Nossa presente condição tem sido descrita em termos de um “êxtase de comunicação”. Na atual sociedade midiática, os avanços tecnológicos das telecomunicações e os métodos de reprodução visual asseguram que estejamos constantemente sendo inundados com imagens. Televisões, faxes, fotocopiadoras e computadores tornaram-se as janelas virtuais da era da estrada da informação, canais de impulsos digitais que unem o individual com uma rede global de comunicações. A casa e o escritório modernos são inundados com reproduções de imagens e informação: noticias da hora, a cada hora, pré-estreias, estreias, lançamentos de filmes, clonados em vídeos, e a conta-gotas por TV a cabo. Esta é a cultura da cópia, uma sociedade da saturação, a segunda inundação. O mundo se tornou “xeroxzado” ao infinito.
Tem sido geralmente assumido que essa inundação de imagens guia a uma “sociedade da informação” que promove um alto nível de comunicação. Ainda de acordo com alguns comentadores, esse “êxtase da comunicação” tem precisamente o efeito oposto: “Vivemos num mundo”, como o teórico cultural francês Jean Baudrillard tem postulado, “onde há mais e mais informação, e menos e menos significado”. É precisamente nesse infinito de clonagem de imagens, nessa infinita proliferação de signos, que o próprio signo se torna invisível. O signo já não tem nenhum sentido. Isso o conduz a questionar o que motiva essa situação. É que a informação “produz” significado, mas o processo é “furado”, e assim o sistema afunda como um navio? De acordo com essa tese, “apesar dos esforços de reinjetar significado e conteúdo, o significado é perdido e devorado mais rapidamente do que ele pode ser rejeitado”. Ou é que a informação não tem nada a ver com a significação, onde a informação é um meio puramente técnico, à qual significado está então vinculada? Ou é que, finalmente, como sugere Baudrillard, há uma união negativa entre as duas, e que a informação destrói ou neutraliza o significado? Nesse caso, “a perda de significado está diretamente ligada à dissolução, ação dissuasiva de informação, à mídia, e à mídia massiva”.
Este é o modelo final que Baudrillard persegue, um que desafie a suposição comumente segura que a informação gera significado:
- Em todo lugar, a informação é pensada para produzir uma acelerada circulação de significado, um valor adicional de significado homólogo ao econômico que resulta do acelerado giro de capital. A informação é pensada para criar comunicação, e até se a perda é enorme, um consenso geral teria que contudo, como um todo, existe um excesso de significado.
Para Baudrillard, então, enquanto pensamos que a informação gera significado, de fato ocorre o contrário. É exatamente o excesso de informação que nega o significado: “A informação devora seu conteúdo. Devora a comunicação e o social”. Baudrillard atribui essa situação aparentemente paradoxal a dois fatores. Primeiro, a informação, mais que criar comunicação, “esgota-se no processo de comunicação”. Logo, significado também se esgota na organização do significado. Segundo, de acordo com Baudrillard, a pressão da informação “exerce uma desestruturação irresistível do social.” “Assim, a informação dissolve o significado e dissolve o social, numa espécie de estado nebuloso dedicado não a um excedente de inovação, mas, pelo contrário, à entropia total.” Baudrillard dá o exemplo de um relatório de doze volumes da Exxon Corporation, um relatório tão vasto que ninguém poderia absorver sua informação: “Exxon: o governo americano demanda um relatório completo sobre as atividades da multinacional por todo o mundo. O resultado de doze volumes de 1.000 páginas, cuja leitura individual, sem mencionar a análise, excederia alguns anos de trabalho. Onde está a informação?” Esta situação é exacerbada por nossa situação cultural, dominada como é, nos termos de Baudrillard, por simulação e hiper-realidade. A própria imagem se tornou a nova realidade ou a hiper-realidade – um mundo virtual flutuando sobre o mundo real em seu próprio envelope hermeticamente selado. É um mundo que perdeu seu contato com seus referentes no mundo real e onde, paradoxalmente, o termo “real” foi sequestrado por seus conglomerados multinacionais e transformado num slogan publicitário vazio, alegando sua autenticidade contra sua própria ausência de autenticidade, tanto que “autenticidade” se tornou um suspeito, uma deturpação de uma moeda no hipermercado da hiper-realidade. É a “coisa real,” um mundo da Coca-Cola de ingredientes “naturais” industrialmente manufaturados, um mundo dos sonhos de mercadorias aparentemente surgidas do nada e pagas com crédito computadorizados invisíveis.
