A representação da metrópole nos distintos meios tem encontrado desde sua origem um instrumento privilegiado: a fotografia. Nascida praticamente no momento da expansão das grandes cidades, as imagens de Paris, Berlim, Nova York, Tóquio, ou as dos contínuos habitados no primeiro, segundo e terceiro mundo, entram na nossa memória e na nossa imaginação através da fotografia. Fotografias paisagísticas, aéreas, dos edifícios, das pessoas que vivem nas grandes cidades, todas elas constituem um dos principais veículos através dos quais recebemos informações que procuram nos levar a conhecer esta realidade construída e humana que é a moderna metrópole.
Em seu desenvolvimento técnico e estético, a fotografia tem gerado distintas sensibilidades em relação à representação arquitetônica, até o ponto de que, nos últimos anos, tem sido possível estabelecer a relação inseparável entre nosso conhecimento da arquitetura moderna e a mediação que em dito conhecimento tem introduzido os fotógrafos. As manipulações dos objetos captados pela câmera fotográfica, seu enquadre, a composição e o detalhe, têm uma incidência decisiva na nossa percepção das obras de arquitetura. Não é possível fazer hoje uma história da arquitetura do século XX sem se referir aos nomes dos fotógrafos de arquitetura. Nem sequer na experiência direta dos objetos edificados escapamos da mediação da fotografia, de modo que carece de sentido a ideia maniqueísta segundo a qual haveria uma experiência direta, honesta e verdadeira dos edifícios e outra manipulada e perversa através das imagens fotográficas. Pelo contrário, a percepção que temos da arquitetura é uma percepção esteticamente reelaborada pelo olho e pela técnica fotográfica. A imagem da arquitetura é uma imagem mediatizada que, segundo os recursos da representação plana da fotografia, nos facilita o acesso e a compreensão do objeto.
Sucede o mesmo com a cidade. Não só a possibilidade de acumular experiências pessoais diretas é problemática nos lugares nos quais não temos vivido por um longo tempo. Também nossa mirada tem sido construída e nossa imaginação, prefigurada através da fotografia. Obviamente, existem a literatura, a pintura, o vídeo ou o filme. Mas a incidência do fotógrafo, essa arte menor, segundo a qualificava Pierre Bourdieu, segue sendo primordial em nossa experiência da grade cidade.
Como tem explicado Rosalind Krauss, a fotografia não atua semiologicamente como um ícone, mas como um índice. Isso quer dizer que aquilo que constitui seu referente não está imediatamente relacionado, como figura, com as formas que a fotografia desenvolve. Pelo contrário, não é uma analogia formal a que faz possível a transmissão da mensagem fotográfica, mas a contiguidade física entre o significado e seu significante fotográfico. Através das fotografias, não estamos vendo as cidades. Menos ainda através das fotomontagens. Só vemos as imagens, em sua estática e enquadrada impressão. Porém, através da imagem fotográfica somos capazes de receber indícios, impulsos físicos que dirigem numa determinada direção a construção de um imaginário que estabelecemos como o de um lugar o uma cidade determinada. Porque já vimos ou porque vamos ver alguns desses lugares, o mecanismo semiológico da comunicação através de indícios se dissipa, e a memória que acumulamos por experiência direta, por narrações ou por simples acumulação de novos indícios é a que, indefinidamente, produz nossa imaginação da cidade, de uma ou de muitas cidades.
Mais tarde, depois da Segunda Guerra Mundial, a fotografia desenvolveu um sistema de signos completamente distinto do da densidade cheia das fotomontagens. Era o da vivacidade humanística dos relatos urbanos construídos a partir de imagens de personagens anônimos, em passagens carentes de toda grandiloquência arquitetônica. The Family of Man, a exposição organizada por Edward Steichen no MoMA em 1955, se produzia depois da fundação da agência Magnum, com Henry Cartier-Bresson, Robert Capa e David Seymour em 1947, e iniciava a leitura existencialista da cidade e da paisagem, no desenvolvimento e no subdesenvolvimento, que alcançaria sua apoteose no livro The Americans de Robert Frank (1962). Mas o fenômeno que nos interessa é o que se produz com posterioridade, já nos anos setenta, inaugurando uma sensibilidade distinta que começava a desprender uma mirada diversa às grandes cidades.
Os espaços vazios, abandonados, nos que já sucederam uma série de acontecimentos parecem subjugar o olho dos fotógrafos urbanos.
São os lugares urbanos, que queremos denominar com a expressão francesa terrain vague, os que parecem se converter em fascinantes pontos de atenção, nos indícios mais solventes para poder se referir à cidade, para indicar com as imagens o que as cidades são, a experiência que temos dela. Como em todo produto estético, a fotografia comunica não só as percepções que desses espaços podemos acumular, mas também as afeições, ou seja, aquelas experiências que do físico passam ao psíquico convertendo o veículo das imagens fotográficas no meio através do qual estabelecemos com esses lugares, vistos ou imaginados, um juízo de valor.
