O que é o Espaço Público?
O Espaço Público é o lugar da cidade de propriedade e domínio da administração pública, o qual responsabiliza ao Estado com seu cuidado e garantia do direito universal da cidadania e a seu uso e usufruto.
Do o âmbito físico, podemos considerá-lo como “vazio” urbano conformado pelos volumes construídos nas zonas centrais da cidade1 e muitas vezes são os espaços em que o verde da cidade se expressa com maior protagonismo, e onde tradicionalmente tem se instalado esculturas artísticas de médio e grande formato e monumentos comemorativos.
Eles contêm aquilo que é chamado de “mobiliário urbano”, isto é, equipamentos que facilitem seu uso: luminárias, bancos, lixeiras, pontos de ônibus, sinalização de trânsito e de informação em geral, entre outros.
Sendo os serviços urbanos uma responsabilidade do setor público, então os Espaços Públicos são inclusive os lugares por onde passam e se desenvolvem as redes de infraestrutura viária, de transporte e técnicas, que garantam a habitabilidade, sejam estas na superfície, subterrâneas ou sem fio.
A todos estes elementos de caráter objetivo que distinguem o Espaço Público têm que acrescentar as conotações subjetivas derivadas fundamentalmente pelo uso tradicional e o cotidiano, pelos imaginários individuais e coletivos, relacionados com histórias pessoais, feitos históricos, lendas urbanas e movimentos populares. O espaço público é o lugar por excelência da expressão política e dos direitos cidadãos.
Mas além de todas estas conotações objetivas e subjetivas o espaço público contém, por sua própria essência, uma característica fundamental: permite conectar lugares e pessoas de todo tipo e procedência, em qualquer momento. Portanto, o espaço público é intrinsecamente o mais democrático da cidade ao facilitar o intercâmbio mais heterogêneo em tempo, espaço, idade, gênero, nacionalidade...
O espaço público é tão importante como dizem?
As praças, calçadas, parques e jardins, ruas e avenidas que conformam o espaço publico na cidade tradicional, constituem o primeiro elemento de percepção do lugar. Do impacto que ele produza, dependerá um ato de repúdio ou aproximação do centro histórico da cidade e, por extensão às áreas centrais cidadãs.
Quando o espaço público está degradado, provoca uma rejeição imediata. Se não está bem iluminado, se não possui atividade noturna que o anime, será percebido como perigoso e muito provavelmente é; se os edifícios que o circundam possuem funções inapropriadas – oficinas ruidosas, estabelecimentos que geram tráfego pesado – ou estão degradados, ninguém os procurará para passar seu tempo livre, interagem socialmente ou por simples curiosidade.
O que acontece no espaço público está bastante relacionado com o uso das edificações que o conformam. A monofuncionalidade que foram condenados muitos centros históricos e áreas centrais em geral, somado ao esvaziamento de habitações, gerou uma distorção perversa: o desequilíbrio polarizado de uso em horários. Durante o dia tornam-se centros caóticos, saturados de odores e ruídos, de uma animação extrema, mas quando fecham os estabelecimentos com atividades terciárias, os lugares voltam a ser solitários e geram insegurança ou a percepção dela, que é quase igual de nocivo.
Há mais de uma década, Fernando Carrión comentava: quanto maior é a deterioração do patrimônio, maior sentimento de insegurança e aumenta a própria insegurança, logo haverá maiores fatores externos negativos para a conservação.
A falta de controle sobre o espaço público, primeira percepção de lugar patrimonial, implica a acumulação de uma grande quantidade de problemas complexos, enquanto que sua governabilidade gerará oportunidades extraordinárias para solucioná-los.
Os espaços públicos se tornam assim lugares de especial importância no cenário da recuperação urbana como elementos dinamizadores, pois quando são renovados eram automaticamente “externalidades positivas”, isto é, sinergias que atraem pessoas, recursos, inversão. Sua reconquista supõe enfrentar uma vasta gama de conflitos, cuja solução constitui um dos principais desafios para o desenvolvimento integral.
Intervir no espaço público implica a concentração e coordenação de uma série de ações e atores com um resultado muito visível e multiplicador, que garanta o retorno e apropriação das zonas centrais por parte da cidadania, com o melhor cenário para retomar a prática cidadã.
Quais são os principais conflitos do espaço público?
Insegurança e criminalização
A deterioração generalizada, social e física, que cria uma imagem de abandono e marginalidade, incide desfavoravelmente na percepção do centro histórico e as zonas centrais, acentuando a tendência a se tornarem mais “crimináveis” e mitificá-los como lugares perigosos.
