Com objetivo de conhecer os arquitetos, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa de referência, Sara Nunes, da produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, lançou o podcast No País dos Arquitectos, em que conversa com importantes nomes da arquitetura portuguesa contemporânea.
No episódio desta semana, Sara conversa com o arquiteto Guilherme Machado Vaz, sobre o impacto que a Casa da Arquitectura e a antiga Real Companhia Vinícola assumem na cidade de Matosinhos, norte de Portugal. Reveja as outras entrevistas realizadas pelo podcast No Pais dos Arquitectos e leia a transcrição da entrevista com Vaz, a seguir:
Reveja as entrevistas já publicadas do podcast No País dos Arquitectos:
- Carrilho da Graça
- João Mendes Ribeiro
- Inês Lobo
- Carlos Castanheira
- Tiago Saraiva
- Nuno Valentim
- Nuno Brandão Costa
- Cristina Veríssimo e Diogo Burnay
- Ricardo Bak Gordon
- Paula Santos
- Carvalho Araújo
Guilherme Machado Vaz - Obrigado, Sara! Muito obrigado pelo convite e bom dia!
Sara Nunes - Guilherme como tu és o autor da Casa da Arquitectura, de certeza que já pensaste muitas vezes sobre a pergunta que te vou fazer que é: O que é que é a Arquitectura?
GMV - (risos) Isso é aquela pergunta que eu acho que no dia em que eu souber exactamente a resposta deixo de fazer Arquitectura. Já dei por mim a pensar muitas vezes nela, mas ando às voltas. Penso que há tantas definições do que é que pode ser a Arquitectura. Eu próprio nunca quis chegar a uma definição, quis sempre deixar em aberto o que é a Arquitectura porque isso ajuda também a irmos à procura. Cada vez que desenhamos um projectos estamos, no fundo, a ir à procura do que é a Arquitectura em cada um dos projectos. E acho que a partir do momento em que uma pessoa tiver para si a definição do que é a Arquitectura...
SN - Essa busca move-te também a continuar a fazer Arquitectura?
GMV - Sim, eu acho que sim. Acho que não se deve ter essa definição estabelecida. Acho que se deve deixar isso tudo em aberto porque, inclusivamente, a nossa percepção do que é a Arquitectura com o tempo vai mudando, vai sofrendo mudanças como consequência do nosso crescimento, do nosso amadurecimento. Portanto, fico sempre espantado quando ouço pessoas a dizerem o que é a Arquitectura com muita certeza e de uma forma muito definitiva. Eu nunca... a mim faz-me impressão. Nunca consegui, nem nunca quis fazer as coisas dessa forma, por isso acho que não te vou dizer, nem sei o que é a Arquitectura.
SN - Falando agora sobre o projecto que nos junta aqui hoje, que é o projecto da Casa da Arquitectura. Este é um projecto de reabilitação e gostava que tu nos falasses um pouco de como é que era anteriormente este edifício e o que é que representava para a cidade de Matosinhos, onde está inserido.
Até porque tu, Guilherme, não só fizeste o projecto deste edifício como fizeste uma tese de doutoramento sobre este edifício também. Portanto, não conheço ninguém mais habilitado para falar sobre o passado desta obra, sobre o presente e, quem sabe, também o futuro.
GMV - Sim, é verdade. Foi realmente um projecto e foi trabalhado de muitas formas diferentes. Realmente enquanto projecto de reabilitação de um edifício e depois no âmbito de uma tese de doutoramento.
SN - Deixa-me só interromper-te por curiosidade... Começaste as duas coisas ao mesmo tempo, ou depois de teres feito o edifício sentiste essa vontade de continuar a explorar?
