Modernidade e colonialismo: entrevista com Paulo Tavares sobre a revista "Des-Habitat"

Entre as décadas de 1950 e 1960, Lina Bo Bardi foi editora da revista Habitat, conhecida por publicar matérias e pesquisas relacionadas a manifestações culturais e artísticas produzidas por povos originários. A publicação, que se manteve em circulação até 1965, foi um dos arautos da síntese entre o modernismo universal e o primitivismo local – elemento central da mitologia da modernidade brasileira. Quase seis décadas mais tarde, o arquiteto e curador Paulo Tavares realiza uma espécie de "des-edição" da revista, colocando em perspectiva essa noção de síntese à luz de discussões contemporâneas que exploram o território de justaposição entre modernidade e colonialismo. Lançada recentemente pela editora n-1, Des-Habitat explora artifícios gráficos e editoriais para criar quase que um fac-simile da antiga publicação chefiada por Lina, sobrepondo uma nova camada – crítica, revisionista e necessária – a uma discussão que vem revelando muitos novos desdobramentos.

Tivemos a oportunidade de conversar com Tavares sobre modernismo, arte dos povos originários, colonialismo e as motivações que resultaram em Des-Habitat. Leia a seguir.

Romullo Baratto (ArchDaily): De onde surgiu a ideia de reeditar a revista Habitat, sobrepondo uma segunda camada, crítica e revisionista, à publicação encabeçada por Lina Bo Bardi?

Paulo Tavares: Desde cedo me interessei pelo trabalho curatorial de Lina Bo Bardi, e pela revista Habitat em especial, e como ela trazia imagens de objetos e artes de povos indígenas, do folclore, do popular... do “primitivo”, como se diz em suas páginas. Boa parte de minha prática como arquiteto está relacionada com advocacia por direitos territoriais de povos originários, e neste processo me dei conta de certo olhar colonial impregnado não apenas na visão modernista de Habitat, mas na arquitetura moderna e suas mídias como um todo. Des-Habitat foi comissionada para a exposição bauhaus imaginista, com curadoria de Marion von Osten, em 2019, nos cem anos da Bauhaus. O projeto foi apresentado como parte da exposição no Sesc Pompéia e no Haus der Kulturen der Welt, e agora publicamos com a N-1 edições.

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Capa de "Des Habitat". Cortesia de Paulo Tavares

Como você diz é uma espécie de reedição da revista Habitat, uma des-edição talvez... O projeto tem a forma de um quase fac-símile, intervindo no design da revista para mostrar esta dimensão colonial que está ao mesmo tempo presente e fora de seu enquadramento construtivista-modernista. Eu entendo a Habitat como uma forma de arquitetura em si mesma, uma arquitetura enquanto mídia, e neste sentido o projeto é uma intervenção no arquivo da arquitetura moderna, do ponto de vista de sua imagética e de seu discurso, apropriando e subvertendo seus próprios meios e linguagens para questionar suas narrativas dominantes.

RB: Des-Habitat se lança a uma tarefa bastante delicada e sensível, pois questiona não apenas a abordagem da revista Habitat em relação à chamada “arte primitiva”, mas as próprias bases do modernismo no Brasil – e, em alguma medida, da identidade e cultura nacionais –, que se funda sobre a narrativa de uma síntese entre o modernismo universal e o primitivismo local. Este é um tremendo desafio que encontra barreiras ideológicas evidentes hoje em dia. Poderia falar um pouco sobre isso?

PT: Encontra barreiras ideológicas porque ainda é uma ideologia dominante da identidade nacional, da ideia de civilização tropical, de democracia racial, de um modernismo singularmente nacional porque antropofágico, e, do ponto de vista internacional, de um modernismo do sul. Mas não apenas isso, encontra barreiras porque existe toda uma “base” que sustenta esta “superestrutura”, por assim dizer... que sustenta e se sustenta na manutenção de certas narrativas dominantes. Esta narrativa é constantemente reiterada através da arte, da arquitetura, e da mídia cultural, e talvez esta seja sua principal força ideológica hoje em dia, os circuitos da cultura contemporânea entre instituições, curadorias, publicações etc., que é também ou sobretudo um circuito econômico e principalmente financeiro. Aqui penso na grande exposição de Tarsila do Amaral realizada no MoMA em 2018. A exposição abria com o quadro A Negra de 1923. Amaral conta que a pintura foi modelada na imagem de uma mulher negra escravizada na fazenda de sua família: “Uma escrava vivia em nossa fazenda, e ela tinha lábios caídos e seios enormes porque naquela época as mulheres negras costumavam amarrar pedras em seus seios para alongá-los ... e então as colocavam de volta nos ombros para amamentar as crianças que carregavam nas costas.”[1] As formas distorcidas de A Negra, enquadradas como gestos cubistas tropicais pela curadoria e pela história da arte em geral, são na verdade evidências de tortura sob trabalho forçado. 

