Poucos campos da cultura e das artes apresentam tantos pontos de contato com a arquitetura como o cinema. A constatação não é nova e vem sendo debatida no plano teórico por autores de ambas as áreas desde o início do século XX. Em relação à prática, a arquitetura vem buscando incorporar aspectos imateriais do cinema na mesma medida em que este tem servido como meio de discussão, representação e denúncia de temas pertinentes àquela e ao espaço urbano.
Exemplo disso é a produção da dupla ítalo-francesa Bêka & Lemoine, cujos filmes mostram um olhar sensível aos pormenores e singelezas da arquitetura e do espaço urbano. Seu portfólio – composto atualmente por 30 títulos, entre longas e médias-metragens – lança luz sobre o cotidiano urbano de diferentes cidades do mundo e revela uma mirada atenta aos aspectos mais banais da vida humana no espaço.
Tivemos a oportunidade de conversar com Ila Bêka e Louise Lemoine sobre sua produção cinematográfica profundamente enraizada na arquitetura e nas cidades. Leia a entrevisa, a seguir.
Romullo Baratto (ArchDaily): Muito obrigado pela disponibilidade e interesse em participar desta entrevista. Gostaria de começar perguntando o que os levou a dedicar suas carreiras a filmes sobre arquitetura e cidades?
Ila Bêka: Sou formado em arquitetura e durante o curso sempre ficava surpreso com a ausência de pessoas em todos os tipos de representação arquitetônica contemporânea: se você analisar a fotografia urbana e arquitetônica italiana dos anos 60 até hoje, encontrará apenas ruas vazias, edifícios vazios, quartos vazios. Não é possível compreender a escala entre o corpo e o espaço ou a interação entre as pessoas e a paisagem. No livro An Architecture of Participation, em que Giancarlo de Carlo traça uma história de mudança cultural produzida pela introdução de perspectiva, o autor afirma que, nos anos 60, a decisão de remover pessoas desse tipo de representação era totalmente intencional: a escolha por apagar a presença do corpo em representações espaciais, a fim de criar uma fratura, uma distância entre a elite – que seria composta de arquitetos, professores e especialistas – e o resto da população.
Esse tipo de separação sempre me assustou, porque todas aquelas fotos e imagens não tinham conexão com a realidade ou a forma como vivemos no espaço – nós, pessoas que vivem e habitam o mundo. Reflexões especulativas e considerações sobre o espaço nunca levam em conta a maneira como realmente o experienciamos e usamos. "A arquitetura é apenas um pretexto, importante é a vida", disse uma vez Oscar Niemeyer. Então, desde o início, nosso ato de revolta foi dedicar o primeiro filme a Guadalupe Acedo, faxineira na Maison à Bordeaux, e, com ela, a todos aqueles que são invisíveis, todas as pessoas que trabalham na manutenção, que limpam e cuidam desses espaços, mas que nunca são celebrados ou representados. Agora não podemos mais ignorá-los...
RB: Vocês não são apenas os artistas, mas também os produtores e distribuidores dos filmes. Vocês opera em todo o processo. O que os fez optarem por este modelo?
Louise Lemoine: Desde que fundamos Beka & Partners, nossa empresa de produção, decidimos manter todo o processo de produção de filmes sob nosso controle, permanecendo independentes: operar com uma pequena equipe – que é basicamente Ila e eu – nos permite escolher cuidadosamente nossos projetos e manter a independência sobre o que fazemos e como fazemos. Por exemplo, nossos cinco primeiros longas-metragens, [da série] Living Architectures, foram totalmente autofinanciados: tivemos a oportunidade de filmar dentro do Maison à Bordeaux e o reconhecimento internacional que o filme Koolhaas Houselife recebeu graças à Bienal de Veneza de 2008 nos proporcionou acesso a outros edifícios, como o Museu Guggenheim de Bilbao. Para Living Architectures, produzimos e publicamos livros e DVDs que sustentaram financeiramente os filmes. Com o tempo, começamos a aceitar comissões e colaborações, mas isso não alterou a essência de nosso modelo de produção. Mentendo-o independente e reduzido, permanecemos livres para continuar nossa exploração do espaço, evoluindo nosso olhar e, eventualmente, escolhendo quais comissões aceitamos ou não. Esse modelo está realmente ligado à maneira como vemos e filmamos: trata-se, sobretudo, de liberdade.
RB: E como vocês escolhem os lugares, cidades, edifícios e temas que vão filmar?