Num mundo onde o imaginário se torna o “real,” não há mais um lugar para o real. No “crime perfeito” do século XX, a própria realidade foi roubada. Em nenhum lugar há o disfarce sendo mais óbvio do que na Disneylândia, o arquétipo do centro sonhado por esta cultura de consumo. No caso da Disneylândia, como Baudrillard observa, esta se apresenta como um mundo imaginário, um reino de faz-de-conta para se contrastar com o mundo real exterior. E seu grande sucesso é nos fazer dar conta que é de faz-de-conta. Assim, a Disneylândia confere autoridade para o mundo lá fora; é um mundo imaginário que se torna um “suporte” para o real, um reino de faz-de-conta que nos faz dar conta que o mundo lá fora é real. E é aqui em que o maior engano acontece. Ao mundo exterior não pertence mais o “real”, mas o hiper-real. E a Disneylândia, como Baudrillard observa, é precisamente parte deste mundo exterior hiper-real. É exatamente a reprodução dos valores da América; e se a população compra este mito do faz-de-conta é simplesmente porque ela quer compra-lo. A Disneyficação se tornou a nova religião do século XX, onde o sonho e a realidade se entrelaçam num mundo do nunca-nunca trazido a você pela Disney Products Plc, fornecedores de sonhos para o universo.
O corolário também é verdadeiro, em que o mundo lá fora é igualmente parte da Disney. A totalidad da cultura ocidental foi consumida por esta síndrome. Neste contexto, as objeções formuladas contra a presença de um “falso” castelo da Eurodisney na França, um país cujos legados arquitetônicos, que incluem o “autêntico” castelo de Loire, parecem algo vazios. Para esta questão, pouco importa se o castelo é “autêntico” ou não, mas sim se ainda podemos reivindicar a capacidade de manter sua autenticidade. Numa cultura onde o capitalismo absorve nosso patrimônio no âmbito de “experiências” turísticas mercantilizadas, a linha entre autenticidade e não autenticidade se torna algo borrado. Na era da hiper-realidade, a Torre Eiffel é apropriada como a “Experiência da Torre Eiffel” e a Notre-Dame como a “Experiência da Notre-Dame.” E quando o engajamento do autêntico com o inautêntico colapsa num engajamento do inautêntico com o autêntico, como podemos garantir que acessaremos a “realidade” histórica da França algum dia? É na figura da Eurodisney, da Torre Eiffel, da Notre-Dame, do castelo em Loire. Preparem-se, preparem-se para a excursão do ônibus hiper-real do universo.
A Estetização do Mundo
No declive escorregadio a uma cultura da simulação, a função das imagens muda de refletir a realidade para disfarçar e perverter a realidade. Uma vez que a própria realidade foi removida, tudo que nos resta é um mundo de imagens, de hiper-realidade, de puro simulacro. A desvinculação destas imagens de sua situação cultural complexa original as descontextualiza. Elas são fetichizadas e julgadas por sua aparência superficial à custa de qualquer leitura mais profunda. Esta cultura de reificação objetiva todo o ato de ver, tal que qualquer apreciação de profundidade, perspectiva ou alívio é reduzida, promovendo, ao invés disso, “um olhar que se derrama sobre os objetos sem que se veja nada além do que sua objetividade.” No processo de leitura de um objeto como uma mera imagem, aquele objeto é esvaziado de grande parte de seu significado original.
A imagem é tudo. Tudo é transportado para um reino estético e valorizado por sua aparência. O mundo se tornou estetizado. Tudo foi apropriado como arte. Como Baudrillard comenta, “A arte hoje penetrou totalmente a realidade… A estetização do mundo está completa.” Baudrillard situa este problema em meio a uma série de sintomas mais comuns, o transpolítico, o transexual e a condição trans-estética da cultura contemporânea. Esta é a condição do excesso quando tudo se torna político, sexual e estético e, consequentemente, qualquer especificidade em seu domínio está perdida. Pois assim como quando tudo toma um significado político, a própria política se torna invisível e quanto tudo toma um significado sexual, o próprio sexo se torna invisível, assim também acontece quando tudo se torna estético, a própria noção de arte desaparece. Como uma consequência disto, para Baudrillard, o mundo estético perde todo o significado: “Quando tudo se torna estético, nada mais é bonito ou feio, e a própria arte desaparece.”