A cidade tradicional é cada vez menos usada em seu sentido de socialização através de seus espaços públicos que ofereceram em suas origens a possibilidade de interagir com o outro, de fazer confluir a diversidade, de poder cruzar-se numa rua ou praça com os vizinhos, de serem aproveitados por crianças e jovens.
As possibilidades de intercâmbio se reduzem, em grande parte, acentuadas pela insegurança que provoca o ambiente imediato e, portanto, aumenta o sentimento de individualidade. Os vizinhos não se conhecem, as crianças não brincam na rua e nem suas escolas estão no bairro. A vida é feita a portas fechadas, acabando com a socialização.
A setorização da cidade contemporânea atende ao nível de consumo de seus “clientes”, não mais dos cidadãos, convertendo-se zonas centrais em cenário de conflitos sociais que desencadeiam reações violentas, bem pela reclamação de espaços de direitos fundamentais ou pelo aproveitamento destas condições de extrema pobreza por parte do crime organizado, que encontra nestes setores da sociedade o terreno perfeito para o surgimento de assassinos, gangues, cafetões, prostitutas, traficantes de drogas, como uma possibilidade de obter "dinheiro fácil" com que fazer a ponte entre os dois modelos de cidade que convivem: aquela sórdida, pobre e marginal e aquela rica, opulenta e tentadora. Uma insegura e perigosa e a outra segura e confiável.
As assimetrias sociais, de crescimento exponencial tem criado uma polarização extrema da sociedade onde se criminaliza o excluído. O império das leis de mercado, a difusão da filosofia do “ganhador” e do “perdedor”, as tensões criadas por um comportamento cada vez mais elitista, racista, machista ou inclusive fascista, vão calando na sociedade e no lugar onde ela evolui ou regride, ou seja, na cidade; e sua expressão mais evidente se da no espaço público.
E onde se assentam geralmente esses setores marginalizados? Nas zonas centrais, abandonadas pelas classes altas, nobres e oligárquicas que em séculos passados venderam à especulação seus antigos palacetes. Logo os centros históricos são o assentamento de cidadãos potencialmente “perigosos”. E não deixa de ser certo que efetivamente nestes se dão as condições para que se desenvolva a criminalidade.
Segundo comentário de Lucía Dammert: sem dúvida o centro histórico é um espaço potencial para a violência [que por sua vez foi convertida] num dos aspectos mais dramáticos da degradação e da deterioração do centro histórico, tanto é – simultaneamente – causa e efeito da mesma... Os imaginários sobre o centro histórico se constroem também sobre a base de estigmas: pobreza, mercado ambulante, lixo, prostituição, insegurança, com o qual se definem posições, não para solucionar os problemas, mas para expulsá-los.
As classes altas e medias renunciaram o espaço público da cidade tradicional por medo. Os pobres e marginais se viram obrigados a conviver com ele. Este fenômeno está perfeitamente descrito por Jordi Braga faz uns anos: a agorafobia urbana é o resultado da imposição de um modelo econômico e social que se traduz numa forma esterilizada de fazer a cidade visível onde seja rentável e ignorando ou esquecendo o restante.
A agorafobia é uma doença de classe, já que apenas podem se refugiar no espaço privado as classes altas... Os pobres muitas vezes são as vítimas da violência urbana, mas não podem se dar ao luxo de negligenciar o espaço público.
Ocupação, Invasão, Contaminação
Outro fenômeno associado ao espaço público é o comercio ambulante, também conhecido como “informal”, o que se pode ver a partir de óticas diametralmente opostas; apenas uma compreensão completa de interesses tão diversos envolvidos na sua dinâmica poderia começar a dar soluções convincentes. Quando se classifica como ambulante, se associa com a tradição dos mercados abertos tipo ‘tianguis’ da época pré-hispânica, que trazem uma riqueza étnica e cultural de absoluta legitimidade. Observados na sua qualidade de "informalidade" é concedido a eles um sinal de ilegitimidade e usurpação. Mas em ambos os casos, em geral, se constitui uma alternativa econômica de emprego e aquisição de bens para as camadas mais pobres da sociedade.
No contexto neoliberal excludente, fica marginalizada do mercado laboral uma grande quantidade de setores sociais, o que se supõe, segundo Pérez Sainz, que esta mobilidade de auto-geração de emprego está assinada por lógicas de subsistência, daí sua denominação como economia da pobreza. Trata-se de pobres produzindo para pobres.