Também penso na reinstalação no MASP em 2016 da exposição A Mão do Povo Brasileiro, curada por Bo Bardi em 1969. A artista Maria Thereza Alves, que é uma grande influência para mim, escreveu um texto muito preciso sobre os apagamentos implicados neste gesto... [2] Não se trata de negar a importância de Amaral, de Niemeyer, de Lucio Costa, de Bo Bardi e outros totens do modernismo nacional, mas de situar uma perspectiva para pensar o modernismo, suas ideologias e legados no coração de suas contradições colonialistas. Se não, continuaremos a reproduzir imaginários dominantes enquanto achamos que fazemos pensamento crítico. Isto vale para arquitetura, principalmente. Toda a construção da “nova linguagem” por Lucio Costa, por exemplo, é arraigada numa perspectiva positiva da colonização como identidade nacional. A ideia de arquitetura “luso-brasileira” é um conceito bandeirante legitimado ideologicamente e imageticamente como modernidade e democracia racial. Des-Habitat desdobra estes aspectos, tocando em pontos críticos deste imaginário modernista em diferentes dimensões e figuras consideradas dissidentes como Lina Bo Bardi, o trabalho curatorial do MASP, e o crítico de arte Mário Pedrosa.

RB: A representação da “arte indígena” em Habitat oculta os meios através dos quais foi tornado possível trazer tais artefatos para diante das câmeras e dentro das páginas da revista. Isso não ocorreria sem o auxílio de um sólido aparato colonialista que, sob o lema da “conquista do oeste” e integração do território, fomentou uma série de incursões pelo sertão do país, com consequências avassaladoras para os povos originários. Em que medida o ocultamento deste aparato colonialista por Habitat é proposital ou ingênuo?

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Artefatos indígenas eram mostrados no conteúdo da revista "Habitat". Cortesia de Paulo Tavares

PT: Em Des-Habitat escrevo o seguinte: “Habitat transmitia uma sensibilidade muito singular, que em muitos aspectos estava distante—e por vezes em dissidência—da narrativa colonial que animava os projetos modernizantes do Estado brasileiro. Em sua valorização do vernacular, do folclórico, do indígena e do primitivo, a perspectiva editorial da revista abraçava o moderno-nacional, mas abordava esses temas sob um ponto de vista bastante particular, adotando uma perspectiva etnográfica única e muito poderosa que em grande medida ignorava—ou deliberadamente excluía—o aspecto colonial do quadro principal.” Acho que a questão não é tanto definir a linha, por vezes muito tênue, entre o proposital e o ingênuo. Mas entender Habitat como parte de uma ecologia de mídias e discursos, incluindo a arquitetura enquanto ambiente construído, que direta ou indiretamente formaram parte de um processo de colonização sob o signo da modernidade, um projeto bastante violento temos que dizer, ao qual serviram, voluntariamente ou involuntariamente, como dispositivos legitimadores. 

RB: A construção de Brasília tem grande papel simbólico nessa marcha pela conquista do interior do território nacional, sendo considerada por Mário Pedrosa uma “tomada de posse à moda cabralina” que marca na terra o signo da cruz, com caráter marcadamente colonial. Poderia falar um pouco sobre isso e a flagrante semelhança entre a primeira missa em Brasília e o quadro A primeira missa no Brasil, de Vitor Meireles?

PT: Desde o Plano Piloto de Lucio Costa, todo o processo de construção de Brasília – tanto do ponto de vista ideológico e midiático como material, propriamente arquitetônico e urbanístico – está envolto e legitimado como uma ação de conquista e colonização territorial que supostamente refunda o sentido de nacionalidade, brasilidade, modernidade... Trata-se de reificar uma ideia bastante modernista alicerçada no colonialismo como fator positivo na constituição do modernismo tropical e da democracia racial que supostamente lhe distingue. Lucio Costa concebeu a capital federal como “um ato deliberado de posse... um gesto de sentido ainda desbravador, nos moldes da tradição colonial.” Este é o fundamento simbólico-urbanístico do Plano Piloto, é a implantação de uma cruz colonial-cristã como gesto da conquista da fronteira. É obviamente um gesto impregnado de muita violência, não apenas simbólica, mas também material, territorial, corporal, como busco mostrar em Des-Habitat.