Baudrillard descreve esta condição do excesso como uma de “obscenidade”, a qual ele caracteriza como “a proliferação desenfreada infinita do social, do político, da informação, do econômico, do estético, para não mencionar, claro, do sexual.” Associado a isto está a noção de “obesidade.” Em meio a “obscenidade” do presente, a saturação do estético levou a um estado de “obesidade”. E é esta absorção de tudo pelo domínio da arte, este inchaço e distensão da categoria, que garante que tudo que ela contém está efetivamente apagado.
Numa cultura de simulacro e simulação, uma cultura de hiper-realidade em que a imagem se tornou uma nova realidade, o domínio que governa a imagem – estética – passou a dominar outros domínios: “Tudo se estetiza: a política estetiza-se em espetáculo, o sexo, em propaganda e pornografia, e toda a gama de atividades no que é chamado de cultura, o que é algo totalmente diferente da arte; esta cultura é uma propaganda e um processo de mídia semiológico que invade tudo.” O modelo aqui é paradoxo. A liberação da noção de uma obra de arte levou ao abandono de qualquer regra fundamental para uma obra de arte. E se não há qualquer padrão para avaliação de uma obra de arte, da mesma forma não pode haver qualquer padrão para apreciá-la. Ao invés de um juízo estético, encontramos uma fascinação obscena em excesso. Há também um paradoxo em termos do mercado de arte. A intensificação na produção de obras de arte leva a uma paralisia dos princípios que os governam, a hiper-aceleração leva à desaceleração. A explosão leva à implosão. O frenesi leva à inércia. E assim o mercado da arte, para Baudrillard, atinge a saturação e sufoca-se: “há uma relação necessária entre a ruptura com toda a lógica de valor mercantil dentro do mercado da arte. A mesma corrida mecânica, a mesma loucura, o mesmo excesso de simulação caracterizam ambos.”
Esta “corrida”, esta aceleração por inércia, apenas conduz a seu oposto, uma fusão cultural, um estado de supersaturação onde mesmo os objetos anti-arte são apropriados pela arte; e nenhum domínio do mundo físico escapará deste processo: “Todo o maquinário industrial do mundo se encontra estetizado, toda a insignificância do mundo se encontra transfigurada pela estética… Tudo, até o mais insignificante, o mais marginal, o mais obsceno se encultura, se torna uma peça de museu, e se estetiza.” E esta catástrofe se rebate no próprio mundo da arte, que, para Baudrillard, é forçado a se desmaterializar através do minimalismo e, portanto, a se apagar: “Porque o mundo em sua totalidade é destinado ao jogo de estéticas operacionais, a arte não possui outro recurso senão desaparecer.”
Em suma, a profusão da imagem – o excesso de comunicação e informação – implica o oposto, uma redução da comunicação e da informação. Tudo isto é exacerbado sob a condição de hiper-realidade, em que o conteúdo é consumido e absorvido num processo geral de estetização. O mundo, portanto, ameaça a ser percebido cada vez mais em termos de uma proliferação de imagens estéticas vazias de conteúdo.
A Política da Estetização
A questão de como o processo de estetização rouba os objetos de conteúdo parece, à primeira vista, algo problemático: a suposição popular é que as obras de arte incorporam necessariamente o conteúdo, especialmente no caso da arte marxista em que, como Walter Benjamin observou, os artistas estão sempre buscando politizar seus trabalhos. Além disso, está a questão de como a arte incorpora aquele conteúdo tão direto que alguém não familiarizado com o significado pretendido de uma obra de arte reconheceria aquele significado, ainda que fosse arte abstrata? Para isso, excluímos slogans e cartazes que dependem fortemente de palavras e métodos visuais mais óbvios de comunicação a fim de comunicar mensagens específicas, o papel primordial da arte não é servir como uma forma literal de comunicação. Realmente, o simples fato é que normalmente pode não haver uma única forma de leitura de uma obra de arte. O significado, nesse sentido, muitas vezes se torna uma questão de significado simbólico. É limitado ao que pode ser transmitido a um indivíduo particular. E o significado simbólico, como Fredric Jameson observou, “é tão volátil quanto à arbitrariedade do signo.”
