O ato de projetar implica em não apenas desenhar, mas construir. Carrega – ou deveria carregar – consigo o mesmo rigor e complexidade da execução no canteiro de obras. É nisso que acreditam Francisco Rivas e Rodrigo Messina, sócios do messina | rivas, firma com sede em São Paulo que já soma reconhecimentos nacionais e internacionais, selecionada também entre os melhores novos escritórios de 2021 pelo ArchDaily.
Formado por um brasileiro e um argentino que se conheceram no Paraguai enquanto trabalhavam no Gabinete de Arquitectura, o escritório é conhecido por obras como a Capela Ingá-Mirim, finalista do Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel 2020 e do Prêmio Oscar Niemeyer 2020, e a Sauna São Roque. Mais recentemente, foi eleito vencedor do concurso para o Museu Marítimo do Brasil junto ao escritório argentino Ben-Avid.
Conversamos com Rivas e Messina sobre seus trabalhos em diferentes escalas, sua visão de reaproveitamento de recursos e o que se pode aprender com as preexistências. Leia a entrevista na íntegra, a seguir.
Romullo Baratto (ArchDaily): O escritório é formado pelos sócios Francisco Rivas, que é argentino formado em Córdoba, e Rodrigo Messina, que é brasileiro, paulistano, mas estudou no Rio de Janeiro. Ambos trabalharam no Gabinete de Arquitectura de Solano Benitez e Gloria Cabral em Assunção, Paraguai. Foi nessa ocasião que se conheceram? O que os levou a abrir um escritório em São Paulo?
Francisco Rivas: Depois que me formei em Córdoba, marquei uma visita com o Solano para conhecer o Gabinete de Arquitectura, em janeiro de 2015. Queria entender melhor aquilo que eu havia estudado na faculdade sobre as obras deles. Quando cheguei em Assunção, uns amigos do escritório Culata Jovai me levaram para conhecer uma das primeiras obras deles, a Casa Ilona, uma reforma que funcionava como um conjunto residencial. Foi aí que conheci o Rô que, por coincidência, tinha acabado de chegar em Assunção para trabalhar no Gabinete. A visita marcada no escritório virou uma cervejada no emblemático bar La Alemana, onde conheci a equipe toda e uma galera que acabou virando grandes amigos. Depois disso, comecei a trabalhar no Gabinete junto com Gloria, Solanito, Solano, Rodri, entre muitas outras pessoas que passaram pelo escritório nesse belo ano e meio que fiquei com eles.
Rodrigo Messina: Lembro que estava cozinhando quando o Fran apareceu pra conhecer a Casa Ilona. Eu tinha acabado de chegar do Chile, onde havia passado seis meses na Católica de Valparaíso. Na ocasião, fui ver uma palestra da Carla Juaçaba que foi minha professora e com quem pude aprender muito quando colaborei em alguns trabalhos no Rio. Ela me apresentou o Solano e me incentivou a trabalhar lá quando terminasse o intercâmbio. Foi o que fiz, tranquei a faculdade e fui passar seis meses em Assunção.
FR: E começamos o escritório em meados de 2016. O Ro já tinha voltado pro Brasil e me ligou dizendo que havia recebido um pedido para fazer uma Sauna e perguntou se eu toparia fazer junto. Como já estava há um tempo no Paraguai, estava procurando outra experiência em que pudesse me equivocar por conta própria, o topei ir pra São Paulo encarar o projeto.
RM: O engraçado é que liguei pro Fran num certo desespero. Lembro que falei: “Fran, eu não sei projetar, por onde começo?” Ele respondeu, “Olha, eu também não sei se sei, mas é uma boa oportunidade da gente se equivocar juntos” E desde então estamos nessa, nos equivocando.
RB: Poderiam contar um pouco da experiência que foi trabalhar no Paraguai com Solano Benitez e Gloria Cabral? Quais as maiores lições daquele tempo que vocês trouxeram para a prática no messina | rivas?
FR: Posso indicar dois aspectos importantes que me ajudaram a entender algumas coisas, que até agora continuam me ensinando. O primeiro é que foi lá que entendi que no ato de projetar, não se desenha, se constrói. Ter a consciência que entre as decisões de projeto no escritório e a construção executada pela equipe na obra, existe um mundo. Se o projeto não se concebe com a complexidade e rigorosidade que merece no início, fica muito fácil perder a ideia inicial no processo.
