Fotografia e Arquitetura: Sergio Larraín Echeñique, a cidade como suporte do fortuito

Por Felipe Contreras e Diego Ramírez*

“E eu não podia fazer nada, dessa vez não podia fazer absolutamente nada. Minha força havia sido uma fotografia, alí, onde se vingavam de mim mostrando abertamente o que iria acontecer."

- Julio Cortázar, Las babas del Diablo

Introdução No ensaio seguinte apresentamos a obra do fotógrafo Sergio Larraín Echeñique a partir de diversos aspectos que decidimos desenvolver em pequenos capítulos. Não quisemos limitar nossa visão sobre o assunto a um único tema, já que a obra de Larraín é por si só complexa, e até certo ponto impossível de classificar, da mesma forma que foi o próprio fotógrafo. Dividimos assim nossa análise em quatro aspectos que achamos que poderiam esclarecer o significado de suas imagens: Cidade como cenografia, fotografia espontânea/fotografia planejada, arquitetura imperfeita e interior/exterior.

Roberto Bolaño, em “Los personajes fatales”, se perguntava sobre a relação entre Larraín e as questões que aparecem em algumas de suas imagens londrinas. Solitários, solenes, abatidos, que "por trás dos óculos escuros é provável que escondam um par de olhos vermelhos e insones". A resposta a sua prórpia pergunta é que "é provável que este viajante espacial tenha reconhecido em Larraín um semelhante". "Posso imaginar Larraín com o rosto cortado essa manhã ao fazer a barba ou como se não soubesse se barbear. Em algumas imagens Londres parece um aquário. Silenciosa e primordial. Em outras é Larraín que parece estar dentro de um aquário fotografando um planeta vasto e vagamente familiar" (p.48). O fotógrafo e sua obra estabelecem uma relação particular: um estrangeiro fotografando estrangeiros, estranhos que se encontram e compartilham a indiferença com o mundo que os rodeia, ao passo que não parecem ter nenhuma intenção de se rebelar contra o mesmo.

Julio Cortázar se baseou no fotógrafo chileno para escrever seu conto “Las babas del diablo”, que logo seria levado para o meio cinematográfico por Michelangelo Antonioni. O elemento irracional da fotografia é exagerado em suas possibilidades: o negativo se torna a evidência do crime, e o processo de revelar, seu meio de investigação. Longe da fotografia planejada, as imagens de Larraín estão repletas do mistério e do inexplicável. Não teria sentido tentar dar muitas respostas sobre sua obra. Preferimos nos ater a observar algumas questões.

A cidade como cenografia Em que consiste a lucidez na fotografia? Em ver o que se deve ver e não ver o que não deve ser visto? Em ter sempre os olhos abertos e ver o todo? Em selecionar aquilo que se vê, em fazer falar aquilo que se vê? —Roberto Bolaño, p.45

Um homem caminha pelas ruas de Londres de costas para Larraín. O personagem parece quase um clichê do cavalheiro londrino: chapéu, terno preto, e ainda que só possamos ver parte de seu sapato, o brilho que emana de um deles é suficiente para perceber o asseio do indivíduo. O mesmo caminha em direção a um horizonte nebuloso, em uma cena urbana de aparência pacífica. À sua direita se encontra uma fila do que parecem ser edifícios de altura mediana, com suas respectivas entradas. Na entrada mais próxima do personagem há uma mulher jovem fumando.

A mulher olha fixamente para o sujeito, com as sobrancelhas levantadas e a cabeça virada, e não podemos saber se o homem retribuiu seu olhar. A cidade assim se transforma no cenário de uma situação particular e imprevisível. Foi por causa do ruído dos passos em uma rua semi vazia que a mulher virou sua cabeça? Seu objeto de análise é o personagem vestido de preto, ou talvez o próprio fotógrafo? Ou talvez a mulher conhecesse o personagem inglês, que parece levar em sua mão direita uma bolsa com conteúdo desconhecido, do qual ela poderia ser a destinatária. Enfim, as interpretações do instante captado por Larraín são múltiplas, e dão vazão à imaginação. Não é de se admirar portanto o fascínio que Larraín produziu em distintos autores, e que deu origem ao relato mencionado de Cortázar, bem como ao interesse de Neruda ou Bolaño.

