Analisando a proliferação de pós e neos 1, Susan Buck-Morss escreve em Log 11 que esta se deveria a que sofremos uma sorte de depressão pós-parto. Depois de estar esperando por tanto tempo um futuro que o mundo acaba de parir, acabamos ficando francamente desiludidos 2.
E sustenta que ela não está só nessa avaliação. Cita Frederic Jameson, quem descreveu o pós-modernismo como sintomático do que se chama uma «modernização incompleta», desilusionante. E se de algo tem estado grávida a arquitetura recente é do futuro que desde duas décadas a revolução digital vem prometendo. Não é muito difícil encontrar autores teorizando o digital e cujos textos não estejam senão marcados pela desilusão e desencanto, já seja pela inércia da indústria da construção em se adequar às mudanças, à inaptidão das instituições acadêmicas, ou à incapacidade dos mesmos arquitetos (sobretudo os arquitetos) para entender a real dimensão das novas possibilidades. Não é estranho que escutar, por exemplo, lamentações acerca da incapacidade de chegar a um acordo sobre o que o desenho paramétrico em arquitetura se trata 3. E o futuro, em seu papel tradicional, emerge como horizonte de realização, prolongando a gravidez (ou adiando o parto) de maneira indefinida. Talvez, seguindo Jameson, o digital se trata de uma «realização incompleta» e que define então o que poderíamos chamar uma condição «pós-digital».
O termo foi lançado em 2006 por Mark Cousins e Brett Steele como título de um curso na Architectural Association. Propunham avaliar os êxitos, alcances e promessas da chamada arquitetura digital, a quase 20 anos do surgimento de formulações teóricas que desde distintas perspectivas haviam tentado articular as possibilidades oferecidas pelo desenho assistido por computador. No entanto, mais além do uso que este curso deu ao termo, caberia se perguntar se o pós-digital -seguindo Jameson- não é parte mais bem do pós-moderno, vale dizer, uma consequência da tarefa pendente de «realização» moderna. O anterior, sobretudo, se tomamos em conta que muitos dos temas recorrentes no discurso digital retomam linhas cruciais do debate moderno sobre pré-fabricação e montagem, em particular, todas aquelas noções que dependem do argumento central de que uma nova tecnologia articulará sempre uma nova arquitetura. Ou em outras palavras, que a forma não é senão a consequência lógica da técnica. A substituição do arquiteto-artista por uma inteligência coletiva; a superação de edifícios monolíticos e estáticos por uns flexíveis, dinâmicos e abertos à transformação; a insistência na eficiência econômica de sistemas de produção massivos (já sejam repetitivos ou de variação paramétrica), e a preponderância do desenho de componentes seriam algumas destas idéias centrais, recorrentes. No entanto, o que interessa a este artigo não é demonstrar que dita continuidade existe (ao fim e ao cabo, como diria Kipnis, em vez de nos perguntar em quê se parecem, importa entender em que se diferenciam). O que interessa seria caracterizar o pós-digital, em suas desilusões e esperanças, como um estado de coisas e uma acumulação de discursos -antes de que a amnésia histórica de algum «neo» nos lance sua cortina de fumaça.
Proponho então revisar brevemente e de forma muito esquemática algumas posturas teóricas que permitiriam configurar o tom de um certo estado pós-digital, e cujo legado imediato não é senão um infinita variedade discursiva cujas proposições não só são distintas mas muitas vezes apontam em direções opostas. Através de uma série de distinções seria possível nomear paradigmas matemáticos, filosóficos e biológicos que combinados ou por separado tentaram fundamentar a forma arquitetônica gerada por computador para um certa cultura pós-digital que surgiria como um campo disperso de discursos, argumentos teóricos e retóricas projetuais.
