Para ir ao assunto. Neste escrito trato de opor e preferir a arquitetura da imaginação à arquitetura da ilusão ou da fantasia. Mas em geral: trato de opor a imaginação à ilusão. Creio que este poderia ser um reativo que permitisse distinguir entre si obras em aparência vinculadas ou próximas. Desde esta posição, creio que se compreenderá facilmente que, por exemplo, a arquitetura de Albert Viaplana não é senão arquitetura da ilusão, enquanto que a de Enric Miralles é arquitetura da imaginação. Escrevo agora acerca disto, para que ao leitor dê vontade de se colocar a imaginar por sua conta, sem se fazer ilusões.
1. O mundo visto por um pedreiro visto por Adolf Loos.
2. Diferença entre as fantasias cubistas de um Juan Gris e a imaginação cubista de Pablo Ruiz Picasso.
3. A arquitetura de Albert Viaplana é uma arquitetura que encena ocorrências, que se comemora a si mesma. É como Richard Wagner e Dalí.
4. A arquitetura de Enric Miralles não se inicia nem transcorre por ilustrações; não pode ser descrita nem desenhada senão depois de ter ocorrido, e ainda então só aproximadamente. A tarefa da arquitetura de Enric Miralles é, como a das paisagens, emocionar com educação. É como Cézanne e Satie.
5. Imagem primeira de Alison Smithson e frase última do escrito.
1. Quem está num oficio não tem fantasia. Loos refere à anedota daquele mestre talabarteiro, envergonhado de não ter tanta capacidade inventiva como os arquitetos, artistas e professores da Sezession. Quando estes, para lhe ajudar paternalmente, lhe proporcionaram numa só tarde dúzias de projetos bem desenhados de cadeiras de montar modernas, ao mestre se clareou a vista, respirou tranquilo e entendeu tudo: se ele soubesse tão pouco de couro, cavalos e montaria como eles, ele também teria fantasia, ora que se teria.
A imagem aparece repetida muitas vezes ao longo dos escritos de Loos. Uma das que mais gosto é a que corresponde ao mestre pedreiro, num artigo da série de 1898, Der Möbel aus dem Jabre 1898. Por ela, Loos se adianta em duas décadas à formulação radical de Victor Sklovskij, ali onde o teórico de literatura soviético defende a não tradutibilidade dos gêneros artísticos entre si, a especificidade de cada arte, em função dos materiais, os procedimentos de disposição e montagem do material e a sensorialidade perceptiva próprios de cada gênero artístico –e defende, portanto, a independência da obra de arte respeito a qualquer conteúdo prévio e alheio ao próprio material da obra.
O mestre pedreiro está petrificado –disse Loos–, vê e sente o mundo através de uns olhos e uns sentidos filtrados desde a pedra, é incapaz de fantasiar a margem do que na pedra há e do que a pedra pode dar de si. Tanto, que o mestre pintor pode zombar dele, por ser incapaz de reproduzir as figuras de animais e plantas tal como são –ou seja tal como o pintor as vê–. O pedreiro, vendo-as desde a pedra, as formata até ali aonde a pedra pode. As pernas de uma gazela são grossas –em pedra: claro, se não, se romperiam.
- “Pense. O homem trabalhou desde os quatorzes anos, doze horas diárias, no grêmio. Não é maravilha que veja o mundo diferente ao pintor. Quando toda uma parte de sua vida se passa trabalhando somente na pedra, se começa a pensar petreamente. O homem tem um olho pétreo, que converte as coisas em pedra. Ao homem se tornou uma mão de pedra. Sob sua vista, sob sua mão, a folha de acanto e a de parreira têm outra aparência que sob a visão e a mão do ourives. Pois este vê tudo em metal.”
A pergunta agora é: e como o vê o arquiteto?
Quero dizer: se não é difícil ter exemplos de até quanto o pintar ou o esculpir têm colocada em seu interior a imaginação do produtor –pois não há imaginação que seja contemplativa, toda imaginação é produtiva ou não é imaginação, a imaginação não é senão o delírio de uma técnica, escrevi em outra ocasião–, qual é o imaginário do qual procede a atividade do arquiteto?
Eu afirmo o seguinte: a obra de Enric Miralles é imaginário arquitetônico sem filtrações, em estado puro, é produção e condução direta do arquiteturar. Por isso seus desenhos, plantas, seções e escritos sempre vêm despois da imaginação, depois da arquitetura, e podem ser somente aproximações que não precedem, mas que seguem o arquiteturar, sem poder coincidir exatamente com ele. A sua arquitetura lhe é própria uma exatidão que não é a da medida. Uma imaginação de arquitetura pode passar a construir-se de vários modos, com uma certa folga de diversidades. Eu afirmo o seguinte: há que chamar arquitetura, não a uns objetos construídos de acordo com umas certas técnicas e materiais, mas sim a um modo de imaginar –como o que mana, por exemplo, de Enric Miralles–. Conheço poucos outros casos de gente cuja imaginação não necessite construir-se, mas que seja já, diretamente ela, arquitetura. Alison & Peter Smithson e Siza Vieira. Não mais. Se não estás de acordo, supõe que sei pouco ou que tenho má memoria, porém eu não vejo mais. Os outros necessitam converter em edifícios aquilo, mas o que lhes ocorre não é, desde o principio, arquitetura –ou bem necessitam partir de edifícios ou de modelos existentes, para que lhes deem pé para dialogar com eles–. Entenda-me: não trato de valorizar qualidades ou escalonar pessoas, mas sim, ao contrário, de distinguir e separar.