GMV - Sim, sim. O doutoramento veio a seguir ao projecto. O projecto tinha deixado muitas portas em aberto, havia muitas coisas em relação ao edifício que eu na altura do projecto não tinha tido a possibilidade de descobrir, de aprofundar. Quando estamos a fazer um projecto há sempre muitas limitações de tempo, de prazos e a sensação com que fiquei foi que estava perante um edifício com uma história muito grande e de muito valor, que valia a pena aprofundar e investigar sobre esse edifíci. E, de alguma forma, deixar esse legado a complementar o projecto de reabilitação. O edifício da Real Companhia Vinícola é um edifício industrial, do fim do século XIX. No fundo, está na viragem do século XIX para o século XX. Ele começou a ser construído em 1897 e terminou em 1899. Para a época, tendo em conta a dimensão que o edifício tinha, foi construído com bastante rapidez e ainda vem no seguimento dos edifícios industriais ingleses de talvez meados do século XIX... Na altura, na Europa, os edifícios industriais já começaram a ter um carácter diferente se calhar daquele que tinha o da Real Vinícola. Ele foi construído com o objectivo de ser um armazém de vinhos porque pertencia a uma companhia que era a Companhia Vinícola Portuguesa que exportava vinhos para as colónias portuguesas e para muitas partes do planeta.
SN - Já agora tenho uma curiosidade. Porque é que estava em Matosinhos e não estava em Vila Nova de Gaia?
GMV - Exactamente. Era isso mesmo que eu ia explicar. O que é que acontece? Todas essas empresas... Só para terminar o anterior raciocínio... Eu digo que é um edifício industrial porque, para além de um armazém de vinhos, no edifício também se produziam barris, tudo o que andava à volta do engarrafamento dos vinhos era feito dentro da Companhia Vinícola Portuguesa.
Portanto, havia esse lado industrial com alguma maquinaria e, na altura, com tecnologia avançada e máquinas a vapor. Estava lá tudo instalado. Na época, a fábrica era um exemplo de tecnologia avançada. Tratava-se de uma fábrica muito moderna. Porque é que ela estava em Matosinhos e não estava em Vila Nova de Gaia? Por várias questões... Uma delas prende-se com o facto de... eles na entrada... no fundo, como o vinho era colocado em navios, em barcos que levava o vinho para o Brasil, Índia, África...
SN - Ia fazer muitos quilómetros esse vinho!
GMV - Exactamente. E o que é que acontece? A barra do Douro no inverno colocava muitos entraves ao comércio porque quando haviam as tempestades, os barcos chegavam a ficar mais de um mês parados.
SN - Caramba! Um mês!
GMV - Ou mais, às vezes mais! Ficavam os barcos parados para conseguirem sair da barra do Douro e também no sentido inverso ficavam muitas vezes parados no mar para conseguirem entrar na barra do Douro. Portanto, a navegabilidade dificultava muito o comércio. Neste caso, na distribuição dos vinhos. Outra questão tinha a ver com as taxas alfandegárias que se pagavam na zona comercial, nos portos comerciais do Douro, na ribeira e noutras zonas. A empresa era Menéres e Companhia.
SN - Por isso é que é na Rua Menéres? Porque é na Rua Menéres a Casa da Arquitectura...
GMV - Exacto. O que é que acontece? Quem construiu a Companhia Vinícola Portuguesa foram os filhos de Clemente Menéres, que era um grande empresário que tinha estado no Brasil e que depois se tinha dedicado aqui aos vinhos, à cortiça e a outros produtos. Tinha muitas terras em Trás-os-Montes e, hoje em dia, ainda existe a empresa dele na marginal do Porto. À saída da ribeira, em direcção à foz do rio, ainda existe lá a empresa Sociedade Clemente Menéres. É muito interessante porque é uma empresa com mais de um século. É uma coisa fantástica!
SN - Acho que se vê esse edifício, não é? Acho que se vê esse edifício que tem assim na fachada...
GMV - Eles estavam no antigo Convento de Monchique (se não estou em erro... se calhar já estou a confundir)... e os filhos dele é que criaram a Companhia Vinícola Portuguesa. É por esses factores e outro que que ainda não falei que é – os barcos quando não conseguiam entrar no Douro iam-se proteger um pouco a Norte aqui na zona de Matosinhos e na zona dos leixões. O que é que eram os Leixões? Os leixões eram uns maciços rochosos ao largo da praia de Matosinhos que, de alguma forma, criavam ali uma espécie de zona protegida da ondulação do mar.
SN - Ok!
GMV - E é por isso também que o porto se chama Porto de Leixões. Os seus molhes são construídos sobre esses maciços rochosos que eram os leixões.
