"A casa está entre os primeiros conceitos compartilhados pela sociedade e pela arquitetura", refletem André Tavares e Pippo Ciorra, curadores da exposição At Home: Projects for Contemporary Housing [Em Casa. Projetos para Habitação Contemporânea], em cartaz na Garagem Sul do Centro Cultural Belém, em Lisboa. A mostra, que é um desdobramento de outra anteriormente realizada no Museu MAXXI de Roma, reúne peças do acervo da instituição italiana e busca cruzamentos com a produção portuguesa contemporânea. Seu objeto de interesse – a casa, o lar – nunca esteve tão em destaque como agora.
Reunindo habitações de diferentes escalas, contruídas em contextos diversos a partir de métodos e técnicas variados, projetadas por arquitetos italianos, portugueses e internacionais, a mostra agrupa trios de projetos a partir dos quais é possível tecer relações que extrapolam geografias e materialidades e oferecem combustível para pensarmos o que será das habitações do futuro, como serão as casas de amanhã.
Tivemos a oportunidade de conversar com Tavares e Ciorra sobre a exposição, suas motivações e as expectativas com a abertura da mostra no espaço físico da Garagem Sul. Leia a seguir.
Romullo Baratto (ArchDaily): Como se deu esta colaboração entre estas duas grandes instituições de Portugal e Itália?
André Tavares: A Garagem Sul atua como uma plataforma para apresentar e discutir, com um público amplo, o que está acontecendo na cultura arquitetônica. O objetivo é compartilhar maneiras pelas quais a arquitetura pode ser relevante para a sociedade. No ano passado, depois de visitar a exposição At Home apresentada em Roma, percebemos que seria oportuno trazer a exposição a Lisboa, e ampliar o debate em curso sobre o projeto da casa entre arquitetos de diferentes gerações e realidades. Isto apresentou a possibilidade de se envolver em discussões em curso em Portugal, e, ao fazê-lo, de ativar debates em todo o contexto europeu. Foi assim que começamos a trabalhar com o MAXXI para desenvolver a exposição que agora inaugura em Lisboa.
Pippo Ciorra: Ficamos extremamente felizes e entusiasmados quando recebemos a proposta da Garagem Sul – de não só exportar, mas também expandir a exposição.
A exposição trata da noção de casa: a casa está entre os primeiros conceitos compartilhados pela sociedade e pela arquitetura. O início da arquitetura pode ser um telhado ou uma caverna, ou algo em uma árvore, mas em todo caso, o objetivo era providenciar uma casa. Quando falamos em conectar a sociedade e a arquitetura, algo que é extremamente importante hoje, pensamos na cultura arquitetônica que nos rodeia e ela está fundamentada no conceito de morar. O conceito de casa é importante, especialmente nos dias de hoje, porque precisamos entender as bases sob as quais é possível resgatar os elos entre a sociedade e nossa profissão, disciplina e cultura – a cultura do arquiteto.
Nesse sentido, esta foi uma oportunidade muito boa. A ideia, em Roma, era fazer uma exposição híbrida entre a nossa coleção e arquitetos convidados. Os materiais da coleção do MAXXI foram combinados em um conjunto de diálogos com diferentes arquitetos contemporâneos. Isso se tornou ainda mais interessante quando tivemos a possibilidade de expandir ainda mais essa conversa com o acréscimo de exemplos portugueses. É engraçado pensar que a cultura arquitetônica italiana – uma cultura acadêmica – nunca prestou muita atenção à casa tradicional italiana, mas sempre prestamos muita atenção aos portugueses. Estamos sempre muito atentos toda vez que uma casa ou habitação coletiva é projetada por um arquiteto como Siza, por exemplo.
RB: A exposição se baseia principalmente no arquivo histórico de arquitetura italiana do MAXXI. Que contribuições e questionamentos isso traz para a arquitetura contemporânea portuguesa?
AT: Uma das chaves para a mostra de Lisboa foi expandir as duplas [apresentadas em Roma] para trios. O diálogo estabelecido em Roma entre a coleção do MAXXI e as obras de arquitetos contemporâneos foi ampliado para trazer à discussão questões que se relacionam com os vários modos de prática, tipologias e funções arquitetônicas. Temas como materiais de construção – entre arquitetura construída em pedra ou construída em madeira – ou a urgência de novas funções e usos para as casas. Temos o exemplo do Aires Mateus de residências para idosos, que representam novas formas de convivência e novas demandas de espaços de convivência que se tornam cada vez mais relevantes para a nossa sociedade contemporânea. Outro exemplo seria o processo de construção participativa da temporária Casa do Vapor. A ambição, a extensão e as ideias da mostra de Roma constituem a espinha dorsal para uma visão renovada da recente produção arquitetônica portuguesa. Buscamos enxergar esta produção através de novas lentes e oferecer uma visão diferente das representações que foram produzidas e promovidas nos últimos anos.
