Gabriela de Matos chama a atenção por seu pioneirismo. Única mulher negra em seu curso de graduação, criou o primeiro grupo de pesquisa sobre arquitetura afro-brasileira e gênero do país – o Arquitetas Negras – é a primeira mulher negra a ser eleita vice-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil departamento São Paulo, assim como a primeira a ganhar o prêmio de Arquiteta do Ano concedido pelo IAB Rio de Janeiro em 2020. Este ano torna-se novamente a primeira mulher negra a participar do CasaCor São Paulo. E a estreia não poderia ser melhor: ela assina o Espaço Agô, que acolhe e dá as boas vindas aos visitantes do evento que marca sua 34ª edição com o tema “a casa original”.
Jaime Solares: O que é o Espaço Agô?
Gabriela de Matos: Ele representa a minha chegada ao evento e essa experiência de forma geral. Representa também a posição de boas vindas do ambiente. A palavra Agô significa, em iorubá, “pedir licença” para entrar ou para sair.
JS: O que vemos aqui é um uso muito potente das cores. Qual a importância da cor neste espaço na sua obra de forma geral?
GM: A cor tem uma importância muito grande para mim, pois acredito muito que as sensações chegam a nós através das cores. Além disso a cor é algo muito acessível ao público. Já fiz muitos projetos que eram focados na aplicação de cores pois é um elemento possível até em situações de baixo orçamento.
Como o conceito geral do Espaço Agô está ligado à minha pesquisa da cultura afro-brasileira, e como as cores estão muito presentes nessa cultura, quis fazê-las protagonistas. As cores aqui não são apenas um pano de fundo, são o elemento que constitui o projeto. Elas são espaço. Além disso quis conectá-las à natureza de forma menos literal. Quis trazer as sensações ligadas a esses elementos: a tranquilidade da água, o olhar para o céu, a ventilação pelas aberturas, o pisar no chão.
JS: Esse piso é de que material? Ele lembra muito uma areia.
GM: É um seixo de rio resinado e aplicado como uma massa sobre o piso. Pode ser aplicado tanto dentro de casa como fora, pois é permeável.
JS: Podemos ver que a terra está tanto no piso quanto no vermelho da parede, nos tons terrosos, mas há também o banco “Margem-de-rio”, que é de autoria de seu atelier.
GM: Exatamente. O banco “Margem-de-rio” vem não só por uma vontade de trazer a questão das técnicas ancestrais para a contemporaneidade, de propor uma aproximação dessa sabedoria ancestral com nosso contemporâneo e nossa forma de ver e fazer arquitetura, mas também como síntese disso tudo. Escolhi uma técnica de taipa de pilão, muito utilizada para construção de paredes de edifícios, aqui usado como mobiliário. Esse formato triangular foi pensado para permitir que uma pessoa se sente sozinha, mas também para várias pessoas sentarem juntas, numa lógica modular. Por isso esse suporte de madeira com rodizio para permitir essa composição. Para o acabamento usamos uma resina de mamona que dá o brilho e não deixa que nos sujemos sentando no banco, adequando a técnica ao uso de mobiliário. Essa foi uma sugestão da oficina colaborativa de bambu que foi quem executou o banco e tem essa sabedoria. Juntamos essa força da arquitetura com a técnica desse grupo, chegando a esse resultado.
JS: Então o banco representa um pouco dessa sua pesquisa que você comentou, que procura entender, estudar, pesquisar, valorizar as técnicas tradicionais afro-brasileiras. Como isso está presente na sua instalação? Além do banco tem algum outro elemento ligado a essa valorização desse saber ancestral?
GM: Em todo o espaço. Essa parede (Gab aponta para a meia-parede revestida de cerâmica azul), os pórticos, o arco. Juntei algumas das formas características dessa arquitetura e formei essa parede contínua que permite usos diversos. Numa parte você pode usar como mesa, em outra pode deitar, sentar sozinho ou com várias pessoas. Uma forma elementar e funcional. E esse acabamento de azulejo também está ligado a essa pesquisa. Os azulejos são elementos muito característicos da arquitetura afro-brasileira, principalmente na cultura nordestina.
JS: O azulejo é muito característico dessa arquitetura brasileira do norte e nordeste, mas também o muxarabi. Qual foi sua inspiração para desenhá-lo, e que grafismo é esse?
GM: O muxarabi entra representando a arquitetura do norte africano, tenho utilizado muito nos meus projetos como elemento que permite ventilação e fazem um fechamento de forma esteticamente interessante. O desenho parte de um tridente de Exu, já que ele está muito ligado à posição de abertura deste ambiente, é o orixá das aberturas da comunicação. O Fellipe Brum desenvolveu um padrão em cima do desenho que criei, então assinamos juntos esse “exurabi”.