SN - Guilherme estou a aprender imensa coisa!
GMV - Havia uma discussão de há muitos anos. Penso que iniciou por volta de 1850, quando se começou a discutir a construção de um porto. É claro que o porto ali na zona de Matosinhos, precisamente, onde foi construído, gerou uma reacção muito grande por parte do porto comercial na ribeira porque, no fundo, iam perder.
SN - Era uma concorrência.
GMV - Era uma concorrência. Portanto, andaram ali a tentar evitar que isso acontecesse... andou ali uma discussão muito grande até que acabaram por construir mesmo o Porto de Leixões em 1880 e qualquer coisa, também no fim do século XIX. Os filhos do Clemente Menéres quando perceberam que o Porto de Leixões ia ser construído optaram por construir o armazém em Matosinhos Sul, que era uma zona que era um grande prado e que, de repente, foi alvo de um plano urbanístico no sentido de criar ali uma zona industrial próxima do Porto de Leixões. Esta zona, no fundo, era um lugar estratégico. Eles acabaram por ser os primeiros a deslocarem-se para essa zona. A Companhia Vinícola Portuguesa foi o primeiro edifício industrial e de armazenamento a ser construído em Matosinhos. Na zona que hoje conhecemos como Matosinhos Sul e que na altura era um grande areal, conhecido como areal do Prado. Existem imagens em que se consegue ver, de facto, uma grande planície. Depois com o edifício da Companhia Vinícola Portuguesa no meio com uma presença imponente...
SN - Mas é quase difícil imaginar esse cenário porque Matosinhos entretanto...
GMV - É... mas vale a pena ver essa fotografia porque, de facto, é uma coisa fantástica e é engraçado perceber como a cidade de Matosinhos Sul foi crescendo e o edifício permaneceu desde o início até agora. No início foi um edifício que promoveu a industrialização e a urbanização...
SN - O crescimento, não é?
GMV - A partir do momento em que constroem um edifício daquela dimensão ali dá-se um voto de confiança aos outros. Logo a seguir começou a aparecer muita indústria. Apareceram mais algumas empresas dedicadas à distribuição do vinho, mas obviamente mais tarde Matosinhos Sul foi toda ocupada principalmente pela...
SN - Indústria das conservas, não é?
GMV - Sim. E, portanto, o edifício ocupava... eu podia ficar aqui uma hora e meia a contar a história...
SN - (risos) Já vimos que poderíamos fazer um outro episódio só sobre a História...
GMV - É... a História sobre a Companhia Vinícola Portuguesa. Mas isto só para dizer que o edifício... o edifício era um edifício desenhado em U com grande pátio central. Do lado poente havia o edifício principal de armazenamento com dois pisos, que eram duas naves muito compridas, onde estavam armazenados os barris de vinho. No piso inferior encontrava-se o vinho de mesa, que era um vinho com menos álcool e, portanto, mais sensível às temperaturas. No piso superior, encontravam-se os vinhos mais alcoólicos porque conseguem conservar-se melhor se a temperatura for mais elevada. O resto dos corpos restantes ficavam no lado oposto. No lado nascente, havia a tanoaria onde eram produzidas as pipas, as carpintarias, as zonas de arrecadação, e por aí fora... No centro do pátio havia dois pavilhões. Um deles era o depósito de saída, o outro o depósito de entrada. Ou seja, o vinho continuava a vir do rio Douro até ao cais da ribeira. Depois aí era colocado nos eléctricos, que vinham pelos trilhos. Havia uma linha que terminava dentro da Companhia Vinícola Portuguesa.
Portanto, o vinho chegava aí e era descarregado no depósito de entrada. Quando era para exportar eram colocados os barris no depósito de saída, era carregado e depois a linha levava até ao Porto de Leixões e era carregado nos barcos que seguiam ao seu destino.
SN - Sim. Agora queria que voltássemos um pouco mais à frente no tempo. Entretanto, sei que este edifício esteve quase cerca de 80 anos ao abandono. Houve um novo desafio de construir a Casa da Arquitectura. Quando começaste quais eram os desafios? Gostava que nos falasses também sobre o programa deste edifício.