O acaso em oposição a uma fotografia planejada Quando vemos a imagem de 1957 de duas meninas quase idênticas descendo as escadas em Valparaíso como se fossem uma a sombra da outra, percebemos um momento único e excepcional, que se não fosse captado pela câmera não teríamos imaginado. Indo além, podemos deduzir que nesse mesmo lugar devem ocorrer uma infinidade de situações igualmente imprevisíveis, mesmo que não sejam registradas. Larraín nos convence então de que a natureza na realidade é fortemente poética, mais comovente e surpreendente do que qualquer acontecimento de ficção planejado. Esta é a mesma realidade que invade todos os cantos de qualquer cidade, cheios de acontecimentos efêmeros e invisíveis.

Sergio Larraín entende então a cidade e sua arquitetura como um ser vivo em constante transformação. Não lhe interessam suas pretensões de pureza e monumentalidade, mas as constantes mudanças a que a arquitetura esta sujeita através de seus habitantes e do decorrer do tempo. Razões pelas quais não há uma preparação prévia do que vai ser fotografado, é assumida uma postura que não antecipa os fatos, simplesmente está atenta ao presente: O presente/instante É a meta Não é o caminho É a meta — Sergio Larraín, p.151

O que é imortalizado em suas imagens então são momentos do cotidiano que a arquitetura não pode antecipar em seu funcionalismo.

“Diz-se que a câmera não pode mentir porque a fotografia não tem linguagem própria, porque cita mais do que traduz. Não pode mentir porque imprime diretamente." —Berger, p.96

Arquitetura imperfeita Queremos um mundo ideal E não vemos o que há  —Sergio Larraín, p.31

Valparaíso, Chile 1956. IVAM centre Julio González, 1999, p.6. Image © Sergio Larraín Echeñique

As imagens de Larraín que mostram o ambiente construído muitas vezes se localiza entre cidades e edifícios gastos, usados, de épocas difíceis de determinar. Quer seja Cusco, Londres, Valparaíso ou Sicília, parece que em seu imaginário fotográfico não existem construções novas, limpas ou higiênicas. Da mesma forma, as construções nunca se mostram desabitadas. Pelo contrário, são sempre os personagens que habitam estes lugares que ativam o espaço fotografado. Existe por sua vez uma relação entre estes lugares e seus habitantes: seres que parecem gastos como as paredes que os rodeiam.

Isso supões uma diferença radical em relação à fotografia de arquitetura moderna. Nela, a imagem é um meio que permite representar um espaço da maneira mais idealizada possível, normalmente sem habitantes, e sem deixar evidências de suas possíveis falhas. Se "a arquitetura moderna era uma arquitetura encenada, mascarada" (Colomina, p.114), a arquitetura retratada por Larraín parecia representar justamente o contrário.

A fotografia seguinte mostra um interior. O centro de atenção da imagem é uma parede. Esta dá conta de um universo próprio. Em sua parte inferior é possível observar o tapume de madeira tradicional das casas de Valparaíso, sobre o qual então é possível apreciar o que parece ser um mural de papel gasto. Uma enorme rachadura atravessa todo o papel de parede no extremo à esquerda da imagem, da mesma forma que é possível observar nele partes infladas possivelmente devido a problemas de umidade, e sua união com a madeira, que se encontra descolada e mal recortada. Sobre o papel se observa um espelho e um quadro. Seria possível continuar investigando estes aspectos da imagem, mas o mais notório dela é que apesar da fragilidade do lugar que retrata, é capaz de utilizar estas mesmas imperfeições para gerar leituras visuais sofisticadas. Por exemplo, o espelho, que se encontra perigosamente inclinado, mostra por sua vez outro espelho e uma janela, ampliando as possibilidades visuais da imagem, e encenando uma situação de aparência comum a partir de pelo menos dois pontos de vista. Um homem e uma mulher dançam, e podemos observar os rostos dos dois personagens, embora se encontrem atrás de nós, e ambos olhando em direções contrárias.

Interior / Exterior: o ponto de vista Enquanto Larraín vai ao encontro do casual e imprevisível, é possível perceber em seu trabalho uma clara consciência do lugar a partir do ponto em que se instala como observador. Em suas imagens, de uma naturalidade evidente, conseguimos por um momento estar na posição do fotógrafo e como tal perceber a carga atmosférica da arquitetura que o envolve e às vezes o esconde. Larraín, e portando nós através da fotografia, nos transformamos em mais um desses habitantes que percorrem a cidade de maneira imprevisível.

