A arquiteta Gabriela de Matos, criadora do projeto Arquitetas Negras, foi eleita a Arquiteta do Ano pelo Departamento Rio de Janeiro do Instituto de Arquitetos do Brasil. Junto dela, o IAB-RJ homenageou também a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em evento online realizado esta semana para o anúncio dos selecionados da 58ª Premiação Anual e do 37º Prêmio Arquiteto do Amanhã.
Dedicando-se a explorar o debate racial de forma interseccional ao debate de gênero, de arquitetura e de cidade, Gabriela destacou em seu discurso a importância de reconhecer que "embora o campo da arquitetura e urbanismo seja ainda um campo elitista e racista, é justamente a formação de arquitetas e arquitetos urbanistas que vejam a arquitetura como ferramenta social, que pode contribuir para a diminuição dos abismos e desigualdades presentes em nossa sociedade".
Formada em Arquitetura e Urbanismo pela PUC-MG (2010), Gabriela tem especialização em Sustentabilidade e Gestão do Ambiente Construído pela UFMG (2016) e é mestranda na FFLCH-USP. Em 2014, fundou o escritório Brandão de Matos - Arquitetura e urbanismo e, em 2018, o projeto Arquitetas Negras que atualmente mapeia a produção de arquitetas negras brasileiras. Assina o editorial do livro Arquitetas Negras vol.1 (2019), vencedor do prêmio IAB-SP na categoria Publicações de Arquitetura (2019). É, também, Vice presidente do IABsp na gestão 2020-2022.
Suas pesquisas enfocam o racismo estrutural e suas influências no planejamento urbano brasileiro, e a arquitetura contemporânea produzida em África, sua diáspora, e suas linguagens. Gabriela acredita na arquitetura enquanto linguagem artística e cultural, além de ferramenta essencial na luta contra a desigualdade social.
Leia o discusro completo da arquiteta
Primeiramente gostaria de parabenizar a atuação do IAB-RJ neste ano de grandes desafios e agradecê-lo pelo reconhecimento do meu trabalho através deste prêmio. Vou iniciar minha fala hoje, refletindo sobre quatro perspectivas diferentes da palavra reconhecimento. Eu escolho falar a partir dos significados desta palavra porque acredito que ela representa muito do que venho discutindo e construindo ao longo da minha trajetória profissional.
Um dos sentidos da palavra reconhecimento, é o ato ou efeito de reconhecer, admitir como verdadeiro, como o reconhecimento de um direito. Por exemplo, reconhecer que embora meus antepassados negros tenham deixado uma grande contribuição para a arquitetura brasileira, nós não temos tido o direito de acessar grande parte deste legado. Reconhecer ainda, que mesmo que nossas cidades tenham sido construídas por mãos negras, temos nosso trânsito nessas cidades constantemente cerceados.
Reconhecer também que mesmo que tentem apagar historicamente nossas referências, é nosso direito acessar e valorizar nossa produção de pensamento enquanto mulheres e homens negros. Reconhecer que embora o campo da arquitetura e urbanismo seja ainda um campo elitista e racista, é justamente a formação de arquitetas e arquitetos urbanistas que vejam a arquitetura como ferramenta social, que pode contribuir para a diminuição dos abismos e desigualdades presentes em nossa sociedade, sobretudo no que diz respeito ao direito à moradia, questão tão essencial para a população negra e pobre no Brasil.
Outro sentido da palavra reconhecimento, é lembrar um benefício e ter gratidão por ele.
Aqui, eu reconheço o privilégio de ter ingressado e concluído um curso de nível superior, sabendo que a maioria da população negra no Brasil não acessa este direito. Reconheço o benefício de usufruir de uma estrutura criada por minha mãe, mulher negra assistente social, por meu pai, um homem branco arquiteto que me apresentou o universo da arquitetura, ambos contribuindo para minha visão de mundo e minha formação.
A palavra reconhecimento também se refere à falta, e neste sentido, o projeto Arquitetas Negras é resultado desta constatação. Que mesmo com 582 arquitetas negras mapeadas até este momento no Brasil, a falta de reconhecimento destas profissionais faz com que o imaginário acerca do arquiteto, além de produzir assimetrias sobre quem pode ou não ocupar este espaço, continua inviabilizando estas existências. E que mesmo com as inúmeras contribuições destas profissionais, existe uma constante tentativa em deslegitimar e bloquear o necessário debate sobre arquitetura e cidade feito através de uma perspectiva racial.
E o último uso para esta palavra que trago aqui, é o reconhecimento de um terreno. Vejo em terreno um espaço amplo, que é onde tenho situado meu trânsito e minha atuação nos últimos anos. Meu mestrado na FFLCH/USP, com as necessárias discussões sobre a invisibilidade da produção e prática de arquitetas negras, o livro Arquitetas Negras vol.1, que organizei e lancei em 2019, com textos de 13 arquitetas negras – que foi premiado pelo IAB-SP na categoria de Publicações de Arquitetura. Minha participação no coletivo Aflitos, que se propõe a revisar a narrativa sobre a história e construção do bairro da Liberdade aqui em São Paulo, sinalizando que este território também é negro. E como co-fundadora do Instituto Tebas de Patrimonio e Cultura – que reconhece o primeiro arquiteto negro brasileiro, o Tebas e sua grandiosa contribuição não somente para a arquitetura da cidade de São Paulo, mas para a arquitetura brasileira como um todo.
Por fim, agradeço aos colegas que levam o debate racial de forma interseccional ao debate de gênero, de arquitetura e de cidade, construindo um novo momento da arquitetura brasileira. Agradeço ao IAB-SP por ter aberto suas portas para mim. Ao grupo etnicidades da FAU/UFBA por ter me despertado para as relações entre arquitetura africana e arquitetura brasileira. À Escola da Cidade pela oportunidade de lecionar novamente, aos coletivos de estudantes negros de arquitetura e urbanismo, por representarem a potência da nova geração da arquitetura brasileira. À minha família pela paciência e parceria nessa jornada. E a todas e todos os colegas que de alguma forma se sentem contemplados pela caminhada.
Reconheço a importância de ser a primeira arquiteta negra a receber este prêmio, embora minha missão esteja baseada em não ser a única e, sim, ver meus pares ocupando estes espaços. Obrigada!