GMV - Este projecto quando foi iniciado... a questão que se colocava era como encarar este edifício, que é classificado como um Monumento de Interesse Público (penso eu), e que, no fundo, se sabe que tem a importância que tem na cidade de Matosinhos. A importância dele... não é tanto...
Claro que há um lado histórico por ter sido o primeiro armazém industrial construído em Matosinhos Sul, o primeiro edifício a ser ali construído. Mas este edifício quando esteve ao abandono foi ocupado, mais tarde, pelas pessoas de Matosinhos que foram desalojadas quando se deu a construção do Porto de Leixões e transformou-se ali numa espécie...
Muitas pessoas chamaram-lhe um gueto, mas havia ali muitas famílias que foram morar para a Companhia Vinícola Portuguesa. É muito engraçado... Lembro-me de quando estava a tirar o doutoramento fazer pesquisa. Inclusivamente, ia para o Facebook pesquisar e encontrava muita gente porque há páginas dedicadas a Matosinhos antigo. Cada vez que se colocava uma imagem da Companhia Vinícola Portuguesa antiga havia muita gente a comentar a dizer: ‘eu nasci aí’, ‘eu vivi aí com os meus pais’.
SN - A sério? Uau!
GMV - Exactamente! A Companhia Vinícola Portuguesa depois assume um papel importantíssimo na memória dos matosinhenses e da cidade. No fundo, era quase como se fosse uma espécie de aldeia porque viviam ali muitas famílias. Portanto, eu achei que seria muito importante preservar essa memória de Matosinhos. Lembro-me que quando a obra começou havia muita gente que entrava lá dentro... casais de idosos e havia imagens fantásticas. Entravam lá dentro para recordar todos esses momentos. Eu quis que o edifício preservasse a imagem original para, simultaneamente, preservar também a memória do que foi e das pessoas que lá viveram e que lá estiveram. Obviamente que, tendo um novo programa funcional, houve adaptações que tiveram de ser feitas.
No fundo, tentou-se adaptar o máximo possível os espaços existentes às novas funções. E é curioso verificar como muitos dos edifícios industriais são facilmente adaptáveis a espaços culturais como museus, entre outros. Têm uma flexibilidade espacial muito grande e ali houve poucas alterações que foram feitas. Tivemos de colocar aquelas novas caixas de escadas para responder aos regulamentos de segurança contra incêndio. Aqueles dois elementos estão lá e aí quis desenhá-los com um desenho contemporâneo e com uma materialidade que contrastasse com o edifício original para que se percebesse nitidamente...
SN - Que havia uma nova intervenção, não é?
GMV - Exacto! E que eram dois elementos novos, que não pertenciam e que não faziam parte do que era o edifício originalmente.
SN - Eu acho curioso é que essas escadas tenham surgido na tua necessidade de resolver uma questão de segurança contra incêndio, não é? Quando elas parecem tão escultóricas que...
GMV - Exacto! A ideia foi que elas tivessem esse carácter escultórico e quase abstracto para criar também esse contraste com o edifício. No fundo, como estávamos a adicionar alguma coisa ao edifício queria que adicionássemos alguma coisa que trouxesse algo, que pudesse ser um mais e que não fosse um menos. Também pensei, na altura, em construir essas escadas no interior do edifício, mas elas tinham obrigatoriamente de ter uma dimensão grande por causa do número de pessoas que iriam estar no piso superior e isso iria interferir muito com a estrutura do edifício original porque no piso inferior há uma estrutura metálica, uns pórticos, com uns pilares e vigas metálicas muito bonitos. Se eu colocasse lá a escada ia ter de alterar muito isso e não quis fazê-lo. Quis manter as naves o mais próximo possível daquilo que elas eram originalmente e manter também uma grande amplitude visual para a pessoa entrar e conseguir ver a nave em toda a sua extensão, por isso as escadas vieram para o lado exterior. Na altura fiquei com algum receio de qual é que poderia ser a reacção em relação àqueles elementos, mas acho que as pessoas acabaram por gostar (pelo menos, nunca ouvi ninguém a queixar-se)... Acho que as pessoas gostaram daquela expulsão. E é muito engraçado porque muitas pessoas tiram fotografia por baixo da escada onde diz ‘Casa da Arquitectura’.