A segunda são as narrativas. Eu sentia que era muito importante saber contar o projeto como quem conta uma história, contar com leveza um todo, sem perder a especificidade técnica daquilo que estávamos fazendo. Essa prática era um jeito de conversar que extrapolava o escritório, acontecia em qualquer momento, até nos almoços que compartilhávamos dia a dia com Abu, a mãe do Solano. Pelo fato do escritório operar no meio subsolo da casa dela, a gente sempre tinha a oportunidade e prazer de almoçar junto com Abu. Nesses banquetes além de ter tido uma comida incrível, também se falava muito, dos temas mais variados, ou seja, as narrativas não paravam.
RM: Na última semana antes de sair de Assunção, escrevi um texto breve, relatando a experiência de trabalhar lá. Li nos almoços com a Abu, e depois o Solano e a Glória convidaram para publicar na revista argentina 1:100, com o título semillas imaginarias [sementes imaginárias]. São muitas as sementes que a experiência em Assunção deixou e aos poucos vamos vendo elas florescerem, mas eu acho que foi fundamental um certo elogio à coragem que sentia lá. Muitas de nossas amigas e amigos faziam projetos e construíam mesmo antes de formados. E não tinham medo de errar, pelo contrário, errar era método. Daí o lema “aprender fazendo” que escutamos sempre lá, como se o conceito surgisse depois da obra pronta.
E, fora isso, algo que sempre me intrigou foi a condição bilíngue do país. Fico me perguntando, por exemplo, o quanto a presença guarani pode afetar a prática de projetos lá já que essa é a língua predominante no canteiro de obras.
RB: No projeto da Sauna São Roque, vocês descrevem que o projeto foi pensado como um “ensaio entre o desenho e a construção”, uma forma de pensar que leva em consideração as possíveis respostas que o lugar pode oferecer no processo de projetar e executar uma obra. Como vocês enxergam a relação entre o projeto e o canteiro?
FR: A Sauna foi nossa primeira obra, a gente estava animado por entender melhor o processo construtivo, a comunicação, os tempos, os custos, os imprevistos etc. Nesse momento entendemos que o mais eficiente para o projeto era acompanhar de perto o trabalho do Lorivaldo e Seu Walter, o pessoal da obra.
Escolher o caminho mais eficiente sempre depende do projeto, do tempo, recursos, tecnologia, geografia etc. Nesse sentido, não procuramos ser entendidos, procuramos nos fazer entender. Nossa comunicação não pode ser sempre a mesma, porque nem sempre são as mesmas pessoas, nem sempre sabem interpretar um detalhe construtivo ou nem sempre estão dispostos a confiar nos saberes locais. É por isso que nossa comunicação sempre para conseguir transmitir, do melhor modo possível, a informação necessária para que o projeto seja construído.
RM: Uma vez participamos do Ser Urbano na PUC-Rio, e o Otavio Leonídio fez um comentário que gostamos. Ele disse que alguns de nossos projetos começavam já como se estivessem no meio do caminho. Gosto desse comentário, porque responde àquela primeira pergunta: como começar um projeto? E é um caminho possível pensar que já começamos no meio do processo, o que evita o constrangimento de ter que inventar alguma coisa do zero.
E acho que essa ideia de projetar pelo meio acaba orientando algumas ações, porque entendemos o meio, em seus três sentidos: enquanto processo, temporalidade, enquanto meio ambiente, circunstâncias etc. e, por fim, enquanto procedimentos, recursos projetuais. Nesse sentido, o canteiro é um meio e, por vezes, é a partir dele que tomamos certas decisões.
Por exemplo, na sauna, primeiro a gente conversou com engenheiros, que haviam insistido que era preciso por argamassa para amarrar as telhas. Mas como resolvemos fazer a obra, com o Lorivaldo e Seu Valter fomos construindo aos poucos e sentindo o que era preciso à medida que íamos construindo. No fim, com eles, fizemos sem argamassa, com uma laje que comprime a parede e uns perfis de ferro que as articulam e estabilizam.
RB: O reaproveitamento de materiais é uma prática comum em projetos do escritório, visto por exemplo no amplo uso do tijolo em suas obras. Como vocês descreveriam a relação entre a desmontagem parcial ou total de um edifício e a reinserção dos materiais em um novo projeto?
FR: Nós gostamos de entender a ideia de recurso em seu sentido amplo, ou seja, um recurso não é apenas a condição física de um material, são também as relações envolvidas no seu ambiente. Podemos entender como recursos a condição técnica disponível para uma obra, a condição financeira, política ou geográfica. Assim, nos recursos achamos uma maior amplitude de complexidades que ajudam a entender, cada oportunidade de projeto, como um exemplo para se pensar e procurar responder a todas essas variáveis. Dito isto, a desmontagem parcial ou total, não vem de uma escolha “sustentável” ou de uma atitude moral, vem de procurar entender o contexto geral do projeto, onde às vezes o ato de desmontar responde ao contexto e às vezes não fazem sentido nenhum.