Pode ser útil aqui tomar a noção da alegoria de Jameson no contexto do conteúdo político. Ver a forma como algo inerentemente “politizado” é, para Jameson, um projeto equivocado: “Foi um dos sinais de erros do ativismo artístico dos anos 1960 supor que existiram, antes, formas que eram em e por si mesmas dotadas de um potencial político, e até, revolucionário, por virtude de suas propriedades intrínsecas.”(20) Para Jameson, o conteúdo político não reside na forma artística. É meramente projetado sobre ela num processo que é estritamente alegórico. Para perceber o significado político, é preciso entender o sistema alegórico no qual ele está codificado. Na imaginação coletiva, claro, este processo de projeção na parte do agente de interpretação é, de alguma forma, esquecido. O próprio “ventriloquismo” de atribuir um significado a uma obra de arte nunca é plenamente reconhecido, de modo que no momento hermenêutico que o significado parece ser uma propriedade da própria obra.
Jameson destaca a efemeridade dessa projeção do conteúdo político em sua forma: qualquer conteúdo político pode, consequentemente, ser apagado ou reescrito. O conteúdo político é uma questão de conteúdo alegórico que depende da retenção da memória de alguma narrativa explicativa do que um trabalho de arte quer dizer. Mas isso não afeta o fato de que num dado lugar, num dado período e para um dado grupo de pessoas, uma obra de arte será inevitavelmente vista como a encarnação concreta de certos valores políticos. Na verdade, enquanto para Jameson a própria forma é “inerte,” deve ser reconhecido que a obra de arte nunca é descontextualizada. A arte, portanto, possuirá sempre um “significado”, mas este é meramente projetado sobre ela e é determinado por fatores como contexto, uso e associações.
O que é crucial é o “campo social” de uma obra de arte. Quando retirada de sua situação contextual, a forma pura artística seria exposta pelo que é. A forma, como nota Jameson, “não teria toda a eficácia política e alegórica” uma vez retirada de seus movimentos social e cultural que lhe conferiam essa força. Isto não é negar que a arte pode ter de fato “eficácia política e alegórica”, mas sim reconhecer que serve meramente como um veículo para isso em meio a um “campo social” dado. Uma vez que uma obra se torna abstrata de seu contexto original, uma vez que é tratada de outra forma, se modifica seu significado. Para se descontextualizar, uma obra de arte deve perder seu significado almejado quando retirada de seu contexto, da mesma forma que um objeto também deve assumir um significado diferente quando começa a ser tratado como uma obra de arte.
A estetização, portanto, leva a uma forma de despolitização. Isto não nega a possibilidade da arte politizada, nem ignora o importante papel secundário da arte como mecanismo de conscientização. Pelo contrário, é reconhecer que o próprio princípio da estetização age como uma restrição constante ao processo de politização. Dessa forma, qualquer tentativa de politizar a arte deve ser, em essência, comprometida.
A Estetização da Arquitetura
Enquanto a estetização permanece como uma condição cultural de fundo que permeia – em menor ou maior grau – o todo da presente sociedade, seus efeitos serão todos mais marcados dentro de uma disciplina que opera através do meio da imagem. A arquitetura está totalmente enlaçada nesta condição. Para os arquitetos, se envolver num processo de estetização é uma consequência necessária de sua profissão. A convenção dita que os arquitetos devam ver o mundo em termos de representação visual – plantas, cortes, elevações, perspectivas e assim por diante. O mundo dos arquitetos é um mundo da imagem.
As consequências disso são profundas. Esse privilégio da imagem levou a uma compreensão empobrecida do ambiente construído, tornando o espaço social numa abstração fetichizada. O espaço de experiências reais foi reduzido a um sistema codificado de significação, e com a ênfase crescente na percepção visual houve uma redução correspondente das outras formas de percepção sensorial. “A imagem mata”, como Henri Lefebvre observa, e não pode explicar a riqueza de experiências vividas.