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Paralelo entre a primeira missa em Brasília e o quadro "A primeira missa no Brasil", de Victor Meirelles. Cortesia de Paulo Tavares

Nas narrativas dominantes este aspecto colonial é por vezes apagado, mas muitas vezes ele aparece explicitamente, mas como algo positivo, como signo da modernização. Daí a ideia de que a cruz colonial é um avião rumo ao progresso, como muitos interpretam, associando colonialidade e modernidade. Recentemente escrevi algo sobre isso para comemorar os 60 anos de Brasília, que chamo de “capital colonial”[3]. O evento da reconstituição – do “re-enactment”, para usar um termo caro à arte contemporânea – da chamada primeira missa retratada por Meireles é um entre tantos outros símbolos que mostram como a narrativa do colonialismo está plasmada na paisagem brasiliana. A fala de Mario Pedrosa sobre Brasília que cito em Des-Habitat é outro exemplo desta narrativa colonial-moderna dominante. Esta citação parece espantosa para os leitores não porque ela seja desconhecida, pelo contrário, é bastante conhecida, mas porque Des-Habitat re-enquadra este discurso para mostrar como a relação entre modernidade e colonialidade é algo que permeia todo espectro ideológico através do modernismo, incluindo figuras consideradas à esquerda como Pedrosa e Bo Bardi.

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Reportagem sobre a primeira missa em Brasília. Cortesia de Paulo Tavares

RB: Oscar Niemeyer foi autor de uma série de projetos que fizeram parte da Operação Bananal, criada no governo JK, que visava transformar a Ilha do Bananal, às margens do rio Araguaia, em um centro turístico no interior do território nacional e que resultou em uma série de atrocidades com os Karajá. Por que há tão pouco material disponível sobre estes projetos de Niemeyer? 

PT: Não apenas em um complexo turístico. O Hotel JK fazia parte de um plano mais amplo de urbanização – isto é, de colonização – de toda esta área do território ancestral Karajá através de superquadras aos moldes de Brasília. Niemeyer desenhou um módulo arquitetônico de ocupação para ser replicado por toda a ilha, o que chamou de “rancho pioneiro.” É importante notar a utilização desta tipologia “rancho pioneiro”, um típica tipologia de fronteira, que tem a ver com o bandeirismo e a conquista colonial, transmutada em um módulo replicável de urbanização moderna.

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Ruínas do Hotel JK na Ilha do Bananal. Foto de Paulo Tavares, 2017

Não é que não haja material disponível sobre o projeto. Na verdade existe muito material, muitos registros fotográficos, orçamentos, planilhas, telegramas, dossiês etc. Este acervo conta toda a história do projeto desde sua construção no final do governo JK até suas ruínas nos anos 1980, no pós-redemocratização, quando os Karajá retomam parte de seu território originário e reocupam a área do Hotel JK. O que acontece é que estes documentos não estão nos arquivos e mídias tradicionais da arquitetura. Estão em arquivos relacionados aos projetos de colonização e do que então era chamado de “pacificação” de povos indígenas. Em Des-Habitat publicamos muitos destes documentos e imagens, acredito que pela primeira vez, foi um extenso trabalho de arquivo... O que mais impressiona neste acervo são documentos e dossiês produzidos pelas agências de inteligência secreta do regime militar. Aqui encontramos relatos detalhados dos conflitos, das repressões, e das violências engendradas por esta operação modernista. 

Além disso, é importante dizer que é um projeto bastante conhecido na região. Inclusive existe um museu super interessante em São Félix do Araguaia que traz uma série de representações de artistas locais do projeto de Niemeyer e alguns registros fotográficos. Talvez seja uma questão de que este material não é conhecido dentro de certo circuito da arquitetura, sua historiografia e mídias. E quando é conhecido é sempre numa chave historiográfica bastante conservadora, como uma espécie de descoberta de uma obra perdida de Niemeyer, no meio das selvas, perpetuando narrativas e ideologias dominantes sob a forma de uma suposta historiografia alternativa. 

