Eles são arquitetos e nem por isso acham que a Arquitetura dá conta de conceber a complexidade da vida urbana. Rahul Mehrotra, da Índia, e Zulu Araújo, do Brasil, estiveram juntos no debate sobre Migrações e Diásporas, que faz parte da programação de junho do 27º Congresso Mundial de Arquitetos. Contaram suas experiências e, em comum, defenderam que a Arquitetura, em diálogo com outras áreas do conhecimento, precisa abarcar movimentos que são de natureza social e cultural. O debate foi mediado pela engenheira Daniella Abreu, Secretária Executiva de Assuntos Internacionais do Estado de Santa Catarina.
Professor da Escola de Design de Harvard, já tendo lecionado também na Universidade de Michigan e no Instituto de Tecnologia de Massachusets/MIT, Rahul Mehrotra foi enfático ao dizer que “é preciso rever a forma como se faz planejamento e desenho urbano e levar a sério o efêmero, o reversível e o fluxo, pois, do contrário, a relevância das disciplinas da Arquitetura diminuirá”.
A afirmação foi feita depois de uma apresentação que mostrou a realidade atual da Índia, país com a segunda maior população mundial – quase 1,4 bilhão de habitantes – e que soma 7.523 cidades, definidas como tal a partir de três critérios: população igual ou superior a 5 mil habitantes, densidade igual ou superior a 400 habitantes/km2 e mais de 75% da população masculina com atividade produtiva não agrícola. Mehrotra mostrou mapas do país com cada um dos critérios em separado e comentou sobre as migrações sazonais de pessoas que intercalam o trabalho agrícola na época de cultivo com outras atividades em outros locais, fora do período de cultivo.
Em seguida falou sobre o crescimento orgânico – não planejado – dos assentamentos informais: “a Índia urbana vai ser uma favela gigante em 2030”, e ponderou que o próprio conceito de informalidade tem abordagens diferentes: “pessoas podem morar na cidade informal e trabalhar na economia formal, enquanto outras vivem na cidade formal com atividades econômicas informais”.
Para exemplificar movimentos transitórios e espaços reversíveis, Mehrotra mencionou festivais que ocorrem ocasionalmente, destacando o Kumbh Mela, cerimônia religiosa do hinduísmo realizada quatro vezes, a cada 12 anos: “são 55 dias em que existe a maior megacidade efêmera do mundo”, com mais de 100 milhões de peregrinos, na confluência dos rios Ganges e Jamuna, quando suas águas retrocedem, após as monções do sudoeste. Passados os dias de celebração, em uma semana, tudo desaparece. “É completamente sustentável e reversível”, diz Mehrotra, acrescentando que “não há cimento e é a infraestrutura urbana mais robusta possível” e “conta com um sistema de governo transitório – a estrutura de poder também se move”.
Depois da apresentação de Mehrotra, Zulu Araújo, líder do movimento negro no Brasil, contou suas experiências em viagens à África, em especial a que fez em 2014, para filmagens do documentário “Brasil DNA África”. O filme tem o objetivo de investigar a origem de afrodescendentes brasileiros e reconstruir suas identidades. Zulu foi o primeiro a participar do projeto, tendo saído de Salvador rumo à República de Camarões, para encontrar o “seu” povo, o Ticar.
O arquiteto já tinha passagens por Angola, Moçambique, Benin, Senegal, África do Sul, Cabo Verde, entre outros países que visitou como diretor e presidente da Fundação Palmares, entre 2003 e 2011. “Na viagem a Camarões, sem os privilégios e a proteção que o exercício do cargo governamental proporciona, tive um contato direto, quase imediato, com a população”, contou Zulu, iniciando um relato sensível e apurado com referências aos significados e impactos da migração de cerca de 4,9 milhões de africanos ao Brasil, na condição de escravos, entre os séculos XVI e XIX: “a maior migração coletiva, considerada um crime contra a humanidade, que determinou conformações espaciais até hoje em vigor”.
Para Zulu Araújo a arquitetura colonial que se tem em vários estados e regiões brasileiras é uma expressão clara da “violência com que os europeus dominaram os povos nativos e da sua instrumentalização para o desenvolvimento do capitalismo no mundo”. O arquiteto acrescenta que o desenvolvimento urbanístico e arquitetônico é resultado da hierarquização social e econômica.
"O arquiteto é ferramenta, é instrumento, às vezes bem preparado, talentoso e criativo, mas determina muito pouco do que significa o espaço urbano”, concluiu Zulu, em sintonia com Mehrotra, que já havia afirmado não ser a arquitetura “o único instrumento com que podemos definir as cidades."
O debate faz parte da Semana Gratuita UIA2021RIO Transitoriedades de Fluxos e pode ser assistido até o fim desta semana aqui. Depois, o conteúdo ficará disponível apenas na plataforma exclusiva aos inscritos no 27º Congresso Mundial de Arquitetos.
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