação ao local. Neste sentido, as técnicas construtivas empregadas se relacionam às construções tradicionais da região - casas com estrutura e fechamentos em madeira pousadas sobre embasamentos de pedra, que proporcionam o afastamento do solo e da umidade e possibilitam uma ventilação cruzada inferior. Buscamos replicar essas estratégias utilizando materiais e tecnologias contemporâneas. Dessa forma, construímos uma base em concreto elevada e ventilada que serve de apoio para uma estrutura leve de vigas e pilares metálicos, possibilitando os vãos necessários para atender ao programa da casa e da garagem. Os revestimentos de madeira foram substituídos, em parte, por telhas metálicas, as mesmas utilizadas na cobertura. de certa forma as estratégias empregadas são também uma resposta ao clima e à variação climática típica da região.
Existia também o interesse por uma investigação de diferentes técnicas construtivas. A montagem de peças industrializadas e o processo manual desenvolvido pela mão de obra local – especialmente qualificada no trabalho com a madeira – possibilitaram uma série de detalhes construtivos e ainda a execução dos encofrados para o mobiliário fixo em concreto aparente em uma busca por um possível diálogo entre o artesanal e o industrial no processo de construção.
A aparência escura dos revestimentos exteriores remete à técnica local tradicionalmente empregada no tratamento e proteção de casas de madeira e dialoga com os dias nublados de cerração característicos da região. A continuidade dos planos e materiais configura um volume monolítico que, a partir do pátio interno, se transforma em planos transparentes e permeáveis explorando as conexões entre interior e exterior que qualificam os espaços da casa e sua relação com a paisagem envolvente.
RB: Outro projeto conhecido é o Observatório do Campo e das Estrelas, construído em Ceibas, Argentina. Um projeto lúdico feito de estrutura de madeira e tecidos. Podem comentar sobre ele?
sm: O projeto do observatório foi desenvolvido para um workshop de construção em madeira no interior da Argentina e é uma resposta ao contexto sobre o qual falávamos anteriormente. Interessava-nos a possibilidade de construir uma pequena arquitetura, uma estrutura que respondesse a essa condição geográfica que une o sul do Brasil, o Uruguai e parte da Argentina. Nesses campos infinitos e geralmente planos, com poucas ondulações, algumas árvores, dispersas construções rurais e uma paisagem comum que ultrapassa as fronteiras políticas. Entendemos que seria interessante construir uma estrutura vertical que interagisse com a paisagem e contrastasse com sua horizontalidade predominante – essa linha fria do horizonte.
Nesse sentido, propusemos a construção de um pequeno observatório, uma plataforma que mira os campos e que, de uma forma ainda mais poética, mira o céu e aquilo que as luzes das cidades aos poucos vão apagando, as estrelas.
É um projeto poético, mas também uma investigação construtiva e cultural, que propõe um diálogo com as construções rurais, muito singelas. Existe nele um estudo estrutural, com as fundações aparentes, os encaixes entre as peças e a repetição de elementos estruturais que vão diminuindo de tamanho em altura de acordo com os esforços que recebem; um estudo da configuração de um espaço interior delimitado por uma pele leve e permeável que possibilita o enquadramento de visuais; um estudo de um pequeno percurso ou promenade. O que se propõe é um pequeno espaço para se estar, onde se dissolve o limite entre interior e exterior e que acaba por resultar em uma construção difusa, muito simples e muito complexa.
Uma pequena estrutura que, ao mesmo tempo, é muito frágil e muito potente, muito translúcida e muito opaca, muito densa – com 20 apoios em apenas 15 m2 – e muito leve e permeável. Uma exploração construída em apenas uma semana por nós dois e nove estudantes e que pode ser descrita como um pequeno acontecimento em meio à vastidão dos campos. Um singelo observatório, com 9,60m de altura, alguns metros de tela e 1km de madeiras.
RB: Há algum projeto atualmente em construção? Podem falar sobre o que está por vir?
sm: Existe na nossa prática sempre um interesse em trabalhar com projetos de diferentes escalas e programas, e ainda com técnicas construtivas diversas, decididas caso a caso. No momento, estamos desenvolvendo um pequeno atelier com estrutura em madeira e revestimentos em policarbonato; um pequeno projeto multifamiliar em meio à natureza, com estrutura e fechamentos em aço; e um edifício multifamiliar ainda em fase inicial de projeto, todos com previsão de início da construção para o próximo ano.
Nos últimos dias ainda recebemos a notícia de que, em 2021, com Gustavo Utrabo, representaremos o Brasil na próxima Bienal de Arquitectura Latinoamericana de Pamplona, uma interessante oportunidade de aproximação com esta nova geração de arquitetos latino-americanos, notícia que, junto à seleção entre os Jovens Escritórios de 2020 pelo ArchDaily, nos motiva a seguir trabalhando neste período tão difícil.
Este artigo é parte do tópico do mês do ArchDaily: Escritórios Jovens. Todo mês, exploramos um tópico através de artigos, entrevistas, notícias e obras. Saiba mais sobre nossos tópicos aqui. Como sempre, no ArchDaily valorizamos as contribuições de nossos leitores; se você deseja enviar um artigo ou um trabalho, entre em contato conosco.