RM: Ano passado a gente foi convidado para participar da Bienal de Arquitetura de Seul, na Coreia do Sul, com uma instalação que apresentasse o projeto da Capela. A gente nomeou a instalação desarmar para continuar e procuramos refletir sobre esse assunto. Desarmar, antes de mais nada, é uma ação. Uma ação que pressupõe que uma construção é feita de materiais armados, uma trama, um tecido. Se é assim, as possibilidades de armação são muitas e podemos desarmar e armar infinitamente.
Os processos de montagem e desmontagem pressupõem materiais estáveis, o desarme não necessariamente, pois um tijolo que era parede pode virar piso, uma pedra que era piso, pode virar parede, uma telha que era telhado, pode virar muro, e por aí vai. A ideia de desarmar procura mudar a condição do material e pensar sobre a temporalidade das arquiteturas que foram feitas para durar.
RB: O que um projeto de reforma pode aprender com a preexistência, de acordo com a experiência do escritório?
FR: As preexistências falam, seja aquelas violentadas por mudanças ao longo do tempo, feitas por diferentes pessoas, em diferentes épocas, aquelas que sofreram abandono, ou aquelas privilegiadas que sempre foram respeitadas. As preexistências estão aí, falando o que deu certo e o que deu errado, o que mais aprendemos e ainda continuamos aprendendo delas, é simplesmente ouvi-las.
RM: Outro dia participamos do Ateliê Aberto da UFRJ, um programa de conversa em que os professores e alunos fazem uma análise de um projeto tendo como ouvinte as arquitetas e arquitetos projetistas daquele mesmo projeto. Eles estavam analisando a capela, e o curioso é que um dos materiais que eles precisaram para a análise foi o nosso levantamento. Não tínhamos pensado nisso, mas essa atenção ao levantamento é fundamental para gente e, muitas vezes, acaba sendo terceirizada pelos escritórios. Mas me parece que essa é uma fase oportuna para gente fazer do lugar uma ficção, ou seja, contar uma das múltiplas possibilidades de estórias de um lugar. Nesse sentido, é como se as pré-existências, o lugar, sim, a gente inventa, mas o projeto não.
RB: Junto ao escritório argentino Ben-Avid, vocês venceram o concurso para o Museu Marítimo do Brasil, cuja escala é radicalmente maior que as demais obras de seu portfólio. Que lições aprendidas com a escala menor, residencial, puderam – e poderão – ser empregadas no desenvolvimento do museu?
RM: Acho legal contar que a gente conheceu o Martin em 2018 numa festa em casa. O Federico Cairoli, um grande amigo, arquiteto e fotógrafo, disse que ele estava por SP e que seria legal convidá-lo para a gente se conhecer. Desde então a gente vem trocando ideias, até que nos juntamos para desenvolver um caminho para o Concurso do Museu Marítimo do Brasil. A gente topou não só por poder projetar com um grande amigo, mas também pela qualidade do trabalho que a equipe de Córdoba vem desenvolvendo. E esse é um método de trabalho em que se pode aprender muito porque envolve uma disposição das partes em afetar e ser afetado pelas diferenças, abre o horizonte das possibilidades de projeto.
A gente tem desenvolvido projetos em escalas maiores que ainda estão em processo. E o curioso é que a sensação que dá é que o nível de responsabilidade não muda. E acho que muito disso acontece porque no fundo a escala é uma abstração, ou seja, um recurso criado, justamente, para poder dominar a mensura das coisas e poder responder com projeto. Com isso, tendo a achar que, em certo sentido, somos um tanto pragmáticos, ou seja, a gente analisa as condições de um projeto, quais as relações envolvidas, os atores participantes, os recurso materiais e projetuais disponíveis, e nos perguntamos com quais procedimentos de projeto, com quais ações, decisões, vamos responder, imaginando os possíveis efeitos sem abrir mão dos possíveis imprevistos. E, isso tudo, meio que independe da escala.
Este artigo é parte do Tópico do ArchDaily: Novos Escritórios. Mensalmente, exploramos um tema específico através de artigos, entrevistas, notícias e projetos. Saiba mais sobre os tópicos mensais. Como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossos leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.