SN - Sim, é quase um ícone desse edifício, não é?
GMV - Sim, acabou por tornar-se um ícone, o que me deixou satisfeito.
SN - É engraçado que há um respeito na tua intervenção pelo edifício original até pelo que estavas a dizer agora, mas também ao mesmo tempo um respeito pela natureza que ao longo dos anos foi adquirindo o espaço neste local.
GMV - Era isso que eu ia dizer. Uma outra alteração que também se fez teve a ver com um dos edifícios, onde originalmente se fazia o engarrafamento e se colocavam as garrafas em caixotes para depois se mandar para o Porto de Leixões. Esse edifício não tinha telhado. Aliás, muitos dos edifícios não tinham telhado. Só apenas os armazéns é que mantinham o telhado original porque, vim a descobrir que iam sendo roubados ao longo do tempo. Ou seja, eles não caíram. Foi alguém que foi e começou a roubar toda aquela madeira... e começaram a tirar... Foi um acto de terrorismo arquitectónico, um atentado ao património. Esse edifício estava sem telhado e, com o tempo, cresceram lá duas árvores, dois ulmeiros. Portanto, quando comecei a fazer o projecto... esses ulmeiros eram duas árvores de grande porte que já estavam lá há bastantes anos e, de alguma forma, achei que essas árvores já tinham legitimidade para permanecer no seu espaço, no seu lugar. Aquele lugar já era delas...
SN - Elas eram moradoras também do espaço já...
GMV - Elas eram moradoras. Eu gosto muito de árvores e de natureza. Não gosto de cortar árvores, nem de as podar... quanto mais de as cortar! Por isso, tentei adaptar o edifício às árvores, algo que veio a revelar-se enriquecedor em termos espaciais porque as árvores permitiram criar dois pátios. Um deles é um pátio de entrada para a galeria da casa. Penso que faz uma entrada bonita quando entramos num pátio com uma árvore e depois a seguir temos o espaço expositivo. E o pátio seguinte, no fundo, faz a separação entre essa zona expositiva e uma zona de conservação e restauro de documentos da Casa da Arquitectura. Faz ali uma separação funcional e ainda permite criar um espaço técnico. Há ali uma alteração na arquitectura do edifício. Tinha um telhado e as árvores a todo o comprimento, que agora é interrompido por esses dois pátios. Penso que o resultado no final também foi interessante e as árvores acho que ficam bem no sítio onde estão. Infelizmente, a primeira árvore durante a obra foi sendo maltratada pelo construtor e acabou por morrer, mas entretanto já se plantou lá uma outra que se espera que venha a crescer.
SN - Esse espaço é muito bonito! Há também outro espaço que eu acho muito especial neste projecto que tu fizeste que é este espaço que há bocado falavas que é... Quando se chega à bilheteira e temos um enorme vidro que nos permite espreitar para algumas das maquetes do arquivo em que estão muitas maquetes de arquitectos nacionais e internacionais. Fala-nos um pouco desse espaço que é privado e só os especialistas e investigadores podem participar nele, mas onde nós podemos antever e espreitar um pouco dos bastidores da arquitectura.
GMV - Sim, existe essa ideia de permitir às pessoas a possibilidade de contemplar essas naves industriais que têm quase 100 metros de comprimento e que são espaços lindíssimos para mim... Acho que o mais importante para mim era conseguir preservar a beleza desse edifício, que tinha espaços muito bonitos. Este novo programa implicava criar novos espaços interiores e a ideia nunca foi fazer divisórias dentro desse espaço e, no fundo, romper com essa leitura, dessa profundidade da nave. A ideia de se conseguir ver a nave determinou a intervenção. Portanto os espaços que tiveram de se criar criaram-se em caixas que estão dentro dessa nave, um pouco como o espírito do que era o edifício industrial, que geralmente é um armazém que pode ter muitas coisas como caixotes e caixas... a ideia foi ir um pouco atrás dessa...
SN - Manter essa lógica, não é?
GMV - Essa lógica de um armazém onde existem caixas no seu interior e essas caixas são os novos espaços... e as caixas não vêm... são elementos que estão pousados... e que não vêm até ao tecto.