2. É muito fácil distinguir entre um quadro de Gris e um de Picasso. Procedem cada um de operações contrárias. Picasso estuda Cézanne, Gris estuda postais de Cézanne. Trata-se de uma oposição radical, porque quem há compreendido Cézanne deixa de poder resumir numa figura seu olhar sobre o mundo. Em Cézanne e Picasso o olho se enfrenta ao mundo, e é incapaz de recolhê-lo numa figura, lascando-se a retina pelo assalto de tantas coisas todas convexas, com fugas próprias cada uma, desbaratando-se, caindo-se, que tem em frente. O olho se torna concêntrico à força de olhar, disse Cézanne. O olhar natural de Cézanne e do cubista se produz já, diretamente, desde essa condição lascada da retina, e é por aí que chega inevitavelmente até a mão, o pincel e a pincelada, esfiapada, escamosa, falciforme –como a chamava Malévic–, com seu traço retorcido de vírgula, e à construção cubista. Construção cubista, não das coisas, mas do olhar e do sentimento. E, cézano-cubista, tenho um copo, uma maçã ou uma árvore em frente a meus olhos, e ouço em minha retina esse zumbido quebradiço das escamas de cor. Leia Cézanne se não acredita: o escreveu literalmente. Todo seu esforço está dirigido em aprender a olhar com exatidão. E, quando um vê assim, o que produz logo não pode não ser cubista.
Que acontece com Gris? Aí não há problema. Gris vê bem. Em frente de uma pintura ou de um desenho de Gris, sempre se tem a impressão de que algo ficou interposto entre o objeto representado e a vista do pintor, e é esse algo o responsável da deformação da figura. Algo: vidros quebrados ou gravados, fragmentos de lupa, fundos de garrafa, rajadas de fumaça nebulosa, alguma interferência que altera as propriedades formais da figura do que há em frente, e que a vista recolhe. Bastaria afastar o obstáculo para recuperar a figura natural dos objetos.
Para pintar um quadro, Gris poderia proceder assim: as coisas, primeiro, se desenham e se pintam como sempre, segundo um olhar compreensivo e abrangente; logo, essa figura assim obtida sobre o papel pode passar a ser desbaratada, esquartejada, dispersada –e o resultado será igual que um quadro cubista. Mas não será um quadro cubista. Por isso àqueles que gostamos de Cézanne e Picasso não gostamos de Juan Gris [E, pelo que contam, ao inverso: meu amigo Helio Piñón, que trabalha no escritório de Albert Viaplana, gosta de afirmar em aula que Le Corbusier resulta um pintor muito superior a Picasso].
3. Albert Viaplana é como Juan Gris. Sua origem é a arquitetura daqueles que formaram a tradicional Escola de Barcelona durante os tradicionais anos setenta, porém algo desbaratada, passada por filtros vários: os mesmos recuos, aplacados e jogos de massa, mas vistos agora desde os escritos de Louis Kahn, os desenhos de Le Corbusier e, ultimamente, as geometrias profundas que se divulgaram há mais de vinte anos.
Porém a comparação com Juan Gris é defeituosa. Só a utilizo para fazer ver a dissimilaridade do similar, para fazer ver que duas obras aparentemente muito próximas (Picasso-Gris ou Miralles-Viaplana) são diametralmente opostas. Ocorre o mesmo entre Coop Himmelblau e Gehry ou entre Koolhaas e Hadid.
Se se tratasse de emparelhar a arquitetura de Viaplana com alguma pintura de similar raiz, a eleição teria que ir a Salvador Dalí. Dalí não é um pintor –como Wagner, dizia Nietzsche, não é um músico1 –. Em Dalí, a pintura sempre é um a posteriori, é o documento que certifica que uma ocorrência brilhante teve lugar, antes, em outra parte –portanto, fora da pintura, prévia ao pintar–. O quadro aparece como veículo subsidiário da ocorrência. É um monumento comemorativo da fantasia que se teve. Igual com Viaplana. Fecho os olhos e vejo uma coluna altíssima que entra como um alfinete debaixo das capas de pele de um edifício– resposta: o hotel Hilton–, Fecho os olhos e vejo uma rampa que, como um campo magnético, atrai para si o desmonte do revestimento de uma parede de pedra –resposta: o centro de exposições de Santa Mônica–, Fecho os olhos e vejo um edifício arlequinado, com a corcunda cinza e o peito branco, com o braço esquerdo branco e o braço direito cinza –resposta: outra vez o hotel Hilton–… Isso pode escrever-se, pintar-se, filmar-se, inclusive pode desenhar-se sobre camisetas ou pode construir-se: sempre será uma ocorrência que depois –só depois– passou a edificar-se, a encenar-se.
