1. Disjunção e Cultura
O paradigma do arquiteto transmitido a nós através do período moderno é aquele do inventor de formas, o criador de estruturas hierárquicas e simbólicas caracterizadas, por um lado, por sua unidade de partes e, por outro, pela transparência da forma ao significado. (O tema arquitetônico moderno, mais que o modernista, é referido aqui para indicar que essa perspectiva unificada excede e muito nosso passado recente.) Um número de correlatos bem conhecidos elabora esses termos: a fusão de forma e função, programa e contexto, estrutura e significado. Sob eles, está a crença no objeto unificado, centrado, e auto-generativo, cuja própria autonomia é refletida na autonomia formal da obra. Contudo, em certo ponto, essa prática corrente, que acentua a síntese, a harmonia, a composição de elementos e a aparente coincidência de partes potencialmente distintas, se torna alienada da sua cultura externa, das condições culturais contemporâneas.
2. Des-estruturando
Em suas interrupções e disjunções, suas características fragmentação e dissociação, as circunstâncias culturais atuais sugerem a necessidade de descartar categorias de significado e histórias contextuais estabelecidas. Poderia valer a pena, portanto, abandonar qualquer noção de uma arquitetura pós-modernista em favor de uma arquitetura “pós-humanista”, uma que tensionaria não só a dispersão do sujeito e a força de regulação social, mas também o efeito de tal descentramento em toda a noção de forma arquitetônica unificada e coerente. Também parece importante pensar, não em termos de princípios de composição formal, mas em questionar as estruturas –isto é, ordem, técnicas, e procedimentos que estão vinculados a qualquer obra de arquitetura.
Tal projeto está claramente removido do formalismo, no que tensiona a motivação histórica do signo, enfatizando sua contingência, sua fragilidade cultural, mais que uma essência a-histórica. É um projeto que, em tempos atuais, só pode confrontar a fenda radical entre significante e significado ou, em termos arquitetônicos, espaço e ação, forma e função. Que hoje nós estejamos testemunhando uma surpreendente deslocação desses termos chama atenção não só ao desaparecimento de teorias funcionalistas, mas talvez também à função normativa da própria arquitetura.
3. Ordem
Qualquer obra teórica, quando “disposta” na realidade construída, ainda retém seu papel dentro de um sistema geral ou sistema aberto de pensamento. Como no projeto teórico The Manhattan Transcripts (1981), e o construído Parc de la Villette, o que é questionado é a noção de unidade. Da maneira que são concebidas, ambas obras não apresentam nem começos nem fins. São operações compostas por repetições, distorções, superposições, e assim por diante. Apesar de ter sua própria lógica interna –elas não são desintencionalmente pluralistas–, suas operações não podem ser descritas puramente em termos de transformações internas ou sequenciais. A ideia de ordem é constantemente questionada, desafiada, levada ao limite.
4. Estratégias de Disjunção
Apesar de que a noção de disjunção não é para ser vista como um conceito arquitetônico, ela tem efeitos que são impressos sobre o sítio, edifício, e até o programa, de acordo com a lógica dissociativa que governa a obra. Se alguém tivesse que definir disjunção, indo além do seu significado no dicionário, insistiria na ideia de limite, de interrupção. Tanto Transcripts como La Villette empregam diferentes elementos de uma estratégia de disjunção. Essa estratégia toma a forma de uma exploração sistemática de um ou mais temas: por exemplo, quadros e sequências no caso de Transcripts, e superposição e repetição em La Villette. Tais explorações não podem jamais ser conduzidas no abstrato, ex nihilo: se trabalha dentro da disciplina da arquitetura –ainda que com um conhecimento de outros campos: literatura, filosofia, ou até teoria de filmes.
