Um projeto arquitetônico pensado a partir do sistema neoliberal, só pode ser hostil. É o que diz Padre Júlio Lancellotti, figura ativa em ações de apoio a moradores de rua em São Paulo. Seu trabalho à frente da Pastoral do Povo da Rua tem merecidamente recebido a atenção da mídia nacional e internacional, além de ser frequentemente divulgado em suas próprias redes sociais, chamando a atenção do público e das autoridades para questões urgentes de desigualdade, invisibilização dos mais vulneráveis e a hostilidade de nossas arquiteturas e espaços públicos.
Apoiando-se no conceito de aporofobia – neologismo cunhado pela filósofa espanhola Adela Cortina que significa, em linhas gerais, a rejeição sistêmica à pobreza e às pessoas pobres –, Lancellotti traça uma análise brutal da realidade: "a cidade não é hospitaleira. E o pobre não é bem-vindo." Em um movimento de resistência, numa "luta dos derrotados", busca com ações de pequena escala combater a hostilidade dos espaços urbanos, já tendo ele mesmo empunhado a marreta para demolir pedregulhos anti-morador de rua sob um viaduto de São Paulo.
Não perde de vista, porém, o mais importante: arquitetura e cidade fazem parte de um todo maior, a sociedade, e a mudança de que necessitamos é estrutural. Leia a entrevista na íntegra, a seguir:
Romullo Baratto (ArchDaily): A lei Padre Júlio Lancellotti – que proíbe técnicas hostis de construção no espaço público e privado – tem uma relação direta com a arquitetura e a cidade. Como você enxerga a relação entre arquitetura, dignidade e direitos humanos?
Padre Júlio Lancellotti: São três conceitos que estão interligados, ou deveriam estar interligados. A arquitetura deve estar a serviço da dignidade e sempre na defesa dos direitos humanos. Os direitos humanos e a dignidade, por sua vez, necessitam da arquitetura para se fazerem presentes na vida. Mas nem sempre esta equação funciona assim...
RB: Seu trabalho vai de encontro a esta disfunção; caminha no sentido de dignificar, humanizar pessoas que são frequentemente desumanizadas, invisibilizadas. Em longo prazo, contudo, não soluciona a questão. Que tipos de estratégias e leis você acredita que poderiam ser empregadas para melhorar definitivamente a qualidade de vida dos mais vulneráveis?
JL: Não existe lei que solucione uma injustiça social e estrutural. E nenhum saber é neutro, a arquitetura também não é neutra. Assim como a ciência também não é neutra, nem a medicina. Então, todas elas podem ser manipuladas para determinados interesses.
Numa cidade como São Paulo, por exemplo, a especulação imobiliária domina. Os interesses do mercado imobiliário são dominantes. O mercado imobiliário é mais importante que a educação, que a saúde. As legislações podem fazer parte de um caminho histórico que vai corrigindo e construindo novas propostas, mas nenhuma legislação por si só muda o sistema neoliberal.
Nossa arquitetura também está imersa no sistema neoliberal. É uma arquitetura do neoliberalismo. Não podemos dizer que exista uma arquitetura que não seja influenciada pelo sistema. A mudança de que necessitamos é estrutural.
A legislação por si só é importante enquanto marco legal, mas elas também acabam permitindo interpretações, e eu penso que essa proposta de lei contra intervenções hostis dificilmente prosperará.
RB: Em que sentido?
JL: Ah, ela não passa. Os interesses do mercado imobiliário são muito fortes no Congresso Nacional. É preciso ser realista. O Congresso está mais preocupado com os moradores de rua ou com os empreendimentos imobiliários? Dará mais importância a um morador de rua que está sendo fustigado por intervenções arquitetônicas hostis, ou às incorporadoras, empreiteiras e grandes corporações imobiliárias?
A aporofobia faz parte do repertório; faz parte do senso comum instalar um obstáculo hostil para que moradores de rua não se aproximem. Hoje, os moradores de rua invisibilizados são muito visíveis para o mercado imobiliário. Dificilmente um empreendimento imobiliário será construído em uma área com muitos moradores de rua – ou alguma coisa precisará ser feita para eles sumirem de lá.
RB: Ouvindo você falar, parece ser um campo de combate muito difícil e desanimador. Então, por este mesmo motivo, estas intervenções em menor escala, quase pontuais, como as que você coordena na Pastoral do Povo de Rua, parecem ser o único caminho possível.
