No País dos Arquitectos é um podcast criado por Sara Nunes, responsável também pela produtora de filmes de arquitetura Building Pictures, que tem como objetivo conhecer os profissionais, os projetos e as histórias por trás da arquitetura portuguesa contemporânea de referência. Com pouco mais de 10 milhões de habitantes, Portugal é um país muito instigante em relação a este campo profissional, e sua produção arquitetônica não faz jus à escala populacional ou territorial.
No primeiro episódio da quinta temporada, Sara conversa com o arquiteto chileno Alejandro Aravena sobre o novo edifício da EDP em Lisboa. Ouça a conversa (em inglês) e leia parte da entrevista a seguir.
Sara Nunes: Estou muito animada com esta entrevista – pois como já referi antes de iniciarmos esta conversa – o Aravena explica a arquitectura de um modo muito simples. E como sabiamente me disse, o que importa não é a forma como se fala, mas sim ouvir as pessoas.
Alejandro Aravena: Sim, exactamente. Eu diria que, na verdade, um dos maiores desafios no mundo dos arquitectos é que – em vez de falarmos e lidarmos com assuntos que só interessam outros arquitectos – nos envolvamos em conversas muito mais amplas. A dificuldade reside no facto de que... ao entrarmos nessas conversas, não deixemos de ser arquitectos. Afinal, o que nós fazemos são projectos. O desafio é conseguir ouvir e entender essas linguagens. Portanto, a linguagem através da qual comunicamos é a dos edifícios. É o ambiente construído em geral: os espaços públicos, as infra-estruturas e as habitações. E, portanto, [temos] de entender primeiro a pergunta antes de saltar para a resposta. Na verdade, passamos bastante tempo a decidir a pergunta antes de avançarmos para a resposta. Não há outra maneira de fazermos as coisas. Primeiro [é preciso] transmitir uma mensagem simples para nós mesmos. O que acontece à nossa volta tem de ficar esclarecido. [Isto não significa] que tenhamos de simplificar, pois a simplificação é algo que reduz a complexidade do problema. Portanto, primeiro é preciso tornar as coisas claras e perceber o que se compreende e o que não se compreende. [Depois disso], é natural que – se explicarmos para nós mesmos de forma simples e clara – sejamos capazes de dialogar com a comunidade.
SN: Penso que o que mais me impressiona para além do seu currículo – e [mais do que o facto de ter ganho] o Prémio Pritzker e ter sido director da Bienal de Veneza – é o compromisso que o arquitecto tem de responder aos problemas das pessoas e aos desafios actuais, como o crescimento populacional, a escassez de recursos, ou até mesmo a pobreza. Então, antes de começarmos a falar sobre o projecto que vamos falar hoje, vou desafiá-lo a partilhar com os nossos ouvintes um projecto muito especial que tem vindo a fazer ao longo dos anos – o projecto denominado como ‘meia casa’ (‘half-house’). Qual tem sido o impacto e como é que esse projecto pode ser reproduzido em Portugal? Quais são as vantagens que o projecto pode trazer para as cidades, tendo em conta a sua experiência ao longo dos anos?
AA: Permita-me que comece por tentar explicar o que significa a expressão ‘meia casa’… Porque, quando se pensa em ‘meia casa’, [a primeira pergunta que se coloca é]: quem iria querer ficar com apenas metade de uma casa? Quem gostaria de ter metade dos cuidados médicos, metade da educação e metade das políticas públicas?
Mais uma vez, regressemos aos factos para explicar o conceito. Quando as pessoas constroem as suas próprias casas – que podem ser entendidas como “habitações informais” – ou quando através de economias familiares as pessoas vão ao mercado para comprar o seu imóvel, ou quando se olha para as políticas habitacionais dos países desenvolvidos [sabe-se que] o tamanho onde a classe média pode viver razoavelmente bem tem, em média, 80, 90 ou 100 m2.
Em países relativamente pobres como o Chile, no melhor dos cenários, as políticas públicas podem entregar [casas] entre 40 e 50 m2. Isso é uma realidade. Não existe mais dinheiro. Se se quiser distribuir mais de 42 m2 e duplicar o tamanho [das habitações], apenas se poderá dar metade das soluções por ano. [Isto acontece] num país que, para [evitar] que os bairros de lata cresçam, precisa de construir 90.000 habitações por ano.
E o Chile está a construir 60.000 casas por ano. Com dinheiro público limitado, então tem de se optar por uma escolha: “Devo aumentar [a dimensão das casas], construir ainda menos e fazer crescer o défice habitacional, ou devo construir mais unidades, mas diminuir o seu tamanho?” Quando verificamos como foram as últimas décadas de habitação social, [percebemos] que foram entregues habitações com 40 a 50 m2 e as famílias quase duplicaram o tamanho dessas unidades porque o Estado, ou o mercado, usa esse dinheiro para projectar uma casa – neste caso, uma casa da classe média, com 40 ou 50 m2 –, mas depois as famílias não conseguem viver bem nessas unidades [de dimensão reduzida] e acabam por ampliá-las apesar do design, e não graças ao design.