Não e possível traduzir com uma só palavra inglesa a expressão francesa terrain vague. Em francês, o termino terrain tem um carácter mais urbano que o inglês land, de maneira que é preciso advertir que terrain é, em primeiro lugar, uma extensão de solo de limites precisos, edificável, na cidade. Se não me engano, ao contrário, a pervivência em inglês da mesma palavra terrain tem significados mais agrícolas ou geológicos. Mas a palavra terrain francesa se refere também a extensões maiores, talvez menos precisas; está ligada à ideia física de uma porção de terra em sua condição expectante, potencialmente aproveitável, mas já com algum tipo de definição em sua propriedade a qual somos alheios.
Em quanto à segunda palavra que forma a expressão francesa terrain vague, devemos atentar que o termo vague tem dupla origem latina, além de uma germânica. Esta última, da raiz vagr-wogue, se refere às ondas da agua e significa movimento, oscilação, instabilidade e flutuação. Wave, em inglês, é evidentemente a palavra da mesma raiz.
Mas nos interessa ainda mais as duas raízes latinas que confluem no termo francês vague. Em primeiro lugar, vague como derivado de vacuus, vacant, vacum em inglês, ou seja, empty, unoccupied; mas também free, available, unengaged. A relação entre a ausência de uso, de atividade e o sentido de liberdade, de expectativa, é fundamental para entender toda a potência evocativa que os terrain vague das cidades tem na percepção da mesma nos últimos anos. Vazio, portanto, como ausência, mas também como promessa, como encontro, como espaço do possível, expectativa.
Há um segundo significado que se superpõe ao de vague em francês como vacant. Esse é o termo vague procedente do latino vagus, vague também em inglês, no sentido de indeterminate, imprecise, blurred, uncertain. De novo, o paradoxo que se produz na mensagem que recebemos desses espaços indefinidos e incertos não é necessariamente uma mensagem negativa. Certamente, parece que os termos análogos que temos marcado estão precedidos de uma partícula negativa in-determinate, im-precise, un-certain, mas não é menos certo que essa ausência de limite, esse sentimento quase oceânico, para dizer com uma expressão de Sigmund Freud, é precisamente a mensagem que contém expectativas de mobilidade, vagabundagem, tempo livre, liberdade.
A tripla significação da palavra francesa vague como wave, vacant e vague está reunida numa multidão de imagens fotográficas através das quais a fotografia mais recente, de John Davies a David Plowden, de Thomas Struth a Jannes Linders, de Manolo Laguillo a Olivio Barbieri, tem captado a condição interna à cidade desses espaços, mas ao mesmo tempo externa à sua condição cotidiana. São lugares aparentemente esquecidos, onde parece predominar a memória do passado sobre o presente. São lugares obsoletos nos que somente certos valores residuais parecem se manter apesar de sua completa desafeição da atividade da cidade. São, em definitiva, lugares externos, estranhos, que ficam foram dos circuitos, das estruturas produtivas. Desde um ponto de vista econômico, áreas industriais, estações de trem, portos, áreas residenciais inseguras, lugares contaminados, tem se convertido em áreas das que se pode dizer que a cidade já não se encontra ali.
São suas bordas carentes de uma incorporação eficaz, são ilhas interiores esvaziadas de atividade, são olvidos e restos que permanecem fora da dinâmica urbana. Convertendo-se em áreas simplesmente des-habitadas, in-seguras, im-produtivas. Em definitiva, lugares estranhos ao sistema urbano, exteriores mentais no interior físico da cidade que aparecem como contraimagem da mesma, tanto no sentido de sua crítica como no sentido de sua possível alternativa.
A fotografia contemporânea quando mira esses terrain vague e os fixa nos filmes não atua inocentemente. Por que o urbano parece se visualizar de maneira primordial nesse tipo de paisagens? Por que já não cabe no olho do fotógrafo exigente a apoteose dos objetos nem a contundência formal dos volumes construídos, nem os traçados geométricos das grandes infraestruturas que constituem os tecidos da metrópole? Por que há uma sensibilidade paisagista, ilimitada, portanto, a essa natureza artificial povoada de surpresas, de limites imprecisos, carente de formas fortes que representem o poder?
A imaginação romântica que pervive em nossa sensibilidade contemporânea se nutre de lembranças e expectativas. Estrangeiros em nossa própria pátria, estranhos em nossa cidade, o habitante da metrópole sente os espaços não dominados pela arquitetura como reflexo da sua própria inseguridade, do seu vago deambular por espaços sem limites que, em sua posição externa ao sistema urbano, de poder, de atividade, constituem por sua vez uma expressão física do seu temor e inseguridade, mas também uma expectativa do outro, do alternativo, do utópico, do porvir.