IB: É uma questão de oportunidade e intenção, com uma pitada de sorte: para a série de Living Architectures queríamos filmar edifícios projetados por arquitetos muito famosos, ainda que de um ponto de vista diferente, com o objetivo de fomentar uma discussão sobre o modo como observamos e falamos de espaço. Desde então, como já dissemos, realizamos alguns filmes em colaboração com instituições culturais, como a Bienal de Veneza (La Maddalena), o OMA (25 Bis ou Spiriti), ou a Trienal de Arquitetura de Oslo (Selling Dreams), para exposições. No caso de Auguste Perret (25 Bis), podíamos escolher entre diferentes tipologias construtivas, mas uma vez que vimos o edifício na Rua Franklin, sabíamos que era aquele. Assim, deixamos de filmar edifícios para filmar a relação entre as pessoas no espaço.
Isso se abriu para uma série de filmes sobre comunidades, como Barbicania, The infinite happiness sobre a 8 House do BIG, ou Voyage autour de la Lune. Então, como você vê, trata-se de passar para uma escala mais ampla – de uma casa para um lote urbano, para uma quadra, para toda a cidade, como no caso de Homo Urbanus, libertando-se da referência arquitetônica – e uma questão de oportunidade: por exemplo, conheci Moriyama-San graças a Ruye Nishizawa em uma viagem ao Japão e eu imediatamente entendi que precisava fazer um filme sobre ele. Esta foi uma das poucas ocasiões em que trabalhei sozinho. Então, nos foi oferecida uma residência artística no Japão, o que nos permitiu produzir mais filmes naquele país, incluindo nosso último longa, Tokyo Ride, com Ryue Nishizawa.
RB: Como vocês mencionaram anteriormente, as filmagens são feitas na ausência de equipes grandes. Poderiam comentar um pouco sobre o processo de filmagem nas locações? Quem fica responsável por operar o equipamento e outros aspectos técnicos?
LL: Sim, elas de fato são feitas sem equipes grandes. Geralmente é apenas Ila e eu, embora às vezes pedimos a ajuda de colaboradores. O que poderia ser visto como uma limitação que nos força a cuidar constantemente de aspectos técnicos, centralizando a captação de sons e imagens em nós mesmos, é, na realidade, algo essencial para nós. Com uma equipe super enxuta, podemos nos integrar ao ambiente que filmamos, passar despercebidos. Precisamos nos concentrar em detalhes, não no panorama mais amplo, então você não consegue realmente ter uma ideia global do espaço que filmamos, o que o leva a observar os pormenores disso. Portanto, não se trata apenas de um aspecto ou restrição técnica, mas de como narramos o espaço e como você o percebe enquanto espectador.
Além disso, como nada é encenado em nossos filmes e geralmente nos aproximamos das pessoas enquanto já estamos filmando, usamos uma câmera muito pequena que Ila geralmente carrega pendurada no pescoço e que passa quase despercebida. Se você prestar atenção, o ponto de vista da câmera é mais baixo do que o habitual (os rostos não estão centralizados) e, ao falar conosco, as pessoas não encaram a câmera: as interações duram apenas alguns minutos, então precisamos tirar o melhor daquilo. São conversas reais e se você começar a pensar em como obter o melhor resultado estético, acaba perdendo a espontaneidade e as pessoas começam a se preocupar com sua imagem diante da câmera. Isso é o avesso do que buscamos fazer nos filmes sobre as obras de arquitetos famosos, em que tudo era glamuroso e filmado na melhor luz: o que buscávamos agora era o outro lado, queríamos desconstruir o aspecto promocional destas arquiteturas.
RB: Suas obras são frequentemente categorizadas como filmes de arquitetura, mas penso nelas muito mais como filmes sobre pessoas. Estou me referindo especialmente para a série Homo Urbanus, mas isso é valido para outros títulos também. Gostaria que vocês falassem sobre esse interesse no cotidiano das cidades e na maneira como as pessoas usam e habitam os espaços.
IB: A questão é o que é o espaço? Se você pensar nele em termos abstratos, é muito difícil responder, mas se você colocar uma ou duas pessoas dentro dele, você começa imediatamente a entender o espaço, como funciona ou não funciona um edifício. Deste modo, todas as maneiras como ocupamos o espaço, nos adaptamos a ele e o subvertemos são cruciais, mas temos a impressão de que nós, enquanto sociedade, pensamos muito pouco nisso. A pandemia, por exemplo, nos fez ficar dentro de nossas casas por um longo período de tempo, e percebemos o quão desconfortáveis são estes espaços que compramos ou alugados. Esta estranheza diante do espaço é tema central de alguns de nossos filmes do passado.
