Sempre costumei dizer que a percepção da arquitetura deve ser sentida, palpável e observada calmamente a fim de abstrair cada momento da projetação do arquiteto e descobrir a cada instante um novo detalhe daquele objeto construído. É uma forma de se transportar até a “prancheta” do autor e desvendar as experiências e atitudes no qual o arquiteto se debruçou para chegar aquele resultado ali concluído.
Falar da obra de um arquiteto nunca é uma tarefa fácil, colocar sua opinião sobre o trabalho de um “mestre” reconhecido e respeitado mundialmente pesa ainda mais a responsabilidade de não ser injusto, incoerente e tão pouco incapaz em criticar uma produção tão longa e competente.
Sinceramente não conheço a produção de Ricardo Legorreta sobre este aspecto. Meu contato com o trabalho do arquiteto mexicano se deu através das publicações que chegam ao Brasil em forma de revistas, livros etc. Sem dúvida, em detrimento da tecnologia, estas informações chegam muito mais rápido que a 50 anos atrás, e em particular a internet, se tornou um veículo de comunicação e transmissão de informações muito ágil, no entanto, o contato com a obra propriamente dita é indispensável para uma melhor compreensão do trabalho do arquiteto.
O livro “Ricardo Legorreta: Sonhos Construídos”, da BEĨ Editora, lançado inicialmente em 2009 em duas versões, inglês e espanhol, e agora recentemente em português, apresenta uma metodologia de ler e compreender a obra do arquiteto de forma mais informal: “O que a coleção pretende, no fundo, é que, ao acompanhar a trajetória de mestres das diversas áreas, o leitor reúna um repertório amplo o suficiente para aprovar, rejeitar ou pôr em xeque os trabalhos com que se depare e, sobretudo, para descobrir o prazer que a arte pode lhe proporcionar.”
No fundo, o que a publicação coloca é a possibilidade de outro olhar sobre a obra, onde o próprio autor, neste caso Legorreta, o defende como “a educação do olhar”, apresentado através da obra, formação e as influências da sua obra: “Legorreta reconhece que se pode aprender a ver e a avaliar a arquitetura. Para isso, ele propõe três passos, que vão do treino da observação até a análise objetiva de construções – da intuição à racionalidade, sem perder de vista a busca da emoção e do prazer, que norteiam a obra do arquiteto.”
Neste sentido, tive a oportunidade de ter este contato direto com a obra de Legorreta em uma viagem de estudo à Bilbao em 2009, com o intuito de conhecer o Projeto Bilbao Ría 2000, onde um conjunto de planos e projetos tinha como intuito requalificar a área junto ao rio da cidade degradada devido à mudança econômica da cidade ao longo dos anos. Como estratégia do governo Vasco, foi convidado o arquiteto Frank Gehry para a concepção do Museu Guggenheim, no qual se tornaria a grande referência arquitetônica do projeto e colocaria Bilbao no mapa turístico europeu. Tal estratégia foi um sucesso e o número de turistas aumenta anualmente a procura de conhecer e visitar o museu.
No entanto, seria injusto apontar Gehry como o único colaborador desta mudança radical na vocação da cidade, outros como César Pelli, Zara Hadid, Norman Foster, Álvaro Siza e Ricardo Legorreta, entre outros reconstroem o tecido degradado de Bilbao com seus projetos, configurando neste trecho uma nova cidade no norte da Espanha.
A Legorreta lhe foi incumbido a proposta para o Sheraton Abandoibarra Hotel, junto ao Maria Victoria Boulevard, nas proximidades do museu e o parque no centro novo da cidade. O edifício organiza o final deste eixo e se assenta sobre o novo passeio pedonal que margeia o rio que corta a cidade desde o “casco antigo”, passando pelo “centro novo” até desaguar a oeste, no mar, mais longinquamente.
À primeira vista, a volumetria rígida e a cor vermelha escura impressionam; como uma escultura que se assenta junto ao parque linear próximo ao rio, o hotel redesenha a paisagem deste entorno e se impõem como um recepcionista a este trecho da cidade.
No entanto, num exercício minucioso sobre o resultado plástico, percebe-se que o desenho volumétrico resulta da soma e subtração de formas geométricas tridimensionais que organizam os espaços e conferem ao edifício um jogo de cheios e vazios, de luz e sobra muito interessante. As aberturas já não são mais meramente janelas relacionadas aos ambientes, mas cumprem a função de relacionar os ambientes internos e a paisagem externa, além de reforçar o caráter escultórico do edifício.
Num rápido giro pelo hotel, percebe-se que tal volume inicialmente puro como um cubo, é “retalhado” dando lugar a formas diversas e respondendo a necessidade de seu programa ou relação com a cidade, ora abrindo-se para o rio e a montanha, ora surgindo frestas e aberturas para o centro da cidade, como numa descoberta contínua da paisagem que pode se transformar a cada instante.
Neste sentido, a escala do edifício é tratado como um objeto escultórico que deve “compor a cidade” numa paisagem continua e, ao mesmo tempo, ser o interlocutor entre o centro existente e o novo projeto urbano Bilbao Ría 2000.
Ao se aproximar, as texturas vão se mostrando cada vez mais evidentes e declaram-se capaz de causar surpresa e emoção com a aplicação de acabamentos rústicos, que remetem a arquitetura vernacular da cultura mexicana e nobres como o hall de entrada do hotel.