SN - Nunca cortam a visibilidade que temos da amplitude do espaço, não é?
GMV - Exactamente. Para que isso também se conseguisse, entra-se e chega-se ao átrio de entrada, à recepção. Para que isso não fosse também cortado nesse espaço. E, em vez de se colocar na parede, separar a recepção dessa zona para que funcionasse como a reserva da Casa da Arquitectura, criou-se ali uma parede de vidro que permite manter essa visibilidade e, ao mesmo tempo, traz uma relação nova entre o público e o museu. Essa zona das reservas é uma zona que está sempre escondida, não estando ao alcance, nem à vista das pessoas, do público em geral. Ali ao podermos contemplar a nave podemos também perceber um pouco o que é o funcionamento dos bastidores de um museu.
Por exemplo na zona das reservas, ao início estão as reservas das maquetes (como tu disseste), depois a seguir há uma zona de reserva que tem grandes formatos, não é?
SN - Dos desenhos, não é?
GMV - Sim, desenhos e molduras. Depois mais atrás estão depósitos com arquivos de texto e desenhos também, mas esses têm de obedecer a requisitos específicos de temperatura e humidade. Portanto, são espaços também fechados. No fundo, a ideia que surge é essa ideia do vidro na zona de entrada na recepção.
SN - Já agora aconselho a quem tiver a oportunidade porque... não sei se continuam a fazer, mas corrige-me se estiver enganada, Guilherme... De vez em quando, a Casa da Arquitectura abre também a possibilidade de visitar não só as exposições ou ir às conferências, mas também essa parte de arquivo, não é?
GMV - Acho que sim. Penso que sempre que houve Open House no Porto essa zona esteva acessível. Eu não sei se não existem algumas visitas guiadas em que realmente eles passam por esse espaço. É provável que haja. Não tenho a certeza absoluta.
SN - Se tiverem oportunidade é uma mais-valia sem dúvida percorrer esses espaços.
GMV - Sim, é. A terceira alteração mais significativa que se pode verificar tem a ver depois com a zona nascente do quarteirão no fundo do alçado, que dá para a rua a nascente, onde se situava a tanoaria, a carpintaria e foram desenhados espaços de carácter comercial. Por essa razão essa fachada era cega, não tinha nenhuma janela para a rua. Sendo criados esses espaços comerciais havia a necessidade de criar uma relação entre esses espaços e a rua. Não existe nenhum espaço comercial que não tenha a visibilidade da rua... de maneira que se criou uma abertura nesses muros. Ainda se pensou criar portas para a rua, mas depois abandonou-se essa ideia, criaram-se janelas que permitem ver os espaços, mas fazem com que as pessoas entrem no quarteirão pela porta principal, original, na Avenida Menéres, criando uma dinâmica depois no interior do quarteirão. Essa dinâmica não se verificaria caso houvesse portas directas da rua para esses espaços comerciais. As pessoas entrariam directamente nos espaços e sairiam sem entrar dentro do quarteirão da Companhia Vinícola Portuguesa. E esse era o objectivo.
Só um aparte porque há pouco estavas a falar da Avenida Menéres... a Avenida Menéres chama-se Avenida Menéres porque os irmãos Menéres e o Clemente Menéres quando construíram a Companhia Vinícola Portuguesa financiaram uma parte das obras. Financiaram o arruamento que ligava a fábrica deles até à Rua Brito Capelo. Por essa razão a Câmara Municipal decidiu em reunião de câmara chamar à avenida esse nome e chama-se Avenida Menéres desde essa altura.
SN - Ok. Não tem exclusivamente relação apenas com a Real Vinícola, mas também com a intervenção que eles tinham no território, não é?
GMV - Eles tiveram de construir o arruamento desde a fábrica até a Brito Capelo. Tiveram de fazer uma ligação desde a fábrica até a Brito Capelo. O plano estava todo delineado, mas depois à medida que se iam construindo as fábricas, os proprietários tinham também de realizar uma parte da via pública que lhes correspondia.