Deixar os edifícios e filmar nas ruas foi incrivelmente libertador para nós, e isso remonta ao 24 heures Sur Place, nosso filme na Place de la République [em Paris]. Mas, claro, o mesmo vale para a esfera urbana, em Homo Urbanus, onde o foco está no "homo". A rua é um grande palco onde jogamos de acordo com regras tácitas, sociais e culturais. Mas as cidades são projetadas mais para carros do que para as pessoas, por isso precisamos constantemente desafiá-las, tentar acomodar nossas necessidades, comprometer-nos com outras pessoas em um espaço público. Na série Homo Urbanus, vemos, por exemplo, em Nápoles as pessoas transformarem o espaço público em privado (o "Bassi"), ou como as pessoas em Xangai vivem parte da vida privada na esfera pública, cortando o cabelo e comendo na rua. Vemos também como precisamos cuidar constantemente das cidades, quão frágeis elas podem se revelar num piscar de olhos, como no caso da tempestade em Bogotá que ameaçava interromper a vida cotidiana até que um sujeito pegou alguns tijolos e improvisou uma ponte para que as pessoas cruzassem a rua (mediante a cobrança de pedágio!). Nada disso é encenado ou planejado com antecedência: nós, enquanto espécie, respondemos às regras antigas e inconscientes e criamos novas para responder às necessidades sempre renovadas dos espaços em que vivemos – e é isso que queremos registrar em nosso filmes.
Poderíamos dizer que fazemos uma psicanálise do espaço; todos os nossos filmes são viagens através das regras e comportamentos conscientes e inconscientes que habitam os espaços particulares e públicos.
RB: Tokyo Ride é um filme impressionante, uma obra-prima que mostra um lado absolutamente inesperado de Ryue Nishizawa. Poderiam nos dizer como organizaram esse passeio por Tóquio? A ideia dessa jornada urbana partiu do arquiteto ou de vocês? E o que mais gostaram naquele dia?
LL: A história por trás do filme é exatamente aquela que foi contada na película: conhecemos Nishizawa há dez anos e queríamos fazer um filme com ele, sobre ele. Vivíamos no Japão naquela época e um dia Nishizawa disse que teria tempo de se encontrar conosco. Ele não sabia que iríamos filmá-lo; no início do filme perguntamos se ele toparia, no que ele concordou com a ideia. Foi o único dia chuvoso em um período ensolarado, mas também o único dia que ele estava disponível e estávamos tentando organizar este encontro há muito tempo. Tivemos que aceitar a chuva, que atrapalhou os planos de Nishizawa (mas não seu humor), o que acabou criando uma oportunidade de ver uma Tóquio não convencional, quase irreconhecível, através de um passeio de carro. Rodamos pela cidade atrás de algumas arquiteturas que inspiraram seu trabalho; visitamos o escritório do SANAA, a casa de Kazuyo Sejima, um restaurante de soba, um templo que o arquiteto visitara quando criança, e a casa Moriyama.
A ideia inicial era ouvir as pessoas ao redor do arquiteto, e acabamos embarcando em uma jornada sentimental com um dos melhores arquitetos do mundo na atualidade. Mas Nishizawa não é um arquiteto estrela; permitiu intimidade e uma conexão real. O espaço da Giulia, seu antigo Alfa Romeo em que passamos boa parte do filme, oferece o equilíbrio perfeito entre dentro e fora: suas paredes são finas, seus interiores, pequenos. No filme, ela se torna uma co-protagonista, quase humana – faz birra, fica com raiva quando está chovendo e decide não ligar o motor. Nishizawa também compartilha conosco ideais e preocupações sobre como representar o espaço, destacando que nenhuma área, espaço ou ambiente é mais importante do que outro, nenhum tem mais valor que outro, o que é uma ruptura no sistema da perspectiva.
RB: Para concluir, poderiam compartilhar conosco alguns diretores que os inspiram e também filmes de ficção que, na opinião de vocês, oferecem uma visão interessante sobre a arquitetura?
LL: Falando sobre Tokyo Ride, após definirmos que a fotografia seria em preto e branco, entendemos que nossa principal referência seria o cinema clássico japonês, sobretudo o de Kenji Mizoguchi, Yasujirô Ozu e Akira Kurosawa, e a fotografia de rua japonesa dos anos 60 e 70. Outra grande inspiração, das maiores para nós, é o cineasta e antropólogo francês Jean Rouch. Por mais de 60 anos ele trabalhou na África, influenciado pela ideia de antropologia compartilhada. Seu filme Cocorico Monsieur Poulet, sobre a jornada de um homem em um carro caindo aos pedaços, teve bastante influência em nosso filme.