Odo Marquand caracterizou a situação presente como “a época da estranheza ante o mundo”. O que caracterizaria o tardo-capitalismo, a sociedade do tempo livre, a época pós-europeia, a época pós-convencional, etc., seria a fugaz relação entre o sujeito e seu mundo, condicionada pela velocidade com a que a mudança se produz.
As mudanças na realidade, na ciência, nos costumes e na experiência produziriam inevitavelmente uma condição de estranheza. O desamparo do sujeito, a perda de consistência dos princípios tem uma correspondência ao mesmo tempo ética e estética. Seguindo os passos de Hans Blumberg, Odo Marquand reorienta sua análise em torno a um sujeito pós-histórico que é, fundamentalmente, o sujeito da grande cidade. Um sujeito que vive permanentemente no paradoxo de construir sua experiência desde a negatividade. A presença do poder convida a escapar de sua presença totalizadora; a seguridade chama por uma vida de risco; o conforto sedentário chama por nomadismo desprotegido; a ordem urbana chama pela indefinição do terrain vague. O característico do indivíduo de nosso tempo é a angústia ante aquilo que o salva da angústia, a necessidade de assimilar a negatividade cuja eliminação parece que socialmente constitui o objetivo da atividade política.
Ao se enfrentar ao mesmo tempo com a percepção das mensagens que nos chegam através de nossa abertura ao mundo e aos comportamentos nessa situação, o pensamento de Marquand, como em geral o da hermenêutica pós-heiddeggeriana mais radical, aponta à superação da divisão entre estética e ética, entre interpretação do mundo e ação sobre o mundo.
“A época da estranheza ante o mundo” retoma o tema freudiano do unheimlich, do sinistro, assimilado por aqueles que têm buscado encontrar na experiência individual da deslocação e do deslocamento o ponto de partida para a construção de uma política. Em Étrangers à nous-mêmes (Estrangeiros para nós mesmos), Julia Kristeva tentou reconstruir a problemática do estrangeirismo na vida pública das sociedades avançadas. O discurso para entender o problema da xenofobia que renasce perigosamente na Europa acaba se convertendo, por uma parte, num texto filosófico sobre o significado do outro, daquele que radicalmente me é estranho.
Mas Kristeva, por outra parte, em seu percurso pelos grandes marcos da cultura ocidental, de Sócrates a Santo Agostinho e de Denis Diderot a G. W. Friedrich Hegel, acaba se remetendo ao texto freudiano pelo qual a estranheza dos homens e mulheres contemporâneos é a estranheza ante eles mesmos, sua radical impossibilidade de se encontrar, de se localizar, de assumir sua interioridade como identidade.
O tema do estranhamento, desde a perspectiva política da multiculturação crescente na Europa, com o conflito dos nacionalismos, com o renascer de toda sorte de particularismos, acaba nos levando também do discurso político ao discurso urbano. Da polis à urbs, disse Françoise Choay, e da noção de posse sobre um grupo aos perigos dessa identificação com a raça, a cor, a geografia ou a cidadania. Estrangeiros para nós mesmos descobre o indivíduo como portador de um conflito em si mesmo, entre sua consciência e sua inconsciência, entre o desamparo e a inquietação. Dessa maneira, não é o indivíduo portador de direitos, liberdades ou princípios universais quem se constitui em sujeito histórico. Impossível pensar no indivíduo do Iluminismo e da Declaração dos Direitos Humanos. Pelo contrário, estamos falando de uma política para um indivíduo enfrentado com si mesmo, desolado pela celeridade com a que o mundo que o rodeia se transforma e, no entanto, necessitado de conviver com os outros, com o outro.
As imagens fotográficas do terrain vague se convertem, desse modo, em indícios territoriais da mesma estranheza, e os problemas estéticos e éticos que propõem envolvem a problemática da vida social contemporânea.
Que fazer ante esses enormes vazios, de limites imprecisos e de vaga definição? Igual que ante a natureza, de novo a presença do outro ante o cidadão urbano, a reação da arte é a de preservar esses espaços alternativos, estranhos, estrangeiros a eficácia produtiva da cidade. Se o ecologismo luta por preservar os espaços incontaminados de uma natureza mitificada como mãe inalcançável, também a arte contemporânea parece lutar pela preservação desses espaços outros no interior da cidade. Os realizadores cinematográficos, os fotógrafos, os escultores da performance instantânea buscam refúgio nas margens da cidade precisamente quando essa cidade lhes oferece uma identidade abusiva, uma homogeneidade esmagadora, uma liberdade sob controle. O entusiasmo por esses espaços vazios, expectantes, imprecisos, flutuantes é, em código urbano, a resposta a nossa estranheza ante o mundo, ante nossa cidade, ante nós mesmos.