Esta condição é agravada por técnicas e sistemas de representação empregados nos escritórios dos arquitetos. Numa cultura profissional de movimentos paralelos, esquadros, papel vegetal e, ultimamente, computadores, uma cultura aprisionada dentro de restrições ideológicas e de hierarquias de capitalismo carregadas de valor, a separação entre práticas espaciais e representações do espaço se tornou completa. Os processos de representação arquitetônica, como Lefebvre observa, contribuíram para a estetização do próprio desenho, um processo que obscurece muitas das limitações básicas que governam a prática arquitetônica:
- Quanto ao olho do arquiteto, ele não é mais inocente do que o lote que lhe é dado para construir ou a folha em branco de papel em que ele faz seu primeiro esboço. Seu espaço “subjetivo” é carregado com significados todos muito objetivos. É um espaço visual, um espaço reduzido a cópias heliográficas, a meras imagens – áquele “mundo da imagem” o qual é o inimigo da imaginação.
Como uma consequência, então, de técnicas e práticas aplicadas nos escritórios, os arquitetos surgem, cada vez mais, de um mundo de experiências vividas. O fetichismo da imagem na cultura arquitetônica descontextualiza essa imagem e intercepta o discurso da arquitetura dentro da lógica da estetização, onde tudo é privado de seu conteúdo original. A cultura arquitetônica, portanto, encontra o mesmo desejo de despolitização que afeta todos os discursos que trabalham dentro do meio da estética.
É precisamente quando os arquitetos afirmam que seu trabalho é antiestético, quando declaram que seu projeto é guiado por preocupações utilitárias em que a “arte” não desempenha papel algum, que o risco de estetização é mais agudo. O discurso do funcionalismo proporciona um exemplo óbvio. Quando um elemento arquitetônico tão evidentemente antifuncional como uma laje plana pertence a um repertório de recursos que estão sob a definição de “funcionalismo”, a própria funcionalidade do funcionalismo deve ser tratada com alguma precaução. Em sua crítica incisiva aos escritos de Adolf Loos, o teórico estético alemão Theordor Adorno observou que o funcionalismo é um pouco mais que uma categoria estética, uma forma de estilo. Enquanto Loos apoiou a distinção kantiana entre o sem propósito e o proposital, argumentando para uma arquitetura proposital – ou “funcional” –, que resiste aos afagos vazios de uma ornamentação sem propósito, Adorno nota que os dois termos estão dialeticamente relacionados. Supostamente, a arte sem propósito muitas vezes possui uma função social, enquanto não pode haver propositalidade “quimicamente pura”. Mesmo elementos “funcionais” devem conter um elemento do decorativo, e não podem permanecer livres de estilo. “A partir disso nossa suspeita amarga é formulada”, ele conclui: “a absoluta rejeição de estilo se torna estilo.”
Além disso, a tendência de privilegiar a imagem serve potencialmente para distanciar os arquitetos dos usuários de seus edifícios, na medida em que os encoraja a adotar uma aparência fortemente estetizada, distante da preocupação dos usos. Isso, por si mesmo, pode começar a explicar a fracasso de tantos arquitetos modernos cujos projetos de “consciência social” nunca foram aceitos pelo público a quem se destinava. As visões arquitetônicas utópicas passaram a ser vistas como experimentos estéticos abstratos de uma elite arquitetônica sem contato não apenas com o gosto, mas ainda, mais importante que isso, com as necessidades práticas da população.
É, sobretudo, no discurso que envolve movimentos como o Brutalismo que o contraste entre as visões de uma profissão que está sempre olhando através de lentes estéticas e as visões do público se torna óbvio. Quando um movimento pode ser transformado numa paisagem estética pela preciosa linguagem de comentaristas arquitetônicos, a “realidade” do Brutalismo, sua rigidez e sua natureza inflexível são negligenciadas. O que aparece para o público como um ambiente de vida grosseiramente insensível pode ser re-presentado como uma peça de arquitetura altamente sensível.