Tal atitude não pode deixar de resultar chocante. Primeiro, porque custou muito poder chegar a desligar a arte dos servilismos utilitários do conteúdo, para agora voltar a supor que a arte é subsidiária de um conteúdo prévio e distinto a ele, neste caso a ocorrência magistral. Além disso, a pessoa moderna –para falar como Adolf Loos– não pode deixar de encontrar algo obsceno –ou seja, desnecessário– num comportamento assim. Não se vai por aí contando em público as impressões e ocorrências prévias, e menos ainda se trata de perpetuá-las em cenografias comemorativas.
É possível fazer outra comparação: Albert Viaplana é a Enric Miralles o que Mallet-Stevens é a Le Corbusier.
4. Por que não se pode descrever a arquitetura de Enric Miralles? Dito de outra forma, por que dá preguiça descrevê-la? Por que qualquer tentativa de desenhá-la com linhas ou com palavras carece de interesse? Precisamente porque é arquitetura. Os outros projetos, que podem ser representados em desenhos, fotos ou escritos, não estão constituídos por arquitetura. São elementos de arquitetura –portas, janelas, paredes, arcos, dintéis, colunas, pavimentos… – colocados juntos, são exercícios de composição. Mas na arquitetura de Miralles não se pode assinalar nenhum elemento: sua operação não procedeu combinando elementos predispostos. A arquitetura de Miralles aparece sem que exista ainda o vocabulário aplicável a cada uma de suas partes. Funda um modo de imaginar, do qual os arqueólogos do futuro se entreterão em averiguar suas leis. Mas a nós, agora, só pode apresentar-se como a forma natural por excelência de fazer arquitetura.
5. Fui a uma conferência de Alison Smithson, em meus últimos anos de estudante. Faz vinte. Então eu estava convencido de que:
- «Do mesmo modo que não pode existir uma Economia Política de classe, mas só uma crítica de classe à Economia Política, não pode fundar-se uma estética, uma arte, uma arquitetura de classe, mas só uma crítica de classe à estética, à arte, à arquitetura, à cidade2».
Nada da arquitetura que via ao meu redor –ou seja nas revistas– merecia mais interesse que o necessário para a crítica. Fui escutar a Alison Smithson sem saber com que ia encontrar-me. E vi pacotes de presente, pipas cabeceando, pirotecnias de papel de seda, fitas verdes e douradas, festas, aniversários, convites, pátios de jogo, bailes, bodas, recortes de papel como de canudinho, casinha de criança, campos identificados, alterados e carregados de sentido só pela tênue indicação de um gesto de papel, pelas pegadas de uns passos, pela geada. Nunca havia suposto que se podia fazer arquitetura como quem desenha com o dedo no vapor de um vidro.
Alison Smithson é o doutor Froebel de Enric Miralles.
© Da Tradução: Igor Fracalossi
Referência: QUETGLAS, Josep. “No te hagas ilusiones”. Em: revista El Croquis n. 49/50, Madrid, setembro 1991.
- «De fato, ao longo de toda sua vida (Wagner), repetiu uma frase: que sua música não significava só música! E sim mais! E sim infinitamente mais!… «Não “só” música –assim não fala um músico (…) Assim não pensa um músico–. Wagner necessitava literatura para persuadir a todo o mundo levar a sério sua música, de considerá-la profundamente, “porque significa infinitas coisas” (…). Foi Wagner em definitivo um músico? Em todo caso, foi algo mais: ou seja, um incomparável histrião, o maior mímico, o mais surpreendente gênio teatral que tiveram os alemães, nosso cenógrafo par excellence. Pertence a algo distinto que à história da música: não há que confundi-lo com seus grandes protagonistas. Wagner e Beethoven –isso é uma blasfêmia– e também um menosprezo para Wagner… Ele, como músico, também foi só o que efetivamente era: se tornou músico, se tornou poeta, como lhe obrigava o tirano dentro de si, seu gênio de ator. Não se compreenderá nada de Wagner até não ter compreendido seu instinto dominador. Wagner nunca foi músico de instinto». Friedrich Nietzsche, Richard Wagner in Bayreuth, Der Fall Wagner. Nietzsche contra Wagner, pp. 105-106. Sttutgart. 1986. ↩
- Não me dulcifiquei. Agora creio que é possível uma arte e uma arquitetura diretamente produzidas desde a afirmação de um novo sujeito histórico, todavia inominável, capaz, em seu ir-se constituindo, de subverter e arruinar tudo o que agora é. ↩