SN - Estava-se a falar agora das ruas e dos edifícios que também compõem a Real Vinícola e esta intervenção e tenho a sensação que mais do que edifícios a realidade deste espaço também vive muito destes vazios que entretanto se tornaram praças onde já aconteceram os mais variados eventos de música, dança, teatro. Tu imaginavas que esta praça pudesse ter esta dinâmica?
GMV - Sim... a ideia... um espaço daqueles logo à partida evidencia qualidades que permitem esse tipo de eventos e uma vez que, inicialmente, no projecto estava prevista a instalação da Casa da Arquitectura e também a sede da Orquestra Jazz de Matosinhos, que fica na zona sul do quarteirão. Todo esse pátio sul como fica anexo às instalações da orquestra de jazz... no fundo, seria um espaço que se iria complementar à orquestra de jazz, um espaço exterior que eles poderiam aproveitar para fazer alguns concertos, assim como uns pavilhões centrais... nas instalações da orquestra de jazz no fundo há uma sala de ensaio de gravações que permite fazer pequenos concertos. Depois há essa relação muito estreita com o pátio exterior, que já foi muito utilizado para dar concertos. E há imagens desses espaços completamente cheios. Se calhar não é o espaço ideal para a quantidade de pessoas que já lá estiveram, mas é um espaço muito bom, onde se propicia fazer esse género de eventos.
SN - Guilherme tenho a sensação que esta obra foi concluída em tempo recorde. Não sei exactamente os anos, mas de certeza que me vais contar. Quanto tempo é que foi desde o momento em que começaste a projectar até que a obra foi concluída?
GMV - Penso que começou em 2013 e a obra concluiu-se em 2017. Ela até poderia ter ficado concluída mais rapidamente. Durante a obra houve alterações que tiveram de ser introduzidas e isso acabou por atrasar um bocadinho, mas... na altura em que se lançou o concurso público também houve ali um momento em que o processo esteve um pouco parado por questões de financiamento. Depois acabou por andar. De maneira que a obra, a construção demorou cerca de dois anos e o projecto e o lançamento de concurso foram outros dois. O projecto demorou um ano e qualquer coisa e depois o lançamento do concurso demorou um pouco também. Porque, por exemplo... Estamos a falar de... Durante a obra, no fundo, a direcção da Casa da Arquitectura mudou e a nova direcção teve uma intervenção forte. Tinha uma ideia própria de coisas que gostaria de instalar na Casa da Arquitectura, que não estavam previstas no projecto original.
SN - Que coisas eram essas que, entretanto, mudaram?
GMV - Toda essa zona de conservação e restauro não existia no projecto original.
SN - Era só para ser um museu?
GMV - Sim, exactamente. Não... era para ser um arquivo e um museu, uma reserva e um museu. Só que...
SN - Ah, não tinha era a parte de tratamento!
GMV - É... a parte de tratamento seria feita fora. E depois optou-se por incluir essa parte no próprio edifício, na própria estrutura. Portanto, a obra estava a decorrer e estava a voltar a projectar todos esses passos de lançar o concurso.
SN - Provocou algumas mudanças, não é?
GMV - Mudou um pouco o processo, mas a coisa correu bem.
SN - A Casa da Arquitectura foi inaugurada em 2017 e lembro-me que só nos três primeiros dias de inauguração estiveram presentes mais de 12 mil pessoas. Entretanto mais pessoas nestes quase cinco anos visitaram o edifício. Esperavas que houvesse um acolhimento tão grande por parte da sociedade deste edifício?
GMV - Sinceramente não sabia muito bem o que esperar. Eu acho que também... Esse acolhimento e o sucesso da Casa da Arquitectura deve-se muito à direcção da Casa da Arquitectura, à Câmara de Matosinhos e ao investimento que fizeram no sentido de divulgarem e de trazerem programas de qualidade que possam atrair pessoas. Penso que não foi o edifício em si que trouxe tanta gente, mas foi o que ele proporciona que fez com que tanta gente se deslocasse. Realmente foi uma surpresa! Foi acolhido com muito sucesso o edifício.
SN - Qual tem sido o feedback, ou existe algum comentário que te ficou na memória?
GMV - Nos últimos tempos não tenho tido feedback. O ritmo abrandou um bocado, ainda por cima agora...
SN - Já faz parte da cidade o edifício, não é?