RB: Vocês diriam que esta exposição se concentra mais na ideia de casa ou lar? Esta é uma diferença sutil percebida especialmente na versão em inglês do título (que traduz Em Casa como At Home), mas que pode alterar profundamente o modo como experienciamos a mostra. Ou vocês não fazem essa distinção?
PC: Para o MAXXI, as exposições oferecem, por um lado, a possibilidade de investigar um tema – que neste caso era “casa” – e, por outro, um meio de investigar, expandir e debater sobre nosso acervo. Esta coleção conta com muitos arquitetos italianos dos anos 60 e 70, com todo o legado que os acompanha. Se você pensar em Aldo Rossi e Carlo Aymonino, ou em Mario Fiorentino, a casa é a matéria-prima para construir a cidade. Isso foi extremamente importante na história da arquitetura italiana, da arquitetura europeia, mas de certo modo deixou de lado a discussão sobre a casa em si. A casa é o espaço onde as pessoas vivem e consideramos fundamental abordar isso. Se pensarmos em lar versus casa, este segundo termos se refere à tradição arquitetônica da casa unifamiliar. Não em termos de villa, mas sim de moradia unifamiliar, em oposição a projetos de grande envergadura. Ao mesmo tempo, há um rico legado de obras menos conhecidas de moradias unifamiliares a serem descobertas no arquivo, por arquitetos italianos superinteressantes, radicais, progressistas ou urbanos dos anos 50, 60, 70. Esses exemplos encontram ecos na produção contemporânea de hoje. Tentamos construir algumas conexões estranhas e oblíquas entre exemplos antigos e projetos contemporâneos, por exemplo, entre Monaco Luccichenti e Pezo von Ellrichshausen, que ecoam mutuamente suas produções. A ideia da lar foi importante para possibilitar o foco em um espaço onde os arquitetos se engajam na presença do ser humano, do habitante, em oposição à casa como uma parte da cidade. Foi assim que iniciamos e desenvolvemos o projeto. Então, é claro, incorporamos muito o tema lar versus casa.
RB: Projetos italianos são reunidos a projetos portugueses e, às vezes, também edifícios e arquitetos de outras localidades. O agrupamento não é aleatório, é claro, e estabelece narrativas. O que essas pequenas narrativas falam sobre a exposição como um todo?
AT: A exposição começa na escala do abrigo e termina em grandes habitações públicas, indo da Casa Malaparte ao Corviale, uma construção de 1 km de comprimento. Esse tipo de intensidade crescente, em termos de dimensão e problemática, passando dos edifícios isolados aos que dialogam tanto com a cidade quanto com a ideia de casa – como dizia Pippo – foi a estrutura narrativa que nos permitiu caminhar em várias direções. As narrativas paralelas que surgem ao lado dessa estrutura linear são cruciais para oferecer conteúdo ao visitante que não precisa acompanhar a exposição de A a Z. Esperamos que os visitantes gostem de descobrir o que está acontecendo “em casa” sem muito compromisso e, então, notar essas discussões em diferentes escalas – da casa unifamiliar à cidade. Por exemplo, um dos grupos da exposição apresenta filmes da Moriyama House, SAAL (um programa de habitação pública desenvolvido em Portugal após a Revolução dos Cravos de 1974) e a Torre Verde de Stefano Boeri em Milão. A exposição torna-se o espaço para o visitante criar conexões inesperadas. Acho que as narrativas se desenrolam de forma bastante livre, ao contrário de um ensaio acadêmico, mas sempre se baseiam na espinha dorsal do que foi concebido como a estrutura da exposição – do abrigo à cidade.
PC: Sim, e a arquitetura é uma entidade migrante. Ao longo desta rota que passa entre a Península Ibérica e a Itália, há uma longa tradição de migração de ideias. Talvez nos anos 40, ou 50, algumas ideias tenham viajado da Itália, e então Casabella e os racionalistas italianos tiveram muita influência. Mas aí nos anos 80 e 90, recebíamos na Itália tantos desafios e ideias de arquitetos portugueses. Acredito que há uma conversa em curso entre a arquitetura italiana e portuguesa que faz sentido neste projeto.