É irônico que Alison e Peter Smithson, grandes críticos do Brutalismo que pretendiam celebrar uma arquitetura “sem retórica,” recorram a uma linguagem marcadamente retórica em seus adornos a fim de descrever seus projetos. Com isso, eles são pegos em sua própria percepção estética. É somente através da adoção de uma linguagem fortemente estética de comentário arquitetônico que eles podem ter sucesso em vestir sua arquitetura de outro modo incondicionalmente severa. E é isso que lhes permite fazer sua comparação extraordinária entre o Brutalismo de seu projeto para a Escola de Hunstanton e a simples sensibilidade da arquitetura vernacular camponesa:
- Para nós, a nossa Escola de Hunstanton – que provavelmente deve tanto a arquitetura japonesa quanto a Mies – foi a primeira realização de nosso Novo Brutalismo. Este tratamento especial dos materiais, não no sentido do ofício, mas na avaliação intelectual, tem estado cada vez mais presente no Movimento Moderno, como de fato seguidores dos primeiros arquitetos alemães sugeriram nos lembrar. O que é novo sobre o Novo Brutalismo em meio aos outros movimentos é que encontra suas afinidades mais próximas não apenas num estilo arquitetônico particular, mas nas formas das casas camponesas, que possuem estilo e são elegantes mesmo nunca tendo feito parte de um modismo; uma poesia sem retórica. Nós vemos a arquitetura como uma declaração direta de um modo de vida, e no passado, a vida ordinária prosaica foi mais sucinta, econômica e concisamente expressa nas fazendas camponesas e nas impedimenta da vida rural mediterrânea que Le Corbusier tornou respeitáveis.
O comentário no Brutalismo é, com certeza, repleto de tais comparações. Os Smithsons continuam comparando a repetição de seu duro projeto Robin Hood Garden em Londres com o Royal Crescent em Bath e a colunata de Bernini na Praça de São Pedro em Roma. Enquanto isso, Denys Lasdun fala de seu Teatro Nacional nos termos do antigo teatro em Epidaurus na Grécia. Estas comparações atravessam um profundo paradoxo. Como é possível que a insensibilidade do Brutalismo seja comparada a sensibilidade óbvia destes excelentes trabalhos do passado? Na verdade, o real paradoxo é que a aparente insensibilidade do Brutalismo é um resultado direto de uma sensibilidade excessiva de parte dos arquitetos. Os Smithsons, por exemplo, poderiam ser fortemente acusados de serem insensíveis aos materiais, mas é precisamente através do crescimento de sua consciência estética de materiais e materialidade que o problema surgiu. A receptividade elevada à aspereza dos materiais permite que esses materiais pareçam sensíveis, enquanto ao público geral eles parecem somente planos ásperos. A estetização pode, portanto, ser vista como uma forma de distorção da realidade, privilegiando sensibilidades estéticas sobre outras preocupações presentes. Isso pode, claro, revelar um mecanismo defensivo bem sucedido por promover um casulo estético contra os duros aspectos da realidade. Um objeto desagradável pode se tornar aceitável por adotar tal aparência, de modo que um matadouro abandonado pode facilmente ser percebido como uma potencial galeria de arte. Estetizar um objeto é anestesiá-lo e despi-lo de suas desagradáveis associações.
O corolário disto é talvez também verdade. Pode ser que a própria brutalidade do Brutalismo é o que encoraja uma resposta estética, assim como um matadouro abandonado pode ser realmente apresentado como um espaço para uma galeria ideal. Assim, podemos refletir sobre uma cultura artística na qual artistas como Damien Hirst expuseram tubarões e outros animais dissecados e preservados em formol. A força desses trabalhos não reside apenas em sua habilidade de chocar o observador, o qual já está predisposto pela natureza da situação em ler esses objetos como obras de arte. Consequentemente, longe de comprometer seu estado como uma arte séria, a asquerosidade dessas obras é precisamente o que encoraja o observador a trata-las como objetos dignos de contemplação estética.
Numa era de estetização, são estes aspectos da vida que são repulsivos que têm a capacidade de promover uma resposta tão aparentemente paradoxal, na medida em que tudo que não é originalmente atraente pode ser facilmente considerado esteticamente atraente. Numa era onde a industrialização se torna chique, quando antigas fábricas são convertidas em apartamentos e estações de energia em museus nacionais, e quando os calçados industriais e os macacões de trabalho são tratados como itens de moda, o que é repulsivo e duro parece prestar-se à estetização.
© Da Tradução: Igor Fracalossi
Referência: LEACH, Neil. Saturation of the image. Em seu: The anaesthetics of architecture. Cambridge, Mass: MIT Press, 1999.