GMV - Sim, mas a pandemia também veio arrefecer um pouco a dinâmica da Casa da Arquitectura. Espero que agora volte a ter a dinâmica que tinha antes da pandemia. Antes da pandemia e, hoje em dia, todas as pessoas que falaram comigo diziam que gostavam muito do edifício, gostavam muito das exposições que estavam patentes no edifício. Acho que o edifício acabou por trazer algo de mais à cidade, acho que trouxe muito a Matosinhos Sul. Matosinhos Sul não tinha um edifício com carácter cultural com aquela importância. A Real Vinícola que serviu, quando foi construída originalmente, como impulsionadora da construção de Matosinhos Sul. Agora a sua reabilitação é também impulsionadora de uma nova dinâmica cultural e social. A Real Vinícola volta ao papel que teve inicialmente...
SN - Que engraçado!
GMV - Continua a ser determinante no dia-a-dia de Matosinhos Sul. Isso é algo que me deixa muito satisfeito.
SN - Guilherme, para além das enormes histórias que terás ainda para contar e que aprendeste muito seguramente sobre a História deste edifício... Pergunto-te: o que é que te ensinou este edifício sobre a Arquitectura?
GMV - Eu acho que me ensinou a olhar para o trabalho dos outros com maior respeito porque este edifício foi desenhado por um engenheiro que era o engenheiro António da Silva, que dava, inclusivamente, aulas em Belas Artes (aulas de desenho, penso eu). Era um engenheiro que fazia muitos edifícios, ele morava na Foz e construiu muitos dos palacetes que ainda hoje se vêem na Foz. No fundo, quando eu comecei a fazer o projecto, a inteirar-me do projecto, a olhar para os desenhos originais e a ver a assinatura de um homem que desenhou o edifício há cem anos... Isso fez-me olhar para o projecto e pensar nesse homem com respeito. No fundo, não ignorar o que lá estava, o que tinha sido feito, o trabalho que tinha sido desenvolvido e ter isso em conta no meu projecto, não usando o edifício apenas e como uma preexistência que iria ser manipulada por mim sem ter em atenção essa história e a dedicação de outro. Acho que, no fundo, agi sobre o edifício da mesma forma que um dia se calhar também gostaria que fizessem comigo, numa obra minha, ou então... não sei... acho que lancei o mote para daqui a uns anos para quando houver uma nova intervenção na Companhia Vinícola Portuguesa se possa intervir no mesmo sentido. Também não disfarcei as alterações que tiveram de ser introduzidas no edifício porque acho que elas devem estar presentes para tornar o edifício verdadeiro. Tudo o que lá está realça a verdade do edifício. As escadas, por exemplo, eu poderia ter desenhado as escadas de uma forma em que uma pessoa olhava e não percebia se aquilo já lá estava ou tinha sido desenhado depois, ia criar ali uma...
SN - Ambiguidade.
GMV - É! Mas, no fundo, ao desenhar da forma que foi desenhado mantém-se a verdade do edifício. Está tudo muito nítido aos olhos das pessoas e o carácter do edifício mantém-se íntegro. Portanto, foi isso que eu acho que aprendi com este projecto. No fundo, foi a olhar para património e para as preexistências com maior responsabilidade e respeito por aqueles que a desenharam originalmente.
SN - Guilherme, muito obrigada pela tua partilha! Adorei principalmente a parte que eu desconhecia que era a História deste edifício que dava, claramente, outro episódio do podcast e ficamos, inclusivamente, a saber...
GMV - A certa altura achei que me devia calar...
SN - (risos) Foi muito interessante e fiquei também a saber porque é que se chama ao Porto de Leixões o Porto de Leixões (que era uma coisa que eu desconhecia), a origem do nome da Rua Menéres e como é que funcionava como um ponto estratégico o facto de estar em Matosinhos a Real Vinícola. E obrigada por também ter desenhado um edifício que é a Casa da Arquitectura, que ajuda a aproximar as pessoas, a sociedade civil da arquitectura, que convida a todos a participarem nela. Muito obrigada pela tua partilha, Guilherme!
GMV - Obrigado eu, Sara, pelo convite! Foi um prazer!
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.