E, claro, na mostra você tem material de arquivo, então pode viajar geograficamente e cronologicamente, como o André falou. Não em uma progressão linear, mas pode vagar e descobrir os itens, descobrir os projetos, descobrir os trios. E construir relações entre esses eles. Nesse sentido, é uma exposição bastante aberta, uma possibilidade aberta que permite ao visitante construir a sua própria percepção.
RB: Tendo em conta as distâncias geográficas e temporais entre os projetos apresentados, juntamente com as especificidades culturais dos seus contextos e suas diferenças de escala, é possível ao visitante perceber como as noções de habitação mudaram ao longo dos anos?
AT: Mais importante do que compreender essas mudanças – que são visíveis através dos próprios exemplos – penso que o aspecto central da exposição é imaginar como as noções de casa podem mudar no futuro. Mais do que uma exposição histórica, trata-se de uma exposição prospectiva.
PC: Concordo. E o que de alguma forma surpreende foi que fizemos esta exposição alguns meses antes da pandemia. E a pandemia alimentou essa necessidade de considerar o que o espaço da casa significa para nós. Por um lado, a mostra foi uma forma de discernir e expandir a investigação entre a tradição do século XX de habitação em grande escala e as tantas outras possibilidades que André comentou – o que hoje podem significar casa, habitação e lar. Quais são os diferentes processos que podem conduzir a autoconstrução ou a habitação comercial, subsidiada ou pública? Existem muitas, muitas possibilidades, e precisamos considerar o que significa para uma pessoa viver em um espaço específico. Cada pessoa quer ser levada em consideração. Pelo que aprendemos neste último ano, é interessante pensar como uma casa, ou o conceito de casa, está nos fazendo levantar novas perguntas. E a exposição nos oferece uma base para explorar o futuro e expandir as ideias sobre o futuro do design doméstico.
RB: Que tipo de material e documentação será exibido de cada projeto? Esse material permitirá ao público ir além das comparações formais e estéticas e se aprofundar em cada contexto específico e métodos aplicados?
AT: O arquivo MAXXI é o ponto de partida. A exposição parte desse arquivo, o que nos permite construir o nosso conhecimento sobre a história da arquitetura, tão rica e profunda. Mas, como já foi dito, não se trata de uma exposição histórica, mas prospectiva. Os objetos são poderosos por si próprios. A qualidade de um desenho de Scarpa é emocionante, muito além da qualidade específica do projeto que representa. Além disso, os projetos não estão sendo apresentados apenas por suas qualidades formais ou estéticas – que também possuem. São os diálogos em que eles se envolvem que permitem trazer à tona conexões e relações preciosas – e muitas vezes invisíveis. Os objetos, os desenhos, os filmes, as entrevistas, os modelos, desencadeiam diferentes discussões que vão além da forma da arquitetura, conduzem ao modo como vivemos, como podemos viver e como, enquanto arquitetos, podemos lidar e reinventar a forma como vivemos, todos os dias.
PC: No MAXXI, partimos do material de arquivo porque é, por um lado, uma ferramenta para compreender os processos que acontecem dentro de um projeto, e por outro, nos lembra a qualidade do trabalho arquitetônico que amamos e almejamos. Reunir materiais de diferentes naturezas – a maquete, a fotografia, o desenho, o filme – favorece a discussão entre diferentes projetos, o sentido que se produz ao colocá-los juntos. Às vezes, a curadoria de arte nos coloca em uma condição em que é necessário separar uma obra de arte da outra e da anterior. Na arquitetura, é mais fácil incluir os itens que você exibe em uma rede maior, pensando em ideias e modos de ver o mundo que nos ajudam a entender o que pode resultar do diálogo entre diferentes arquitetos e diferentes edifícios. É exatamente isso que está acontecendo aqui. Está acontecendo ao longo da história, mas também em toda a geografia e escala, em diferentes atitudes. Existem arquitetos que utilizam ferramentas semelhantes – como a qualidade dos detalhes de Scarpa e de seus homólogos portugueses – ou pode ser a utilização de maquetes, que às vezes é o elemento mais importante para a compreensão de um projeto. Esta não é uma exposição monográfica sobre trinta projetos, mas sim um discurso gerado por eles, produzido pelo visitante através de sequências de obras vistas em conjunto. É a variedade de significados que surge, ao invés de qualquer ideia de uma monografia comemorativa.
RB: Esta é uma bela exposição sobre um assunto que se tornou ainda mais íntimo de todos no último ano – a casa, o lar. Todos nós recentemente nos aproximamos ainda mais de nossas próprias casas, e eu acredito que isso traz outra camada para a exposição. Como vocês veem isso?