Valparaíso, Chile 1963. IVAM centre Julio González, 1999, p.140. Image © Sergio Larraín Echeñique

Na fotografia de Sicília estamos testemunhando algo que está para acontecer. Em seu olhar de novidade infantil, de uma criança com a câmera observando pela primeira vez, percebemos o interior como um lugar seguro em contraposição à situação incerta que nos relata o exterior. Como afirma Gonzalo Leiva, "Se tivéssemos que estabelecer suas contribuições concretas para a fotografia, a primeiro seria a importância estética do olhar da criança que descobre o mundo. Nesse sentido, suas imagens são uma afirmação que é necessária pois confirma as certezas do universo." (Leiva, p.128).

A arquitetura é então um refúgio para o fotógrafo, que por sua vez parece simpatizar com as crianças da rua, carentes de um interior que os proteja, cercados por um exterior hostil.

Síntese Embora Sergio Larraín não se relacione diretamente com a fotografia de arquitetura, é interessante perceber que na maioria de suas imagens é possível refletir sobre os quatro temas aqui citados. Poderíamos dizer que neles se repete a noção de não pensar na vida e e na arquitetura como situações separadas, mas entender que ambas se encontram intimamente relacionadas.

: Villalba, Palermo, Sicilia 1959. IVAM centre Julio González, 1999, p.96. Image © Sergio Larraín Echeñique

O espaço é definido pelos eventos que nele acontecem, e por isso se encontra em transformação permanente. A fotografia de Larraín assume esta condição efêmera e incontrolável de seu entorno, e se introduz nela mostrando faces da vida cotidiana que frequentemente passam despercebidas, tal como os fatos que se revelam diante do personagem do relato de Cortázar.

“A metáfora que Sergio Larraín nos abre é como o mito da caverna de Platão, onde está a verdade, no fundo da caverna ou fora dela? É necessário em Platão a presença do filósofo assim como em Larraín a do fotógrafo para iluminar, embora a experiência seja dura, os fragmentos de verdade que aprecem em nosso horizonte, como tantas imagens de Larraín que anunciam novas auroras."  —Leiva, p.88

No contexto do nosso ensaio, nos perguntamos onde está a verdade da arquitetura, em sua pureza ou em seu vínculo estreito com os personagens e acontecimentos que a habitam?

Bibliografia Berger, John, y Mohr, Jean. Otra manera de contar. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2007. Bolaño, Roberto. “Los personajes fatales”, en IVAM centre Julio González. Valencia, 1999, p.45. Colomina, Beatriz. “Los medios de comunicación como arquitectura moderna”, en Revista EXIT n° 37, p.114. Cortázar, Julio. Las armas secretas. Buenos Aires: Sudamericana, 1970 Kirstein, Lincoln. The photographs of Henri Cartier-Bresson. New York: The Museum of Modern Art. 1947.Larraín, Sergio. IVAM centre Julio González. Valencia: IVAM centre Julio González, 1999 Leiva, Gonzalo. Sergio Larraín. Biografía/estética/fotografía. Santiago de Chile: Metales Pesados, 2012. Revista EXIT n° 37, La mirada del artista. Madrid: 2010

*Diego Ramirez e Felipe Contretas são estudantes do programa Magister en Arquitectura/MARQ da Pontificia Universidad Católica do Chile.

Ensaio desenvolvido pelos autores como trabalho final do curso Arquitecturas de América Latina do Programa de Magíster en Arquitectura/MARQ da Pontificia Universidad Católica do Chile, pelos professores Andrés Téllez e Igor Fracalossi.

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Sobre este autor
Cita: Felipe Contreras y Diego Ramírez. "Fotografia e Arquitetura: Sergio Larraín Echeñique, a cidade como suporte do fortuito" [Fotografía de Arquitectura: Sergio Larraín Echeñique, la ciudad como soporte de lo fortuito] 18 Fev 2014. ArchDaily Brasil. (Trad. Helm, Joanna) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-177588/fotografia-e-arquitetura-sergio-larrain-echenique-a-cidade-como-suporte-do-fortuito> ISSN 0719-8906

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