Por outro lado, o “mistério” é explorado pelo arquiteto no interior do edifício. Com um vazio de 8 metros de altura, o átrio principal surpreende pelo jogo de volumes e luz causados pelas aberturas cuidadosamente pensadas por Legorreta, resultando em uma diversidade de intensidade de luz e sombra em vários horários do dia. Nisto, a “surpresa” é redirecionada pela dinâmica em que o espaço se transforma ao longo do dia e nas diversas estações do ano, além da “performance” com que os usuários provocam ao transitarem por este espaço e as galerias de acesso.
Por fim, a cor, marca registrada de Ricardo Legorreta, confere ao edifício não somente a identidade do autor em pensar sua arquitetura, nem tão pouco na busca de sobressair sobre os edifícios do entorno, visto que a escala proposta para o hotel se integra com os demais de forma continua e “respeitosa”. A cor neste edifício penso eu, teve papel fundamental em marcar como referência urbana a congruência entre diversos eixos que se encontram neste edifício e que, de certa forma, cumpre papel fundamental nesta relação urbana.
É certo que não somente Legorreta, mas também Luis Barragán foram os principais protagonistas em difundir a “arquitetura mexicana” pelo mundo, mesmo que Barragán tenha permanecido com suas obras essencialmente em seu país de origem, mas que certamente influenciou gerações de arquitetos nas Américas e demais continentes. Já Legorreta, que ultrapassa os limites do México, num primeiro momento com trabalhos nos Estados Unidos e mais tarde nos demais países da América, Europa e Ásia, seu “dogma” é constante e perceptível em sua obra.
O caso do Sheraton Abandoibarra Hotel em Bilbao é a prova em que sua arquitetura esta ancorada nos elementos com que Legorreta vai trabalhando o projeto arquitetônico, tendo como premissa o que ele defende de que arquitetura deve causar “mistério e surpresa”, onde a vivacidade da cultura mexicana é interpretada através dos seis elementos trabalhados por Legorreta: parede, luz, escala, geometria, emoção, cor.
Acredito que o encontro com Barragán em 1964, durante a inauguração da Fábrica Chrysler construída por Legorreta, foi o ponto de rompimento e encontro de seus ideais sobre a arquitetura moderna. Primeiramente o rompimento do racionalismo ainda “enraizado” por Villagrán, que de certa forma ainda incomodava Legorreta em pensar uma arquitetura que não representava o estilo de vida mexicano. Por outro lado a convivência com Barragán possibilitou a transcender sua arquitetura para um “estilo próprio” que respondesse a seus anseios quanto a uma arquitetura que emociona, num equilíbrio e respeito entre o racionalismo herdado de Villagrán e o respeito à natureza de Barragán.
Por outro lado, sua arquitetura alcança um status internacional sem necessariamente fazer este “estilo”. A linguagem permanece integra e é respeitada por este “retorno” a certas tradições arquitetônicas do México, proclamados através de seus “dogmas” expressos numa linguagem abstrata. Tal afirmação deve ser levada em conta uma análise formal de sua linguagem arquitetônica e as relações entre os movimentos modernos e contemporâneos. No entanto, a experiência de “ver e sentir” a arquitetura de Legorreta afirma suas convicções e reafirma a sustentação de uma linguagem própria não decorrendo a uma “tendência arquitetônica” temporária.
Assim podemos afirmar que o caminho trilhado por Ricardo Legorreta lhe conferiu uma linguagem abstrata e única, com um rigor e um vocabulário arquitetônico altamente sintetizado, podendo neste sentido, caracterizá-lo como uma arquitetura minimalista, como tantos outros que tem como resultado uma exploração própria da redução e da síntese. Não me refiro neste caso nas obras de Tadao Ando – o minimalismo que se expressa nas qualidades materiais da massa; Eduardo Souto de Moura, na essencial expressão da materialidade; ou Paulo Mendes da Rocha onde a objeto é resultado de uma conseqüência da precisão técnica. No caso de Legorreta, podemos apontar que se trata de um “Minimalismo Pitoresco”, explorado a partir das formas vernacular das construções mexicanas; um rigor geométrico decompondo a forma pura num jogo de somatórias e subtrações, de cheios e vazios, de luz e sombra; numa composição de vãos aplicados através da colocação de uma série de janelas, portas e aberturas que resultam num vocabulário próprio; e por fim, a utilização da precisão técnica e materialidade (herança de Villagrán) através do caráter unitário e simples dos volumes que conformam suas construções.
Ricardo Legorreta também aplica outros recursos formais em sua arquitetura como a justaposição de volumes sólidos, o uso de grandes planos dando “valor e peso” às paredes, a disposição dos eixos simétricos como valorização aos elementos arquitetônicos em relação à paisagem, a exploração da luz natural como resultado plástico e surpresa, assim como a unificação mútua entre sua obra e a natureza (herança de Barragán).
Como conclusão, podemos afirmar que a obra de Legorreta maneja um duplo “código” em sua arquitetura, levado em consideração suas raízes e heranças do movimento moderno aplicado a um vocabulário próprio que remete as formas arquetípicas mexicanas do período colonial.