Nessa situação, o papel da arquitetura se faz inevitavelmente problemático. Parece que todo o destino da arquitetura tem sido sempre o da colonização, o pôr limites, ordem, forma, introduzindo no espaço estranho os elementos de identidade necessários para fazê-lo reconhecível, idêntico, universal. Pertence à essência mesma da arquitetura sua condição de instrumento de organização, de racionalização, de eficácia produtiva capaz e de transformar o inculto em cultivado, o baldio em produtivo, o vazio em edificado.
Desse modo, a arquitetura e o desenho urbano quando projetam seu desejo ante um espaço vazio, um terrain vague, parecem que não podem fazer outra coisa mais que introduzir transformações radicais, modificando o estranhamento pela cidadania e pretendendo a todo custo desfazer a magia incontaminada do obsoleto no realismo da eficácia.
Utilizando uma terminologia usual na estética subjacente ao pensamento de Gilles Deleuze, a arquitetura estaria sempre do lado das formas, do distante, do óptico e do figurativo. Enquanto que, pelo contrário, o indivíduo, dissociado, da cidade contemporânea buscaria as forças em lugar das formas, o incorporado em lugar do distante, o áptico em lugar do óptico, o rizomático em lugar do figurativo.
A intervenção na cidade existente, nos espaços residuais, em seus interstícios enrugados já não pode ser confortável nem eficaz tal como postula o modelo eficiente da tradição iluminista do movimento moderno.
Da mesma maneira que Odo Marquand no texto citado anteriormente propõe, polemicamente, a noção de continuidade frente à claridade e distinção com a que o mundo estranho se apresenta a nós, também o tratamento da cidade residual deveria ser produzido desde a contraditória cumplicidade de não romper os elementos perceptivos que mantêm a continuidade no tempo e no espaço.
Como pode atuar a arquitetura no terrain vague para não se converter num agressivo instrumento dos poderes e das razões abstratas?
Sem dúvidas, através da atenção à continuidade. Mas não da continuidade da cidade planejada, eficaz e legitimada, mas, todo o contrário, através da escuta atenta dos fluxos, das energias, dos ritmos que o passar do tempo e a perda dos limites têm estabelecido.
Nossa cultura abomina o monumento quando este é a representação da memória pública, da presença do um e do mesmo.
Só uma arquitetura do dualismo, da diferença da descontinuidade, instalada na continuidade do tempo pode fazer frente à agressão angustiosa da razão tecnológica, do universalismo telemático, do totalitarismo cibernético do terror igualitário e homogeneizador.
Três imagens nos mostram três momentos de um mesmo lugar no centro de uma grande metrópole europeia: Alexanderplatz em Berlim. A primeira imagem, a última no tempo, é a construída nos anos do pós-stalinismo através do poder onímodo do Estado. O Grande Irmão realiza a utopia moderna. A forma do lugar não é mais que a repetição de um ordenamento universal, radicalmente genérico, pelo que a geometria dos edifícios, o pavimento do espaço público, a praça, se consolidam como um princípio construído. Aqui, teoricamente, os direitos do cidadão moderno, do trabalho infatigável, encontram o cenário de sua felicidade perdurável. Trata-se do espaço do terror, da primazia do político abstrato convertido em domínio absoluto.
A segunda imagem é a da Alexanderplatz em 1945, depois do bombardeio contínuo da aviação aliada. O urbano convertido em ruína, a cidade desfigurada, o espaço deslocado, o vazio, a imprecisão e a diferencia. Através da violência bélica, um espaço urbano se converte em terrain vague, a contradição da guerra faz aflorar à superfície o estranho, o inqualificável, o inabitável.
A terceira imagem, que é a primeira no tempo, mas a última nessa sequência deliberadamente estabelecida de forma anticronológica, é a do projeto de Mies van der Rohe para a Alexanderplatz no concurso de 1928.
Nenhuma intenção de exemplificar a nova cidade. Nenhuma hipótese que signifique a descontinuidade com a cidade existente. Ação; produção de um acontecimento num território estranho; casual irrupção de uma proposta particular que se superpõe ao já existente; repetido vazio sobre o vazio da cidade; silenciosa paisagem artificial tocando o tempo histórico da cidade, mas sem anulá-lo e tampouco sem imitá-lo. Fluxo, força, incorporação, independência das formas, expressão das linhas que a atravessam. Mais além da arte que desvela novas liberdades. Do nomadismo ao erotismo.
Texto original em espanhol: Ignasi de Solà-Morales (Territórios, Gustavo Gili, 2002) / Tradução ao português: Igor Fracalossi