Um lugar comum entre o Brasil e o México: entrevista com Gabriela Carrillo

O curso de pós-graduação da Escola da Cidade – Geografia, Cidade e Arquitetura recebeu Gabriela Carrillo para uma série de aulas. Em março de 2022, o Coletivo Feminista Carmem Portinho entrevistou a arquiteta, que nesse primeiro semestre de 2022 foi curadora, junto a Loreta Castro Reguera, do módulo México.

Gabriela é formada e acadêmica da Faculdade de Arquitetura da UNAM, onde lidera o Seminário de Investigações e Titulação Estúdio RX, é membro do Sistema de Criadores de Arte do FONCA e membro da Academia de Arquitetura desde 2020, também levou o prêmio Architect of the Year 2017 pela The Architectural Review e pela Architectural Digest México em 2020. Leia a entrevista a seguir.

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Coletivo Feminista Carmen Portinho: Chamou a nossa atenção a escolha que você e Loreta Castro fizeram na curadoria para o módulo, esse que se propõe a discutir a produção contemporânea da arquitetura mexicana. Como foi o processo de escolha dessas quatro arquitetas para representar o México? E quais dos debates que elas levantam você acredita que seja interessante ao que se está sendo proposto para o módulo?

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Matamoros Public Market. Colectivo C733. Foto © Rafael Gamo

Gabriela Carillo: Antes de mais nada queria agradecer enormemente pelo convite. Realmente me surpreendeu muito ter sido convidada para ser curadora do módulo México, com tamanha liberdade para eleger pessoas dentre a diversidade incrível de arquitetos e arquitetas que há em meu país. Na possibilidade de chamar uma co-curadora e na hora de eleger as pessoas que representariam esses diversos pensamentos, me parecia importante gerar um standard para as vozes femininas que fazem arquiteturas relevantes. A meu ver, essa seleção tem a ver com práticas brilhantes, audazes e contemporâneas que representem o meu país. E com essa arquitetura eu não quero dizer que não haja homens ou grupos e coletivos fazendo, há grupos exclusivamente de homens fazendo arquiteturas incríveis. Mas, para mim, me parecia importante trazer os grupos de mulheres que possuem vozes importantíssimas em comunicar este país incrível, poderoso e tão cheio de mulheres. Por conta disso, essa é uma tomada de decisão em que se é importante levantar a voz e dizer como mulher e curadora “há uma voz desde nosso gênero, desde quem somos e desde como fazemos as coisas”.

Cada vez mais penso que fazer arquitetura não é definida a partir do estilo arquitetônico em que a faz, mas sim como a faz, como a comunica ou como se aproxima dela. Nesse ponto, para mim era extremamente importante vir ao Brasil e comunicar desde um lugar particular, desde uma geração em particular, e claro, desde múltiplas vozes de mulheres. Isso tudo porque este é o momento para isso. 

CCP: Como você enxerga e lida com os desafios e potencialidades na produção contemporânea da arquitetura na América Latina. E nesse sentido, como você vê as diferenças e aproximações entre o Brasil e o México?

GC: Eu acredito que há um lugar comum entre esses dois países que é a própria América Latina, e nós saímos do mesmo ponto de partida, as crises. Quando não temos problemas sociais, temos problemas políticos, temos problemas de desigualdades, injustiças sociais, questões ambientais e muitas outras problemáticas. Estamos sempre, de alguma maneira, em pontos de crises e esse é o denominador comum latino-americano.

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Muelle San Blas, San Blas, Nayrit. Colectivo C733. Foto © Albers Studio

Eu acredito que seja por isso que essa semana Francis Kéré foi premiado com o Prêmio Pritzker. Porque há uma audácia, uma inteligência em suas arquiteturas. Ou seja, uma necessidade de se utilizar da inteligência em usar os recursos naturais. Eu pessoalmente acredito que no século XXI, ante à uma problemática sanitária e ambiental é impossível ignorar esses momentos de crises. E nesse sentido o Pritzker responde de maneira muito lúcida. Essas condições, de arquitetura e construção de Kéré também são questões latino-americanas, desde o México até a Argentina. Porque podemos não ter recursos, viver nesses constantes momentos de desmonte e de crises, mas nós temos inteligência e ambições para a construção.