A fascinação de Cacil Balmond, por exemplo, em observar algoritmos «correndo» no computador numa explosão de pixels que cresce em saltos irregulares 4 parece surgir de entender o computador como o gerador de estratégias de desenho baseadas no inesperado. Isto transforma o desenhista num avaliador das qualidades formais e estruturais das alternativas geradas automaticamente pela interação entre uma certa configuração inicial e seu desenvolvimento algorítmico. Esta postura supõe que estas formas crescem e se relacionam gerando espaço 5. Em ultima instância, e em relação ao desenho de estruturas, esta interação se torna um problema geométrico (e que fundamenta o Advanced Geometry Unit que Balmond dirige em Arup). Agora bem, quando Balmond escreve esta aproximação começa a combinar tecnologias digitais avançadas e um pensamento estrutural excepcionalmente sofisticado com um certo misticismo matemático que vê nos números, o fundamento último do universo (tema que visita periodicamente em livros e artigos, em particular «Number 9» e «Element»). O tom poético de «Deep Structure», por exemplo, refere ao cosmos, os números e os ritmos; as harmonias musicais; a terra, o ar e o fogo, para um argumento que tenta descifrar a configuração algorítmica do mundo 6.
Para alguém como Martin Self, ao contrário, o mesmo argumento se desenvolve numa direção distinta, apesar de trabalhar com Balmond em Arup. Self tenta repensar noções de complexidade e autoria desde a relação que o computador oferece entre as categorias do automático e do inconsciente. Se a compreensão do digital é de carácter matemático derivado do cálculo e baseado em algoritmos; poderíamos supor certa afinidade entre os discursos de Balmond, Self e George Legendre. No entanto, este último defende, em particular, que a noção de superfície é seu objeto de conhecimento. Nos diz que adora as superfícies imateriais tal como os pintores adoram os pigmentos, tão só por suas qualidades expressivas 7. Seu argumento formula a noção de forma matemática através da combinação de abstração, figuração e performance, e desenvolve estratégias de desenho baseadas na modelação paramétrica de superfícies variáveis. Quiçá o mais relevante que defende é a eliminação do que considera uma premissa desnecessária para a forma paramétrica: que o todo deve ser (ou estar) separado em partes 8. Com isto, além de revisar o status do objeto arquitetônico clássico, reage à ensamblagem moderna e à conceitualização tradicional de componentes.
Bernard Cache, por sua parte, propõe diretamente que a forma deve ser calculada e anuncia com isto um ponto de quebra disciplinar que obrigaria a enfrentar o fato de que as matemáticas se tornaram, efetivamente, um objeto de fabricação 9. Em seu argumento, foi Leibniz quem antecipou toda ciência computacional ao propor a ideia de que qualquer forma, não importa se é simples ou complexa, pode ser calculada. Para Cache, isto é suficiente para autorizar suas tentativas por desenhar digitalmente 10. A leitura que Cache faz de Leibniz sustenta que o cálculo fornece a possibilidade de desenhar formas como modulações de superfícies abstratas, permitindo assim desenhar o não-padrão. Estudante de Deleuze na Universidade de Paris, esta postura parece derivar do projeto proposto pelo filósofo em Difference et Repetition (1968), vale dizer, a revisão sistemática da relação tradicional entre identidade e diferença (onde a noção de diferença é vista como uma derivação da identidade de um objeto). Por outro lado, Deleuze sustenta que toda identidade é mais bem um efeito da diferença; em outras palavras, que a identidade de um objeto (em este caso arquitetônico) não é lógica ou metafisicamente anterior à multiplicidade de sua possível variação: o não-padrão. Para Cache, isto significa a possibilidade de praticar a filosofia por outros meios: através do software e da fabricação digital. Se bem é certo que Legendre compartilha muitos destes conceitos (sobretudo a importância do cálculo na modulação paramétrica do variável), seu argumento jamais elabora a «fabricação digital» de suas «superfícies imateriais». Por outro lado, prescindindo de Deleuze, articula um âmbito de referências distinto, elaborando um discurso disciplinar que tenta estabelecer as bases do que ele chama um «formalismo analítico». Apesar da coincidência em certos termos comuns, é possível observar em Balmond, Self, Legendre ou Cache, de maneiras muito distintas, a construção instrumental do discurso.