No momento em que se ampliam essas habitações, são retiradas paredes estruturais. Num país sísmico como o Chile, isso é desastroso... Ou quando a construção nova não tem divisórias corta-fogo, se houver um incêndio todas as casas à volta ficam incendiadas. [Há] uma quantidade enorme de consequências sociais na deterioração do espaço público por não se considerarem esses cenários.
Portanto, a única coisa que fizemos quando [avançámos] para a habitação social foi [colocar esta questão]: “Se podemos dar apenas 40 ou 50 m2 para as famílias e elas vão duplicar o tamanho da habitação de qualquer forma, por que nós – em vez de entregarmos uma casa pequena de 40 m2 – não reformulamos o problema e consideramos metade de uma boa casa, [tendo em conta que não podemos entregar] uma habitação de 80 m2 da classe média?”
No momento em que se reformula a pergunta [e se considera] metade de uma boa casa que gostaríamos de entregar, mas não podemos, a pergunta que se coloca é: “Qual metade é que nós fazemos?” O conceito de política pública é fazer a metade que as famílias não conseguirão construir sozinhas. [A partir desse ponto], elaborámos uma lista de cinco condições para o projecto que [sabíamos que] as famílias não conseguiriam fazer sozinhas.
O que entregamos com dinheiro público é tudo aquilo [que sabemos que] não pode ser feito pelas próprias famílias. Dessa forma, permitimos que as famílias combatam a escassez de dinheiro e de tempo que as políticas habitacionais enfrentam. Ao longo do tempo, essa escassez é combatida com design incremental – um sistema aberto onde se pode atingir um padrão de design que, infelizmente, não podemos entregar logo no primeiro dia.
Agora, respondendo à pergunta: qual é o resultado disso? Voltemos aos factos novamente. No momento em que nos focamos naquilo que é mais difícil de fazer por uma família e somos o número um no local... [percebemos que] não importa quanto tempo, energia ou recursos tu investes, nunca conseguirás mudar a localização da habitação.
Portanto, a prioridade é conseguir a densidade suficiente para que [as famílias] possam pagar um terreno mais caro e aliá-lo ao conjunto de oportunidades que as cidades oferecem. Aliás, é por isso que as classes mais desfavorecidas se estão a deslocar para as cidades: [é em] busca de oportunidades. No momento em que [as pessoas] encontram essas oportunidades, eles não beneficiam apenas de assistência social, espaço público, transporte, educação e emprego, mas também tiram partido de verem as suas habitações valorizadas ao longo do tempo.
Voltemos aos factos, o primeiro projecto que construímos no norte do Chile foi no deserto, com um subsídio de 7.500 dólares – e isso talvez seja outra coisa que é importante compreender na Europa – [no Chile, nós temos] 7.500 dólares para comprar o terreno, fornecer a infra-estrutura e construir a casa. Desses 7.500 dólares, 7.200 são subsídios e 300 dizem respeito às economias familiares. No mundo em desenvolvimento – referimo-nos a 2 biliões de pessoas no mundo – as políticas habitacionais são voltadas para a propriedade.
Depois de se receber o subsídio, [a família] torna-se proprietária da casa. Isso significa que a habitação é a maior transferência de dinheiro dos fundos estatais para as famílias. Se se projectar de forma a que a casa valorize com o tempo, isso não é apenas uma protecção contra o meio ambiente, mas é também uma forma de superar a pobreza.
Se voltar ao primeiro projecto de 7.500 dólares, que para a família representam 300 dólares em economias, recordo-me que recebemos um vídeo de um dos proprietários que mostrámos na Bienal de Santiago [do Chile] há duas semanas. Estamos em contacto permanente com eles, mas havia um vídeo de uma pessoa que nos dizia que havia alguém que estava a querer comprar a sua casa por 70.000 dólares.
SN: 70.000... Eu ouvi isso.
AA: Isso significa que [o investimento do Estado foi] multiplicado por dez!
Se projetarmos dessa maneira, [as habitações] não são uma despesa social, mas sim um investimento social. A família vê dessa forma 300 dólares serem transformados em 70.000 dólares. Para a pessoa, isso não representa apenas uma questão de riqueza, é também motivo de orgulho. [Estas famílias] sabem que não são mais um fardo para a sociedade e podem sustentar-se pelos seus próprios meios.
É assim que, eventualmente – e isso pode ser [um trabalho] consistente... talvez não aconteça dez vezes, mas três, quatro ou cinco vezes – se se multiplicar esse dinheiro, estaremos a oferecer às famílias uma ferramenta económica e, em última análise, a possibilidade de estarem numa parte da cidade onde podem tirar partido das oportunidades das cidades e não isoladas nas periferias segregadas.
Ouça a entrevista completa aqui e reveja, também, a quarta temporada do podcast No País dos Arquitectos:
- Tomás Salgado do ateliê Risco
- Filipa Guerreiro e Tiago Correia
- Teresa Nunes da Ponte
- Pedro Campos Costa
- José Carlos Nunes de Oliveira
- Pedro Bandeira
- Correia/Ragazzi Arquitectos
- Samuel Gonçalves, do atelier SUMMARY
- Diogo Brito do OODA
Nota do editor: A transcrição da entrevista foi disponibilizada por Sara Nunes e Melanie Alves e segue o antigo acordo ortográfico de Portugal.