CCP: Em outras conversas e palestras que já vimos, sabemos que você tem uma admiração incrível pela Lina Bo Bardi. Como o trabalho dela chegou até você? O que da produção da Lina te atraí?

GC: Em todos os fóruns e congressos de arquitetura, e não apenas porque estou no Brasil, eu digo que a Lina é a pessoa que mais admiro no mundo da arquitetura. Não apenas pelo que ela fez, mas por suas respostas espaciais, suas respostas inteligentes. Me parece que não há audácia maior do que fazer arquitetura no momento e condições em que ela fez, e essa arquitetura resultou em uma sensibilidade de poder realizar em lugar mínimo o máximo. 

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Cometa House, Mazunte, Oaxaca. Taller |Mauricio Rocha+Gabriela Carrillo| Foto: Rafael Gamo

Confesso que descobri Lina tardiamente. E me impressiona muito que no México não tenha uma figura como ela. Na verdade, eu acredito que existam sim figuras como Lina em meu país, mas ainda estamos presos nessas algemas sufocantes que o patriarcado tem posto em nossas vidas – ignorando, eliminando e invisibilizando as nossas referências de mulheres na arquitetura. Eu acredito que essas “Linas” estão aí, só precisam ser vistas.

Há uma espécie de endeusamento da arquitetura, que, antes de mais nada, é um erro do mesmo sistema que entende que a arquitetura é feita por um indivíduo senão por um coletivo inteiro. A própria Lina, certamente, estava rodeada de pessoas, havia um grupo de arquitetos atrás dela. Mas eu acredito que, nesse sentido, o endeusamento em sua figura seja pela sua habilidade, a sua força e sua liberdade de se realçar neste lugar. E por conta disso, sempre será uma referência por sua audácia, pelos seus trabalhos, pelos seus textos e pelo seu pensamento.  

CCP: Quais outras arquitetas contemporâneas brasileiras você conhece e admira?

GC: Milhares de outras, com certeza. Tenho amigas incríveis que fazem e pensam arquitetura de maneiras surpreendentes: Anna Juni, Cris Muniz, Marta Moreira, Juliana Braga – suas professoras. São pessoas e mulheres brilhantes, possuem uma energia incrível. No Rio de Janeiro, a minha amiguíssima Carla Juaçaba, uma pessoa brilhante completamente enlouquecida no bom sentido. Além de tudo, vocês mesmas. 

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Tapachula Station, Public Park and Communitary Center. Colectivo C733. Foto © Rafael Gamo

O mundo está impregnado de energia e de mulheres capazes de fazer muito. Me declaro incomoda com o sistema, sempre busco ser reativa. As publicações, revistas, meios de comunicação e a própria sociedade em que vivemos são as responsáveis em colocar as etiquetas em quem terá destaque e reconhecimento, e normalmente ou quase sempre, essa pessoa é um homem. E claro, normalmente esses homens, que são os grandes nomes da arquitetura, possuem escritórios enormes com um monte de mulheres trabalhando para eles. É momento de enfrentar a diversidade e complexidade do mundo que habitamos e  deixar que essas muitas vozes sejam ouvidas, felizmente isso está acontecendo, embora muito desigual. 

CCP: Sendo reativa, como você articula a sua atuação acadêmica com a sua produção no escritório de arquitetura?

GC: Elas se complementam o tempo todo. Cada projeto arquitetônico é um novo projeto, hoje nós fazemos um teatro, amanhã uma praça, depois uma casa no meio do deserto, os cenários e os clientes são diferentes de projeto para projeto. 

Durante muito tempo a academia foi para mim um lugar de replicação de fórmulas, mesmo com uma tentativa de ser audaz, eu dizia para mim mesma eu odeio a disciplina do primeiro ano, agora eu vou fazer uma disciplina incrível de primeiro ano, mas, no final, eu repetia um pouco o meu próprio curso de primeiro ano, porque é assim, no dia em que te pedirem para fazer um banheiro seu referente imediato é o banheiro de sua casa ou um banheiro em que você já esteve. É muito difícil mudar isso. 