PC: Enquanto preparávamos a exposição para Lisboa, tivemos que lidar com a primeira quarentena, momento em que todos ficaram presos em casa o tempo todo. Foi quando o lar se tornou a casa, o escritório, a academia, o restaurante, o cinema e o próprio museu. Enquanto trabalhávamos na preparação da exposição de Lisboa, fizemos uma espécie de versão aumentada da mostra em Roma, perguntando aos arquitetos o que pensavam desta evolução, e da evolução contínua da casa. A exposição foi matéria-prima para repensar o potencial da casa. Em Roma, tivemos a oportunidade de ter a exposição aberta no museu para preencher a estranha lacuna entre as quarentenas de primavera e outono. Usamos essa lacuna para aprofundar o conteúdo da exposição e entendemos, não como conclusão, mas como reflexão, que a casa é o espaço mais flexível de todos os tempos.
Você não produz novas tipologias, você apenas explora o potencial desse tipo de tipologia fluida, que é a casa. Claro, podemos fazer o que quisermos em uma casa, mas uma casa precisa de seus habitantes. Então, para voltar à velha tradição italiana, a casa também deve ser algo que nos ajude a criar um espaço público.
AT: Quando estávamos fechados em Lisboa durante a preparação da exposição, fiquei muito impressionado com um dos exemplos que decidimos apresentar. Foi uma reforma recém finalizada que adaptava um edifício para o uso de Airbnb, ou, digamos, um raro bom exemplo de como as habitações temporárias estão transformando o ritmo da cidade. Continuamos a ver Lisboa na difícil situação de as pessoas não terem acesso a casas adequadas para viverem permanentemente. E, de repente, os Airbnbs estavam vazios, mas os custos dos aluguéis de longo prazo permaneceram proibitivamente altos. Os turistas simplesmente foram embora. Todos eles. O exemplo de que falo é uma renovação de José Adrião, uma intervenção muito delicada numa casa pombalina, na Baixa de Lisboa, reconstruída após o terremoto de 1755. Um dos conhecimentos apresentados por este projeto é um desvelamento das várias escalas de tempo no uso do mesmo espaço: era uma casa, que se tornou uma casa diferente, depois tornou-se um escritório, e depois uma casa novamente etc, etc.
Estamos constantemente mudando a forma como vivemos. As casas mudam, mas a arquitetura é basicamente um suporte. Oferece uma estrutura para fazermos nossa casa, para fazermos de nossas casas verdadeiros lares. Mas enquanto mudamos a maneira como vivemos, a arquitetura pode simplesmente permanecer lá, independentemente de nossas mudanças drásticas.
RB: A exposição estará disponível virtualmente? O que podemos esperar desta colaboração entre a Garagem Sul e o MAXXI no futuro?
AT: Bem, nós acreditamos na realidade – pelo menos, eu acredito na realidade – e na Garagem Sul estamos lutando para abrir a exposição fisicamente. Não há como mediar o caminhar do corpo por meio dos itens exibidos. Claro, estamos preparando materiais digitais para complementar a exposição e manter nossas mentes abertas para o que está acontecendo. Mas acho que uma coisa não substitui a outra. As experiências virtuais são muito ricas, oferecem novas visões e outras formas de articular o conteúdo, mas também demandam muito. Eles podem trazer novos percursos para as ideias circularem e abrir novos caminhos para trocas, mas, pela minha experiência – e pelo menos pelo que entendi nesses primeiros meses de nossa nova vida – tivemos mais visitantes na Garagem Sul nos momentos que conseguimos abrir nossa exposição fisicamente. As pessoas estavam ansiosas para escapar do mundo digital e experienciar o espaço de exposição. Tivemos menos visitantes no total, porque perdemos os turistas, mas tivemos mais visitantes felizes. Continuamos a ter visitas de escolas ou lisboetas que saíam de casa para ter um pouco de vida social. Claro, continuaremos com o conteúdo na esfera digital e estamos discutindo outras formas de colaboração. Mas, por enquanto, devemos nos concentrar em voltar para a cidade, voltar para o espaço onde podemos viver socialmente.
PC: Concordo com o André. Acho que o MAXXI teve uma vida virtual muito intensa ao longo de março, abril [2020], o pico da pandemia [na Itália]. O que aprendemos nessa experiência é que o que acontece na rede é diferente do que acontece na realidade. A presença virtual do museu e da exposição inclui diferentes ferramentas, diferentes projetos e são complementares. As duas vidas – online e analógica – são complementares e não se sobrepõem. O virtual nunca substitui o real. Mal podemos esperar para estar fisicamente na Garagem Sul, para ver e tocar a exposição – ou o que for possível tocar!