JL: Sim, e você pode ir induzindo, fazendo um processo educativo – e isso é proposto pela filósofa Adela Cortina, que cunhou o termo aporofobia, através de um processo educativo que sai da hostilidade e vai em direção à hospitalidade.
Nossos projetos arquitetônicos têm muitas intervenções de hostilidade e pouquíssimas de hospitalidade.
RB: Essa questão da aporofobia está muito relacionada ao tema da arquitetura hostil, e quando pensamos nisso exemplos de menor escala vêm à mente: bancos onde não se pode deitar, pinos metálicos, pedregulhos concretados em baixios de viadutos – como aqueles que você simbolicamente arrancou a marretadas um ano atrás. Mas é mais que isso; a cidade também pode ser hostil em uma escala urbana, e ela o é!
JL: É uma concepção: a cidade não é hospitaleira. E o pobre não é bem-vindo.
RB: Sim, e ainda sobre isso, como você vê as mudanças que estão acontecendo no centro de São Paulo, com novos bares, lojas e públicos? Você percebeu que isso mudou a dinâmica do centro e das pessoas em situação de rua?
JL: As pessoas sentem a hostilidade, vão se tornando refugiados urbanos. Ninguém as quer por perto, elas não têm para onde ir. Não são bem-vindas em lugar nenhum, suas vidas são tuteladas. E tudo o que é feito para elas segue a lógica neoliberal. Veja esta proposta recente da Prefeitura de São Paulo para as moradias provisórias: uma casa provisória por um ano, feita de material reciclado, em uma área da cidade de baixíssimo acesso.
RB: É exatamente isso que penso quando falo em urbanismo hostil. Restringir o direito à cidade, o acesso à cidade, faz parte da lógica de hostilização urbana.
JL: É o que comentei com estudantes que vieram recentemente aqui na Paróquia. Há apartamentos de cobertura à venda no bairro da Mooca; você pode comprar, não compra porque não quer. Você é livre, pode comprar, basta ter o dinheiro. Ninguém vai te impedir. Quer mais democracia do que essa? Tendo dinheiro, você compra. Não tem? Problema seu. É a lógica cínica do sistema: com dinheiro você faz o que quiser. É nossa epistemologia neoliberal, meritocrática.
RB: Isso extrapola o plano teórico, está literalmente concretado na cidade.
JL: Nós agimos da maneira como pensamos. Se pensamos assim, agimos assim.
Um projeto arquitetônico pensado a partir de uma epistemologia neoliberal só pode ser assim. Ele tem vários impeditivos, nem todo mundo pode entrar, a entrada é seletiva… Você já viu um morador de rua no shopping? Ele nem passa da porta. Não são espaços públicos, nem democráticos. Temos praças cercadas…
RB: Nesse sentido, parece que estamos muito distantes de alguma mudança estrutural.
JL: Ah, muito distantes. É uma luta histórica e tenho plena consciência de que perderei muitas batalhas. É uma luta de derrotados cujos resultados não verei. Além disso, essa luta não é minha, é uma luta muito antiga, e na maior parte das vezes seremos derrotados, espezinhados... É aquilo que Paulo Freire diz no livro Pedagogia do oprimido: os esfarrapados da história e aqueles que ficam esfarrapados por estarem do lado deles.
RB: Nos anos recentes, de 2018 para cá, parece que sua atuação na rua aumentou, talvez proporcionalmente ao número de moradores de rua em São Paulo. E seu reconhecimento também, como podemos ver nas redes sociais e nos prêmios que você tem recebido. Apesar da consciência de que esta é uma luta de derrotados, não é possível ignorar que há aspectos positivos nisso.
JL: Eu acredito que há contradições e que precisamos viver as contradições da história. Muitas vezes, aqueles que lhe concedem uma honraria, o fazem para lhe calar e não se comprometem com a mudança. O sistema hegemônico é muito forte e conta com um corpo ideológico também muito forte que o sustenta. Sempre cito a frase da Simone de Beauvoir: os opressores não teriam tanto poder se não tivessem tantos cúmplices entre os oprimidos. E como vai dizer novamente Paulo Freire: quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor.
Este é o peso nosso de cada dia. É impossível falar só de arquitetura ou só de cidades, somos uma totalidade e a mudança é lenta, mas precisa ser estrutural.
Este artigo é parte dos Tópicos do ArchDaily: Arquitetura sem edifícios. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos do ArchDaily. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.
Esta entrevista foi publicada pela primeira vez em 7 de fevereiro de 2022.