“Não há, certamente, fenomenologia, mas sim problemas fenomenológicos.” Ludwig Wittgenstein
Para passar de um espaço discursivo a outro, para avançar mediante o razoamento, um texto se converte num conduto necessário, embora inadequado. Ao escrever sobre arquitetura e percepção nos vemos inevitavelmente cercados pela pergunta: somos capazes de entrever a palavra na forma construída? Se se pretende que a arquitetura trascenda sua condição física, sua função como mero refúgio, então seu significado como espaço interior deve ocupar um espaço equivalente dentro da linguagem. A linguagem escrita deveria, pois, assumir as silenciosas intensidades da arquitetura.
Posto que as palavras são abstratas, não se concretam no espaço nem na experiência sensorial material e direta, esta tentativa por entender o significado arquitetônico mediante a linguagem escrita corre o risco de desaparecer. Se poderia propor um espaço impossível, inacessível através da linguagem; não obstante, as palavras não podem substituir a autêntica experiência física e sensorial. A tentativa de transmitir uma consciência fortalecida é, em palavras de Rainer Maria Rilke, “uma questão de passar a ser tão plenamente conscientes de nossa existência como seja possível”.
Nossa experiência e nossa sensibilidade podem evolucionar mediante a análise reflexiva e silenciosa. Para nos abrir à percepção devemos transcender a urgência mundana das “coisas que há que fazer”. Devemos tentar aceder a essa vida interior que revela a intensidade luminosa do mundo. Só por meio da solidão podemos começar a nos adentrar no segredo que nos rodeia. Uma consciência de nossa existência única e própria no espaço resulta crucial no desenvolvimento de uma consciência da percepção.
A introspecção pode suscitar a necessidade de comunicar descobrimentos feitos em solidão: a reflexão privada provoca a ação pública. Nosso mundo está repleto de tarefas mundanas das que nos devemos liberar; a vida cotidiana está repleta de aparatos que acumulam nossa atenção e satisfazem nossos desejos, reconduzindo-os a enganosos fins comerciais. A existência comercial moderna enturva a questão acerca do essencial. À medida que nossos meios tecnológicos se multiplicam, amadurecemos ou mais bem atrofiamos desde um ponto de vista perceptivo? Vivemos nossas vidas em espaços construídos, rodeados de objetos físicos. No entanto, havendo nascido neste mundo de coisas, somos capazes de experimentar plenamente os fenômenos de sua interrelação, de obter prazer de nossas percepções?
A arquitetura tem o poder de inspirar e transformar nossa existência do dia-a-dia. O ato cotidiano de agarrar a maçaneta de uma porta e abrí-la a um campo banhado de luz pode se converter num ato profundo se o experimentamos com uma consciência sensibilizada. Ver e sentir estas qualidades físicas significa tornar-se o sujeito dos sentidos.
Para avançar a estas experiências ocultas devemos atravessar o véu onipresente dos meios de comunicação em massa. Devemos fortalecer nossas defesas para resistir ante as distrações calculadas que podem minguar tanto a psique como o espírito. Devemos prestar atenção em tudo aquilo que está tangivelmente presente. Se os meios de comunicação nos convertem em receptores passivos de mensagens vácuos, devemos nos posicionar firmemente como ativistas da consciência. Só ao reafirmar enérgica e apaixonadamente nossa existência poderemos aceder a aquilo que Stéphane Mallarmé denominava a “força do negativo [...] que elimina a realidade das coisas e nos libera de seu peso”.
Mais plenamente que o resto das outras formas artísticas, a arquitetura capta a imediatez de nossas percepções sensoriais. A passagem do tempo, da luz, da sombra e da transparência; os fenômenos cromáticos, a textura, o material e os detalhes…, tudo isso participa na experiência total da arquitetura. A representação bidimensional -em fotografia, em pintura o nas artes gráficas- e a música se encontram sujeitas a limites específicos e, por isso, captam só parcialmente a multidão de sensações que evoca a arquitetura. Embora a potência emocional do cinema é irrefutável, só a arquitetura pode despertar simultaneamente todos os sentidos, todas as complexidades da percepção.
Ao unificar o primeiro plano, o plano médio e as vistas longínquas, a arquitetura ata a perspectiva ao detalhe e o material ao espaço. Uma experiência cinemática de uma catedral de pedra pode levar o observador através e por cima dela, ou inclusive fazê-lo retroceder fotograficamente no tempo, mas só o edifício real permite que o olho deambule livremente por entre os detalhes engenhosos; só a arquitetura oferece as sensações táteis da textura da pedra e dos bancos polidos de madeira, a experiência da luz cambiante com o movimento, o cheiro e os sons que ecoam no espaço e as relações corporais de escala e proporção. Todas estas sensações se combinam numa experiência complexa que passa a estar articulada e a ser específica, embora sem palavras. O edifício fala dos fenômenos perceptivos através do silêncio.
Embora as sensações e impressões nos envolvam silenciosamente nos fenômenos físicos da arquitetura, a força generativa radica nas intenções que residem além dela. O comentário de Goethe de que “uma pessoa deveria buscar nada além dos fenômenos; estes constituem lições em si mesmos” fica curta frente a uma postura filosófica mais moderna, que teria sua origem em Franz Brentano e Edmund Husserl e que mais tarde desenvolveria Maurice Merleau-Ponty.
As questões da percepção arquitetônica subjazem nas questões de intenção. Esta “intencionalidade” afasta a arquitetura da pura fenomenologia associada às ciências naturais. Seja qual for a percepção de uma obra construída -problemática, desconcertante ou banal-, a energia mental que a gerou resulta a final de contas deficiente, a menos que não se haja articulado o propósito. A relação entre as qualidades experienciais da arquitetura e os conceitos generativos é análoga à tensão que existe entre o empírico e o racional; é aqui onde a lógica dos conceitos preexistentes se encontra com a contingência e particularidade da experiência.
Na cidade moderna, as complexidades fenomênicas e experienciais se desenvolvem só parcialmente mediante o propósito e muito frequentemente se originam de forma acidental a partir da superposição semi-ordenada, embora imprevisível, de propósitos individuais.
Segundo Franz Brentano, os fenômenos físicos captam nossa “percepção exterior”, enquanto que os fenômenos mentais concernem a nossa “percepção interior”. Os fenômenos mentais têm uma existência real e intencional. Desde o ponto de vista empírico, um edifício poderia nos satisfazer como uma entidade puramente físico-espacial, mas desde o ponto de vista intelectual e espiritual necessitamos entender as motivações que encerra. Esta dualidade de intenção e de fenômenos é similar à interação que existe entre o objetivo e o subjetivo ou, dito de um modo mais simples, entre o pensamento e o sentimento. O desafio da arquitetura consiste em estimular tanto a percepção interior como a exterior, em realçar a experiência fenomênica enquanto, simultaneamente, se expressa o significado, e desenvolver esta dualidade em resposta às particularidades do lugar e da circunstância.
Para entender a interação entre os fenômenos experienciais e seu propósito, disseccionamos o todo e analisamos nossas percepções parciais. Da mesma forma que na experiência perceptiva direta, a arquitetura se entende inicialmente como uma série de experiências parciais mais que como uma totalidade.
Texto original em espanhol: Steven Holl (Cuestiones de Percepción: Fenomenología de la arquitectura, GG, 2011) / Tradução: Igor Fracalossi