JS: E você poderia falar um pouco mais desses elementos verticais na entrada do espaço?
GM: Esses tecidos foram feitos pelas Tecelãs do Alaká, que é um coletivo de Salvador, e se chamam “Ojás”, que são um tecido para proteção da cabeça no candomblé – o chamado Ori -, que é pra quando a pessoa “fez o santo”, então ela precisa ficar com a cabeça protegida. Pedi autorização delas para utilizar esse elemento dessa forma na parede, e por isso estão colocados como um elemento destacado de proteção de nossos pensamentos, celebrando nossa cabeça e sua criatividade. É uma forma de agradecer por nossa inteligência, nossa sabedoria, para não nos duvidarmos de nossa potencialidade, do que podemos fazer no mundo.
JS: O que entendemos desse espaço de boas vindas e acolhida é que ele interpreta o tema da CasaCor deste ano – a casa original – trazendo essa questão da ancestralidade afro-brasileira. A sua releitura discute também o ponto original da arquitetura brasileira? E a partir dessa casa original como você imagina a casa de amanhã?
GM: Como eu entendo, pela perspectiva de arquiteta negra, a casa original para mim. Para mim a casa original brasileira são as casas indígenas e os quilombos. A casa de amanhã, e de hoje também, deve ser uma casa cada vez mais conectada com a nossa essência, mas também com as urgências que temos no mundo. Entender a diversidade como um foco central para traçar relações sociais, respeitar as perspectivas diferentes que temos em nossa sociedade.
A casa de hoje não deve seguir tendência. Ela deve ser uma casa que respeita diversidade e que seja adequada ao uso da pessoa que mora ali, e como ela se relaciona com o mundo.
Acredito que teremos cada vez mais técnicas ancestrais misturadas com técnicas contemporâneas. Esse é um ótimo caminho para chegar em uma construção que utilize técnicas mais sustentáveis e contemporâneas.
JS: Olhar a inteligência da construção tradicional e trazer para o hoje como uma possibilidade de viver de agora em diante.
GM: Isso. Vamos entender cada vez mais de onde partimos, pois acho que nos desvinculamos de nossa origem, do pé na terra. Então acredito que devemos seguir nos conectando para possibilitar futuros possíveis, pois hoje estamos produzindo e pensando sob a perspectiva do consumo e do fim das coisas, de um modo que em pouco tempo iremos colapsar. Não é sustentável.
JS: Por fim, em 2018 você fundou o projeto Arquitetas Negras. Ano passado foi eleita vice-presidente do IAB departamento São Paulo, e também Arquiteta do Ano pelo IAB Rio de Janeiro. Por fim esse ano foi convidada para criar o espaço de boas-vindas da CasaCor. Qual são os próximos passos?
GM: Quero conseguir cada vez mais colocar minha pesquisa em plataformas diversas, pois acredito que me posicionando enquanto arquiteta afro brasileira estou não só marcando a produção dessa arquitetura, mas também destacando a necessidade de outras arquitetas e arquitetos negros ocuparem estes espaços.
FICHA TÉCNICA
Ficha técnica equipe Estúdio de Arquitetura Gabriela de Matos
Projeto de arquitetura: Gabriela de Matos Moreira Barbosa
Produção e assessoria de comunicação: Paula Carneiro
Arquitetura e acompanhamento de obra: Fellipe Brum
Projeto executivo: Laís Adriane
Imagem 3D: Aryelle Souza
Estagiária: Milena Maria
Execução da obra: Rennove Obras e Reformas
Chapas de drywall: TelhaNorte
Azulejos: Portobello
Piso: ResinStone
Tintas: Tintas Coral
Iluminação: Avant Lux
Flores e cachepôs: Floricultura Blumenfee
Peças de cerâmica: Bruno Oler e Rosalva Siqueira
Mobiliário (sofá curvo craft): Mac Design SP
Mobiliários e itens decorativos: Odara Móveis
Banco: Líder
Tapete Carta Topográfica: Paola Muller
Execução do Banco de taipa: Oficina Colaborativa de Bambu
Obras de arte: Artistas representados pela Galeria Lume
Maré de Matos - Obra Atlântica, 2021 / Obra Descolombizar, 2021; Luiz Hermano – Obra Nuvem de gafanhotos 2, 2020; Nazareno – Obra Esperando, 2016; Osvaldo Gaia - Obra Ancorado, 2020
Tapeçaria Vertical: Pirá – KNO – Fellipe Brum
Ojás: Tecelãs do Alaká Iraildes Maria dos Santos e Norma Alves de Oliveira
Fotógrafo: Paulo Pereira – Teia Documenta