Esta nova categoria de objetos definidos não pelo que são, senão pela maneira em que mudam e pelas leis que descrevem suas variações contínuas 11, é sem dúvida central a argumentos propostos por outros autores como Greg Lynn e Manuel De Landa. No entanto, enquanto Lynn combina sua leitura de D’Arcy Thompson 12 com as categorias de folding e smoothness tomadas de Deleuze; De Landa propõe um algoritmo genético e especulações em evolução virtual onde a forma arquitetônica teria que ser necessariamente «criada» pelo desenhista (breeding design).
A combinação de conceitos filosóficos e biológicos proposta por Lynn permite a elaboração de outras estratégias: através da noção de deformação sugere uma alternativa à transformação morfológica convencional de topologias arquitetônicas estáticas. Sem dúvida, argumentos de caráter biológico não são exclusivos de Lynn e reaparecem também na arquitetura maquínica de Lars Spuybroek. Através de uma enorme aglomeração discursiva, uma vez mais, Deleuze e Thompson entram em diálogo, mas esta vez também com a autopoiesis de Varela e Maturana; com a fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty; com Henri Bergson e Frei Otto. O anterior, além disso, combinando categorias neurológicas, neurofilosóficas, de autogeração, topologia e teoria dos sistemas dinâmicos, entre outros. Em outros autores, como por exemplo nas Morpho-Ecologies de Michael Hensel e Achim Menges, conceitos de morphogenesis e biomimesis são propostos desde uma exploração que inclui teoria da evolução, os estudos botânicos de Goethe, a noção de sistemas materiais diferenciais e preformativos, bioquímica, biomecânica, homeostase, além de incluir Leibniz, Einstein e «The Architecture of the Well-Tempered Environment» de Reyner Banham, entre muitos outros 13. Não por casualidade o texto que introduz Morpho-Ecologies se titula «Por um discurso inclusivo de arquiteturas heterogêneas». Em todos estes casos é possível observar as diferenças que existem na maneira como distintos componentes e referentes são aglutinados ao redor das alternativas oferecidas por CAD. Desde um ponto de vista completamente distinto, William Mitchell, escrevendo em Me++: the cyborg self and the networked city, propõe que o desenho assistido por computador deveria operar de maneira análoga à Napsterização, na recombinação de música digital. O sampler, explica, «emprega tecnologia de edição digital para se apropriar de fragmentos de material musical desde fontes múltiplas, transformando-os e recombinando-os para produzir obra» 14. Segundo Mitchell, este mesmo processo poderia ser aplicado em arquitetura como a culminação de um longo processo de mobilização e recombinação de informação 15. Isto transformaria os processos de desenho na combinação de informação disponível em redes, fazendo uso de especificações digitais invisíveis e imateriais de partes e componentes já parametrizados: uma sorte de collage digital. Para Mitchell este processo seria profundamente Platônico, dado que «ideias» digitalmente codificadas no cyber-espaço se tornariam objetos físicos na «imperfeita realização material» dessas ideias.
Criar, calcular, colar, napsterizar, seriam algumas das alternativas ao desenho convencional que estes argumentos oferecem no contexto de uma discussão pós-digital. Todas elas exemplificam a multiplicidade do discurso. Desde Balmond a Mitchell é possível enumerar uma grande quantidade de elementos que tentam ser integrados num argumento coerente. Ante tal diversidade, no entanto, qualquer conceito do digital se faz incapaz de resumir semelhante acumulação discursiva, se tornando redundante.