A maioria destes mercados ambulantes, tomados por máfias do mercado negro são terreno fértil para o desenvolvimento de ilegalidades. Esta ocupação do espaço público foi crescendo de maneira caótica, indiscriminadamente, provocando graves e complexas distorções urbanas: de ordem legal (praticamente um espaço foi privatizado que é por direito de domínio público), de ordem física (único uso comercial) e social (marginalidade reprodutiva²). Enfrentar com coragem e determinação a invasão do espaço público, dando alternativas que não excluam, mas sim que integrem todos os cidadãos, constitui um dos desafios para o exercício do governo dos centros históricos e áreas centrais da cidade.
A solução de tão graves conflitos não depende exclusivamente de políticas locais. O analfabetismo, a exclusão social, a falta de emprego, a falta de acesso à educação por parte das crianças, são problemas profundamente enraizados que devem ser resolvidos a nível nacional. Só a partir de premissas articuladas em diferentes escalas, pode e deve ser legitimado o comércio ambulante como uma tradição e um direito, que em grande parte terá sua expressão no espaço público, sob regras acordadas com a autoridade municipal.
Como bem defendem Jordi Borja e Zaida Muxi: O espaço público é uma conquista democrática. A conquista implica iniciativa, conflito e risco, mas também legitimidade, força acumulada, alianças e negociação.
Mas o espaço público também tem sido invadido por outros agentes altamente nocivos que atentam contra sua essência, tornando-o hostil: o automóvel privado, a contaminação atmosférica, a publicidade. Tríade gerada por uma forma de vida predadora e insustentável.
A colonização do espaço público pelo automóvel privado (utilizado apenas por determinadas classes) deslocou o pedestre de uma forma quase absoluta; a rua deixou de ser um local de passeio para se converter num lugar por onde deslocar-se à maior velocidade possível, ou onde estacionar, impedindo o cruzamento no meio da quadra; deixou de ser um lugar permeável para se converter em superfície lisa que se torna torrente de águas da chuva que vão parar, no melhor dos casos, em drenagens que não a reciclam; a quantidade de automóveis foi incrementada de tal maneira que em muitas ocasiões as ruas tiveram que ser alargadas, ao custo de transformar o tecido urbano tradicional, e até mesmo crescer em altura multiplicando-se verticalmente ao passo que criam nós viários de tal complexidade que inevitavelmente separam áreas da cidade, causando verdadeiras fraturas urbanas, à margem de criar espaços residuais absolutamente degradados, nas "zonas de segurança" dos baixos e flancos. O caos do trânsito de veículos foi se tornando um perigo para os cidadãos a pé.
Obviamente esta quantidade de automóveis gera uma contaminação do ar no espaço público que, aliado à poluição produzida por outras fontes, produz danos à saúde e ao meio ambiente no sentido geral, com todas as implicações agressivas que isso traz.
E por último, a propaganda comercial, essa epidemia da sociedade de consumo que não apenas intoxica com mensagens publicitárias ou distrai a atenção do trânsito, mas que cobre valores arquitetônicos, urbanos ou paisagísticos submetendo-os à sua tirania. A cidade fica oculta por trás de enormes placas com rostos, famílias e imagens geralmente muito diferente das maiorias que as observam.
Um tratamento especial deverá ter o Grafite Urbano, outro elemento que nos últimos anos invade o espaço público e que vai desde uma reclamação social até uma manifestação artística. Proibi-lo não é possível, nem soluciona o conflito. Muito menos ignorá-lo. Trata-se sem dúvidas de um novo fenômeno criativo, cuja expressão se dá no espaço público e com o qual sem dúvidas terá que haver um diálogo para que a convivência seja enriquecedora e agregada de valor ao invés do contrário.
Fachadismo e Cenografia
Na qualidade da imagem urbana que transmite o espaço público e em sua segurança, tem um papel fundamental a fachada dos edifícios. Aberturas muradas, modificadas ou danificadas, locais enclausurados, portas metálicas de segurança “cegas”, tornam sombras no percurso; varandas, marquises, e outras coberturas em mau estado as tornam perigoso para qualquer transeunte, mas esses argumentos sólidos não podem justificar um modus operandi extremamente perigoso: a prática do "fachadismo". A atuação única nas fachadas, quando os imóveis estão desocupados ou em ruínas resulta inadmissível, uma vez que geraria uma cenografia para os turistas.
Mas tampouco temos que descuidar da importância suprema da fachada no cenário urbano e sua enorme influência na percepção do lugar, o qual levanta a questão de necessária análise, quando a reabilitação total dos imóveis é muito cara e se distancia cada vez mais no tempo, se bem a fachada forma parte do edifício privado, ela também conforma o espaço público, resulta portanto numa “zona de fronteira” que merece um tratamento diferenciado.