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Casa Piedra Acapulco. Taller Gabriela Carrillo. Foto © Rafael Gamo

Então, por muito tempo eu mantive a minha vida acadêmica nessa linha e foi apenas quando tive o meu filho, um pequeno ser humano que está procurando entender o mundo e você tentando explicar para ele de alguma forma, que me perguntei: será mesmo que é esse mundo que eu gostaria de contar para ele? E isso é uma crise, porque o mundo que você vê é aquele que você não quer contar. Foi a partir deste momento que todas as minhas decisões – se eu caminho ou uso o automóvel, onde irei morar, se irei desprender um tempo em uma coisa ou em outra – são sempre um ato pessoal, profissional, político e emocional que envolve a mim, ao meu filho e à minha família. 

Depois de um tempo tive que entender que precisaria encontrar a aprendizagem para mim também, sobretudo para saber fazer perguntas. Sempre me ensinaram, seja na escola ou na universidade, a sempre dar “verdadeiras” respostas. Porém, hoje, acredito que temos que instruir nossos alunos e nossas alunas para que façam boas e valiosas perguntas. Para que o tempo todo possam questionar tudo. 

Portanto, é claro que há uma relação entre a acadêmica e as minhas práticas profissionais. Isso enriquece e torna o processo mais complexo, gera dúvidas que muitas das vezes tem me levado a questionar se estou fazendo o que quero fazer e o que tenho que fazer. Todos esses são lugares distintos, mas que às vezes podem ser o mesmo, não? 

CCP: A partir dos anos 2000 começaram a surgir diversos coletivos feministas nas universidades brasileiras, bem como nas faculdades de arquitetura, que atuam de forma a questionar essa produção de conhecimento tradicional. De que forma você vê estes questionamentos dentro de sua experiência acadêmica, ainda mais em um contexto mexicano. Como essas duas coisas se relacionam?

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Music House and Communitary Hall, Nacajuca. Coletivo C733. Foto © Yoshihiro Koitani

GC: Eu, dentro deste processo de mudanças, também acabei mudando meu ponto de vista sobre esse assunto, mas, claro, eu tenho que entender que eu nasci e fui criada e educada de uma maneira. Quando eu cheguei na faculdade eu dizia para mim mesma que se me discriminarem de alguma maneira por ser mulher, eu irei trabalhar mais, irei fazer melhor. Ou seja, o tempo todo era essa necessidade de autoafirmação: eu vou trabalhar mais, eu vou fazer melhor. Todo o tempo era eu a responsável. Acredito que hoje isso tenha mudado radicalmente.

Afinal eu entendo que sou cúmplice de um sistema, porque cresci em um certo lugar e um certo espaço, mas luto todos os dias para sair dele, me desprender dessas amarras. E irei fortalecer o lugar em que é meu de direito, mulheres, arquitetas, meninas e também aos homens. Não podemos continuar replicando erros que, claramente, temos cometido na forma que reagimos ao nosso planeta em todas as linhas, sociais, ambientais, políticas. Temos que ser agentes de mudança em nossas práticas e na própria academia. 

Há muita ignorância em nossos professores. Não pode haver pessoas responsáveis pela educação que digam abertamente que nunca teriam aceitado mulheres em seus escritórios. É ridículo. O mínimo que deveríamos fazer seria suspender seus contratos acadêmicos e fechar seus escritórios, para que eles exerçam seus machismos com pessoas que o permitam. Não é correto que em uma classe de estudos existam pessoas que seguem pensando com essa mente obsoleta, arcaica e que não corresponde com os valores do que queremos fazer e o que almejamos alcançar: vestir a diversidade e singularidade de cada pessoa, encontrando nela a riqueza do futuro que nos corresponde construir. 

A entrevista foi realizada pelas alunas Amanda Klajner, Gabriela Rochite e Luciana Fernandes, Laura Leal e Julia Cardoso que integram o Coletivo Feminista Carmem Portinho, transcrita e traduzida por Bruna Bonfim e Tamara Crespin. Produção de texto por Bruna Bonfim.

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Sobre este autor
Cita: Coletivo Feminista Carmem Portinho. "Um lugar comum entre o Brasil e o México: entrevista com Gabriela Carrillo" 21 Ago 2022. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/986338/um-lugar-comum-entre-o-brasil-e-o-mexico-entrevista-com-gabriela-carrillo> ISSN 0719-8906

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