As iniciativas anunciadas sobre os “Corredores 2.0”, orientadas a melhorar a qualidade do transporte público da cidade de Santiago, no Chile, abre-nos a possibilidade de assumir alguns desafios pendentes em nossas cidades, como a de pensar de maneira integral as relações entre a qualidade do transporte e a do espaço público que o recebem, pondo no centro da questão as necessidades do pedestre, que é habitante, transeunte e viajante cotidiano. Além disso, convida a assumir o papel que o transporte público deve cumprir no desenvolvimento urbano e social da cidade.
Diariamente observamos as dificuldades que os ônibus enfrentam nas vias congestionadas de Santiago e o impacto que isto tem nos tempos de viagem e, por conseguinte, no cotidiano das pessoas. Também assistimos às esperas e as peripécias nas baldeações. Por outro lado, conhecemos as reações adversas dos vizinhos ante a construção dos primeiros corredores que buscam facilitar o trânsito dos ônibus, nos quais veem a ameaça de desapropriação, mudanças em ruas arborizadas, ou a queda em suas atividades comerciais. Por sua vez, vimos como a prioridade dada ao transporte de eficiência em alguns corredores da primeira geração, ao invés de unificar, distanciou as frentes das avenidas em que estão inseridos, forçando os pedestres a percorrer trilhas e rotas complicadas para ir de um lado a outro da rua.
O fato é que as relações entre as necessidades de transporte de massa e um espaço público de qualidade nas ruas e avenidas que os recebem, não é uma coisa fácil, mas é essencial para a vida na cidade, pois se refere à experiência cotidiana de viagem como no que diz respeito ao acesso às trocas de todos os tipos que a cidade deve oferecer.
Parece importante levantar estes desafios no momento em que a imprensa difunde a iniciativa do Transantiago e o Departamento de Transporte Público Metropolitano investe em uma nova geração de corredores de transportes públicos. Dado o objetivo central de aumentar a velocidade de transferências e, assim, reduzir os tempos de viagem nas rotas, esta segunda geração contempla a circulação dos ônibus pela pista da esquerda. Além de uma redução de até 36% no tempo de viagem, esta medida deverá liberar a passagem de carros particulares pela direita, distribuir melhor o espaço da calçada, eliminando barreiras físicas entre as faixas de tráfego e, portanto, diminuir os custos de desapropriação e construção. Ao mesmo tempo, prevê o soterramento de cabos e a construção de áreas verdes e áreas de canteiros centrais.
Estas medidas implicam transformações maiores do espaço das avenidas onde são inseridos "corredores 2.0". Com eles, há uma oportunidade para considerar quais são as condições de um bom projeto para atender às complexas relações entre transporte público e rua, e quanto isso iria melhorar o potencial de desenvolvimento urbano e social na área metropolitana que se inscreve. Vários assuntos não devem ser perdidos de vista nesta perspectiva. O primeiro é colocar no centro das preocupações os usuários e o fato de que cada viagem começa e termina a pé. O segundo, é que as vias e os eixos estruturais por onde circula o transporte de massa são de fato – e em potencial - espaços públicos de escala metropolitana, enquanto locais privilegiados para a execução de serviços públicos, comércio e em geral da diversidade de atividades próprias das cidades. Uma terceira chave é levar em conta que os principais eixos que recebem os transportes públicos, conectam a cidade com seus bairros menos assistidos.
É um fato que as estruturas das viagens cotidianas estão mudando, demandando o transporte e seus espaços de distintas maneiras. Viajar na cidade não é apenas se deslocar de um ponto a outro através de longas distâncias. Grandes números de viagens diárias são feitas a partir de casa para o trabalho e vice versa, mas também se vê que progressivamente viagens encadeiam atividades múltiplas, como resolver uma pendência, ir às compras cotidianas ou especializadas, levar uma criança à escola, um adulto ao médico, visitar um parente, juntar-se com alguém, etc. Esta é uma tendência crescente na medida em que os tempos e espaços de relações sociais são cada vez mais diversificados em nossas sociedades e tendem a continuar alterando-se.
Além disso, as ruas não são apenas correias transportadoras. Para além da sua função de deslocamentos, elas precisam ter a função do convívio e contemplação. Assim, os grandes eixos da cidade onde são projetados os corredores, devem ser os locais de maiores ofertas de serviços, muitas vezes a uma escala metropolitana. E, no caso daqueles que não o são, poderiam se tornar, especialmente, se servem a áreas carentes da cidade, onde habitam os principais usuários de transporte público.
Na medida em que o urbanismo funcionalista foi-se impondo, fomos incorporando como a certeza de especializar as funções do trânsito segundo tipos de velocidades de tráfego e, desta maneira, segregando os espaços de circulação para cada uma delas e seu modo de transporte associado. Não só isso, também se deu prioridade e autonomia - sempre que possível, sem rupturas - aos meios de transporte supostamente mais rápidos, a fim de reduzir os tempos de viagem, ainda que a evidência mostra-nos que, em Santiago, no horário matinal de pico, a velocidade média dos automóveis (19 km / h.) é menor do que a de transportes públicos (23.3 km / h). A questão é a forma como assegurar a eficiência do serviço de transporte, melhorando a qualidade do passeio e do espaço em que se inscreve.
Garantir uma velocidade média que tende a reduzir o tempo de viagem é uma prioridade indiscutível, mas, ao mesmo tempo, devemos reconhecer na avenida corredor sua condição de espaço público, com serviços públicos e usos mistos, que se alimentam do transporte público e vice-versa -, além de seu status de conexão a destinos remotos. Na mesma perspectiva, é necessário reconhecer o status que corresponde ao pedestre, à interface entre o espaço da rua e o do transporte público. Isso implica assegurar espaço prioritário não só de embarque, desembarque e espera, mas sua relação às atividades próprias da rua: prioridade nos cruzamentos, passagens de nível, amplas calçadas, resguardando a sua segurança e conforto frente aos possíveis conflitos com os automóveis. Isto implica um projeto cuidadoso das relações entre os canteiros centrais e a avenida.
Se reconhecermos a importância de dar a primeira prioridade aos pedestres, se, além de assegurar a velocidade e a frequência dos ônibus, melhorar suas relações com as atividades do entorno nos corredores, e pensarmos as avenidas onde estes são implantados como grandes espaços públicos e eixos prioritários de serviços, estaremos ajudando a melhorar não só o tráfego, mas a paisagem urbana e a igualdade em escala metropolitana, em particular, à experiência diária de quem viaja de transporte público. Assim, o transporte público pode desempenhar melhorias na função social.
Artigo via Plataforma Urbana.
Tradução ArchDaily Brasil: Eduardo Souza.