Devido à brevidade deste ensaio, a descrição anterior de autores é necessariamente esquemática e não exaustiva; e me obriga a que outros textos ajudem a completar o espectro com paradigmas recentes (uma vez que a dobra, sabemos, já é mais bem história). Deixei fora um infinidade de argumentos (penso em Mark Burry, Karl Chu, Ali Rahim, Branco Kolarevic, e inclusive Gehry Technologies). Sua inclusão haveria permitido reafirmar a existência de uma variedade de referências intelectuais que em muitos casos surgem antes da introdução do computador em arquitetura (tal como as matemáticas e a genética pré-existem ao software, e o organicismo científico do século XIX antecede qualquer arquitetura generativa). Contradizendo a ideia de que a forma é a consequência lógica da técnica, dá a impressão que a técnica é continuamente modificada pelo discurso (o discurso arquitetônico como provocação do scripting, diria). Sabemos, no entanto, se trata mais bem de um processo de influência e determinação recíprocos que sempre escapa a qualquer determinismo tecnológico. Em qualquer caso, certos argumentos sólidos, permanentes, parecem ter sido potencializados pelas novas ferramentas digitais, demonstrando a autonomia do discurso com respeito à tecnologia, ao risco, como diria Agamben, de que na sociedade do espetáculo a linguagem se constitua a si mesma numa esfera autônoma ao ponto de perder sua capacidade para comunicar algo 16. O digital, em sua fragilidade conceitual, seria então um catalizador de noções que excedem o meramente técnico, onde a dispersão e descontinuidade destes discursos abriria a pergunta sobre o status da noção de verdade contida em cada um deles. No entanto, más que nos perguntar por uma categoria absoluta de argumentos essenciais, se trata mais bem de debater o problema de quem diz a verdade, com que autoridade, acerca de que, e com que consequências para a arquitetura 17.
Paradoxalmente, num momento em que muitas destas ideias propõem a revisão do status profissional do arquiteto e desafiam o autor individual através de uma revisão radical ao conceito de desenho; parece que a criação do discurso pós-digital oferece uma última fronteira onde a individualidade do arquiteto se mantem a salvo na produção de argumentos singulares. Ao fim e ao cabo, parafraseando a Sol Lewit, é claro que nenhuma sofisticação tecnológica conseguirá resgatar argumentos banais 18.
Texto original em espanhol: Pedro Alonso (MARQ 04: Fabricación y Tecnología Digital. 2008) / Tradução ao português: Igor Fracalossi
- Post-modern; post-historical; post-marxist; post-colonial; post-national; post-hegemonic, etc. ↩
- Buck-Morss, S. (2008) Theorizing Today: The Post-Soviet Condition. En Log 11. New York. Anycorp. ↩
- «A parte mais intrigante desses desenvolvimentos é que ninguém concorda com o que desenho paramétrico arquitetônico realmente é.» Liaropoulos, G. e Legendre, iJP. (2003) The Book of Surfaces. London. Architectural Association. Tradução livre do autor. ↩
- Balmond, C. (2003) Informal. London. Prestel. ↩
- Op. Cit. ↩
- Balmond, C. (2006) Deep Structure. A+U Architecture and Urbanism, October 2006 Special Issue. ↩
- Liaropoulos, G. e Legendre, IJP. (2003) The Book of Surfaces. London. Architectural Association. ↩
- Op. Cit. ↩
- Cache, B. (1999) Objectile: the pursuit of philosophy by other means? Architecural Design 1999 Sept.-Oct., v.69, n.9-10. ↩
- Ibid. ↩
- Carpo, M. (1993) Ten Years of Folding. AD Profile 102: Folding Architecture. London. Academy Editions. ↩
- Thompson, D. (1966) On Growth and Form. Cambridge University. Cambridge University Press. ↩
- Hensel, M. e Menges, A. (2006) Morpho-Ecologies: Towards an Inclusive Discourse on Heteregeneous Architectures. London. Architectural Association. ↩
- Mitchell, W. (2003) Footloose Fabrication. In: Me++: the cyborg self and the networked city. Cambrigde, Mass. The Mit Press. ↩
- Op. Cit. ↩
- Agamben, G. (2000) Means without end: Notes on politics. Minneapolis. University of Minnesota. ↩
- Foucault, M. (2001) Fear-less Speech. Los Angeles. Semiotext(e). ↩
- «Banal ideas cannot be rescued by beautiful execution». Lewit, S. (1969) Sentences on Conceptual Art, in: Art-Language: The Journal of Conceptual Art, Vol. 1, N° 1.. Tradução livre do autor. ↩