Em tal sentido, seria lógico e necessário pensar uma ação que implicaria a restauração de fachadas condicionada à realização de ações indispensáveis que melhorem a habitabilidade do imóvel, sem chegar a uma profunda restauração.
Desta maneira, os beneficiados com este tipo de ação não seriam apenas os residentes do imóvel “melhorado”, mas sim todos os cidadãos em geral que desfrutariam novamente de um ambiente mais agradável e ‘re-dignificado’.
Outra ação que restabeleceria consideravelmente a qualidade do espaço público, de consideravelmente baixo custo e alto benefício, é um tratamento inteligente dos vazios ou reservas urbanas fruto de demolições ou ruínas de edificações: neles poderiam ser criados serviços em construções leves ou ao ar livre que, além de tornar produtivo o solo enquanto não chega a inversão definitiva, feche adequadamente a linha de fachada e incorpore animação, evitando desta maneira os focos de insalubridade.
O espaço urbano público do século XXI
Pelo desenvolvimento, necessariamente há de se completar uma volta em espiral: recuperar o espaço público implicara um retorno ao essencial que o caracterizou, tendo em conta elementos e sábias soluções de outros tempos, ou seja, nos inspirar na tradição, mas a partir de uma perspectiva mais elevada que incorpore tudo aquilo que nossa época facilita. Também temos que corrigir distorções complexas e reverter situações realmente perversas e bastante enraizadas... Temos que mudar mentalidades e facilitar novas formas de viver o espaço público, garantindo cinco aspectos fundamentais: conectividade-mobilidade, funcionalidade, segurança, comodidade e beleza.
Outro elemento essencial é modificar a noção do tempo em sua relação com o uso do espaço público da cidade tradicional e sua conotação. Conscientes de que é ir contra a correnteza, numa sociedade onde a velocidade foi imposta ao custo de perder qualidade de vida, onde “tempo é dinheiro”... Pareceria uma utopia planejar que é urgente acalmar a dinâmica do espaço público. É uma questão de essencial importância para a saúde da sociedade e dos indivíduos. Trata-se de contrapor a filosofia do “fast-food” à de “slow-food”.
Não é à toa que foram mencionados vários termos da cultura ocidental dominante. Porque se se trata de voltar às raízes, para enriquecer conceitos contemporâneos que tornam mais amável o uso da cidade através de seus espaços públicos, se impõe o retorno ao estilo de vida e gerar outros novos que se distanciam diametralmente da filosofia por trás dessas frases feitas.
Em outras palavras, o espaço público será um lugar para ser desfrutado por todos com pelo direito, onde não haverá perdedores e ganhadores... mas bem todos sairão ganhando; será um lugar onde o tempo será também vida e não apenas dinheiro; onde a “comida” entendida como uma generalização de um ritual essencialmente social será lenta, isto é, que haverá tempo para a apreciação de tudo aquilo que supõe o crescimento urbano, tanto em indivíduos como em coletividades.
O início da reapropriação do espaço público estará garantido se forem cumpridos ao menos determinados princípios:
¹ Considera-se descontado que as zonas de subúrbios urbanos, cidades dormitórios, zonas periféricas marginais ou outros lugares da cidade segregada, os espaços não ocupados por parcelamentos ou edificações de diversa índole, sejam estes formais ou informais, privados ou públicos, independente da qualidade ambiental que possuem, são espaços residuais destinados a circulação de veículos ou simples zonas verdes devidas às normativas de indicadores urbanos, que em muitas ocasiões de estarem previsto como áreas de todos, se tornaram zonas de ninguém. Estes “não lugares” são transformáveis em Espaços Públicos, como é natural, mas não é objetivo deste artigo entrarmos neste outro mundo.
² Trata-se de famílias, geralmente mulheres e seus filhos pequenos, condenados ao analfabetismo e ao trabalho infantil, sem nenhuma possibilidade de escapar do círculo da pobreza, reproduzindo o padrão social herdado dos pais.
Patricia Rodriguez Alomá, Doutora Arquiteta. Diretora Acadêmica do programa de pós-graduação em Reabilitação de Centros Históricos e Bairros Degradados da área de Gestão da Cidade e Urbanismo da Universidade Aberta da Catalunha (UOC).
Artigo Original via Plataforma Urbana
Tradução: Gabriel Pedrotti. Equipe ArchDaily Brasil.