5. Limites
A noção do limite é evidente na prática de Joyce, e Bataille e Artaud, quem trabalharam no limite da filosofia e da não-filosofia, da literatura e da não-literatura. A atenção prestada hoje à aproximação desconstrutiva de Jacques Derrida também representa um interesse pelo trabalho no limite: a análise de conceitos da maneira mais rigorosa e internalizada, mas também suas análises desde fora, como para questionar o que esses conceitos e sua história escondem, como repressão ou dissimulação. Tais exemplos sugerem que existe uma necessidade de considerar a questão dos limites em arquitetura. Eles atuam como lembretes (para mim) de que meu próprio prazer nunca emergiu de olhar aos edifícios, às grandes obras da história ou da arquitetura atual, mas antes em desmantelá-los. Para parafrasear Orson Welles: “eu não gosto de arquitetura, eu gosto de fazer arquitetura.”
6. Notação
O trabalho em notação empreendido em The Manhattam Transcripts foi uma tentativa de desconstruir os componentes da arquitetura. Os diferentes modos de notação empregados foram concentrados em ambiciosos domínios, ainda que normalmente excluídos de grande parte da teoria arquitetônica, indispensáveis ao trabalho nas margens, ou limites, da arquitetura. Apesar de que nenhum modo de notação, quer matemática quer lógica, possa transcrever a grande complexidade do fenômeno arquitetônico, o progresso da notação arquitetônica é vinculado à renovação tanto da arquitetura quanto dos seus conceitos de cultura associados. Uma vez que os componentes tradicionais tenham sido desmantelados, reassemblar é um processo estendido; sobretudo, o que é ultimamente uma transgressão dos cânones clássicos e modernos não deveria ser permitido para regressar ao empirismo formal. Por isso a estratégia disjuntiva utilizada tanto em Transcripts como em La Villette, na qual os fatos nunca são completamente conectados, e as relações de conflito são cuidadosamente mantidas, rejeitando a síntese e a totalidade. O projeto nunca é alcançado, nem as bordas são sempre definitivas.
7. Disjunção e a Vanguarda
Como Derrida destaca, conceitos arquitetônicos e filosóficos não desaparecem durante a noite. Apesar da antiga moda da “quebra epistemológica”, rupturas sempre ocorrem em um tecido antigo que é constantemente desmantelado e deslocado de tal maneira que sua ruptura leva a novos conceitos ou estruturas. Em arquitetura, tal disjunção implica que a qualquer momento qualquer parte pode se tornar uma síntese ou totalidade auto-suficiente, cada parte leva à outra, e toda construção é desequilibrada, constituída pelos traços de outra construção. Poderia ser também constituída pelos traços de um evento, de um programa. Isso pode levar a novos conceitos, como o que se pretende aqui, entender um novo conceito de cidade, de arquitetura.
Se nós tivéssemos que qualificar uma arquitetura ou um método arquitetônico como “disjuntivo”, seus denominadores seriam os seguintes:
- Rejeição da noção de “síntese” em favor da ideia de dissociação, de análise disjuntiva
- Rejeição da oposição tradicional entre uso e forma arquitetônica em favor de uma superposição ou justaposição dos dois termos que podem ser independentemente ou similarmente submetidos a métodos idênticos de análise arquitetônica
- Ênfase posta, como um método, na dissociação, superposição, e combinação, os quais provocam forças dinâmicas que se expandem por todo o sistema arquitetônico, explodindo seus limites enquanto sugerem uma nova definição
O conceito de disjunção é incompatível com uma visão estática, autônoma e estrutural da arquitetura.
Mas não é anti-autonomia ou anti-estrutura; simplesmente implica operações constantes e mecânicas que sistematicamente produzem dissociação no espaço e tempo, onde um elemento arquitetônico só funciona por colisão com um elemento programático, com os movimentos do corpo, ou o que seja. Dessa maneira, a disjunção se torna uma ferramenta sistemática e teórica de fazer arquitetura.
© Da tradução: Igor Fracalossi
Referência: TSCHUMI, Bernard. “Disjunctions”, em seu: Architecture and disjunction. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1994, pp. 206-213.