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Cortesia de Paulo Tavares

RB: Tanto Niemeyer como Lina foram perseguidos na ditadura por suas “atividades subversivas”; curiosamente, ambos também foram editores de publicações (Lina de Habitat e Niemeyer de Módulo) que difundiram a “arte indígena” ocultando o próprio aparato colonialista e opressor que, posteriormente e alargado, os viria a perseguir. Há aí qualquer coisa de estranho que merece atenção e que diz respeito, senão a uma visão colonialista, talvez míope por parte destas duas figuras?

PT: Não podemos projetar uma visão de hoje sobre a visão que estes atores tinham no passado. Mas tampouco podemos ignorar as violências do passado e contar a história abstraída do lugar de onde falamos, de nosso presente histórico. As práticas de Bo Bardi e Niemeyer, para ficar nos exemplos que você menciona, foram progressistas em diversos sentidos, eu diria até revolucionárias em seus próprios termos, e por isso ambos foram perseguidos pelo aparato ditatorial. Isto vale para outros cem nomes do modernismo militante, no Brasil e internacionalmente. Também sabemos que o modernismo e muitos de seus protagonistas tiveram uma estreita relação com o fascismo. Por exemplo Philip Johnson. No prefácio de Des-Habitat Marion von Osten fala sobre o envolvimento de Pietro Maria Bardi com o fascismo na Itália e na América Latina. Des-Habitat não é um abandono ou rejeição do ideal transgressivo, utópico, fundamentalmente social que encontramos no cerne do modernismo, com todas suas contradições. Pelo contrário. Eu vejo o projeto como uma continuidade, uma extensão, um diálogo com este legado, mas um diálogo crítico que busca trazer suas potências e contradições para operar no presente. 

RB: A investigação que deu origem a Des-Habitat não é nova, está inserida em uma pesquisa muito mais longa sobre modernidade, colonialismo e povos originários. Poderia falar um pouco sobre isso e sobre o que está por vir nesta pesquisa?

Modernidade e colonialismo: entrevista com Paulo Tavares sobre a revista "Des-Habitat" - Imagem 8 de 8
Cortesia de Paulo Tavares

PT: Acho que minha prática busca entender como a arquitetura opera como um mecanismo de poder, um mecanismo de poder colonial e necropolítico, um mecanismo de violação de direitos, e busca intervir neste contexto apropriando e subvertendo seus próprios meios e linguagens para transformá-los em uma contra-arquitetura. Os projetos que desenvolvo em colaboração com lideranças e comunidades indígenas estão nesta chave, fora da ideia de pesquisa, fora da ideia de etnografia, mas dentro de um campo de advocacia por direitos. Como os conhecimentos e ferramentas da arquitetura podem estar em aliança com estes povos, que estão na vanguarda política da luta pela vida? É uma questão política posta para arte desde Walter Benjamin quando confrontando o fascismo, como estética e política estão relacionados? E sabemos o contexto que vivemos hoje... não vejo outro caminho. Com a agência autônoma também trabalhamos em contextos de violações de direitos em situações urbanas. Recentemente publicamos um estudo sobre a dinâmica espacial da violência policial em territórios periféricos do Rio de Janeiro com parte da ADPF das Favelas no STF [4]. Se a cidade é um direito, se o espaço urbano, territorial, ambiental pode ser visto e interpretado como um direito, a arquitetura, em suas múltiplas formas – como construção, como projeto, como pesquisa, como curadoria, como publicação etc. – deve ser entendida e mobilizada como um instrumento de advocacia.

Notas
1. https://news.artnet.com/opinion/moma-tarsila-amaral-review-1234778
2. http://www.mariatherezaalves.org/assets/files/2016_a-mao-do-povo-brasileiro_alves-traducao-portugues-web.pdf
3. https://revistazum.com.br/ensaios/a-capital-colonial/
4. https://epoca.globo.com/guilherme-amado/pesquisa-aponta-indicios-de-que-policia-do-rio-disparou-tiros-de-helicopteros-em-60-operacoes-24971448

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Sobre este autor
Cita: Romullo Baratto. "Modernidade e colonialismo: entrevista com Paulo Tavares sobre a revista "Des-Habitat"" 27 Jun 2021. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/962012/modernidade-e-colonialismo-entrevista-com-paulo-tavares-sobre-a-revista-des-habitat> ISSN 0719-8906

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