O mosaico cultural brasileiro é formado principalmente pelas populações brancas de origem européia, os indígenas ou habitantes primitivos da America, e a população negra que chegou ao continente através do fluxo escravagista na época da colonização.
O Brasil tem sua maior força cultural nesta combinação de culturas que impuseram sua influência em diversos manifestações civilizatórias como a língua, a culinária, a música, o vestuário, as festas e a arquitetura.
Arquitetura popular brasileira é um conceito ainda pouco difundido na dinâmica cultural do pais, no imaginário nacional e no universo acadêmico da profissão. Enquanto a musica popular brasileira, a MPB, tem um status garantido no acervo artístico nacional, a produção da arquitetura está na maioria das vezes associada à formação e evolução das elites econômicas e políticas.
Entende-se então por legítima arquitetura brasileira as manifestações eruditas da arquitetura colonial – ainda que tenham sido reinterpretadas por tecnologias e adaptações locais – e mais recentemente no século XX a arquitetura moderna que seguindo as tendências mundiais contribuiu com um legado próprio reconhecido mundialmente como a Arquitetura moderna brasileira.
Esta arquitetura passa a ser produzida a partir da obra de Gregory Warchavick no começo do século em São Paulo e após o emblemático Ministério da Educação e Saúde no Rio de Janeiro em 1937, onde uma equipe de arquitetos locais liderada por Lucio Costa e orientada por Le Corbusier projeta e constrói o edifício que foi o ponto de partida para a produção arquitetônica que resultou, entre outras obras, no conjunto da Pampulha em Belo Horizonte em 1942 e na construção da nova capital Brasília em 1960.
O arquiteto brasileiro que trouxe o estudo da Arquitetura popular brasileira de maneira sistemática ao campo do ensino e do entendimento da profissão foi Günter Weimer que através de diversas publicações, cursos e palestras tem dado notável contribuição ressaltando a importância destes conhecimentos em nossa formação cultural. Em seu livro da Arquitetura popular brasileira o autor destaca algumas características que podem definir a arquitetura construída espontaneamente pelo povo do Brasil:
Uma primeira característica desta arquitetura é a simplicidade por ser produzida com materiais tomados diretamente do meio ambiente, ainda que não seja uma mera criação da natureza.
A segunda característica é a adaptabilidade quando lições tomadas de culturas diversas podem ser reinterpretadas em locais distintos de sua origem sob novas condições climáticas e tecnológicas, é o caso das construções dos diversos grupos de imigrantes que compõem a população brasileira.
A criatividade é a terceira característica o que não vincula a arquitetura popular às ultimas conquistas e descobertas tecnológicas mas a uma imaginação formal e usos de matérias próprios.
A quarta característica se refere ao intencionalidade que contrapõe as arquiteturas populares – que têm seu resultado plástico comprometido com os materiais e técnicas disponíveis - às arquiteturas ditas eruditas onde a imagem formal está muitas vezes ditados por intenções formais pré estabelecidas.
Uma outra característica é reconhecida como a multisecularidade onde na maioria das vezes os resultados obtidos pela arquitetura popular vêm de uma reflexão e evolução técnica alinhada à historia de um determinado grupo social o que se opõe aos rompantes de criatividade instantânea muitas vezes ligados à arquitetura contemporânea. Esta característica da arquitetura popular coloca em questão dois atributos aparentemente opostos onde por um lado um caráter aparentemente tradicionalista e conservador contrasta com uma grande capacidade de transformação e adaptação.
Cabe aqui destacar que o alinhamento das arquiteturas populares com questões ligadas às tecnologias e materiais locais e às lições tomadas do meio natural circundante, é extremamente útil na busca de conceitos que definam uma construção ambientalmente sustentável, questão de suma importância neste inicio de século XXI quando se concluiu que a produção das edificações é responsável por mais da metade dos danos que causam as nocivas emissões de CO2 causando o aquecimento global e outros danos ao planeta.
MORADAS DO TEMPO
Günter Weimer em seu já citado livro faz uma detalhada listagem de exemplos, tipologias e técnicas construtivas que compõem um rico repertório das diversas manifestações que compõem o conjunto multifacetado do que poderia ser conhecido como uma arquitetura popular no Brasil. Vários dos casos por ele listados além de detalhada analise histórica e construtiva estão acompanhados de preciosos desenhos em bico de pena de autoria do próprio autor.
Faremos a seguir a seleção de alguns exemplos que nos parecem importantes para exemplificar alguns casos de construções populares brasileiras:
Capivaras na pedra
A pré história brasileira tem vários exemplos de ocupações em cavernas embora pesquisas arqueológicas demonstrem que o homem primitivo em diversas regiões do pais preferisse viver ao ar livre em lugares abrigados com ampla iluminação e ventilação controlada com alguns paraventos. Um dos conjuntos mais impressionantes deste tipo de ocupação está na Serra da Capivara no estado do Piauí onde se encontram pinturas rupestres de período que se estende desde o fim da última glaciação (15 000 a.p.) até mil anos antes da era cristã. A região atualmente é um parque nacional, e foi curioso notar que na época da implantação deste parque existiam moradores nestas cavernas (fig. 1) numa incrível conclusão que mesmo no século XXI ainda existem seres humanos que vivem como a 15000 anos atrás.
O edifício aldeia
Um interessante edifício que pode sintetizar a emblemática contribuição das populações indígenas para a arquitetura popular no Brasil é a casa-aldeia Ianomâmi, habitantes da fronteira do Brasil e a Venezuela, onde vivem até 50 pessoas, também denominada shabono (fig. 2). O edifício em forma de cone truncado tem aproximadamente 20 metros de diâmetro com pátio central com diâmetro de 5 metros, setor importante para a iluminação e saída de fumaça. A parte externa mais baixa tem aproximadamente 1,5 metros e a mais alta central 3,5 metros. A cobertura é feita em folhas vegetais e madeiras e tem duração curta de cerca de dois anos quando são queimadas e reedificadas.
Legados indígenas
As construções indígenas influenciaram varias ocupações principalmente na Amazônia como é o caso do taipiri (fig. 3), ou a casa dos seringueiros que são também construídas totalmente de material vegetal. As coberturas são de palha seca com 20 centímetros de espessura e boa inclinação para evitar que se encharquem com a presença das constantes chuvas. O piso em madeira é sempre elevado que, no caso das habitações junto aos rios afasta a área de convívio da umidade, e no caso das moradias dentro da floresta promove a ventilação e proteção contra os animais.
Áfricas americanas
As influências das culturas africanas para a arquitetura popular no Brasil foram muito diversificadas devido às diferentes origens dos grupos de escravos que chegaram ao país. Os grupos que apresentavam uma arquitetura mais complexa deixaram raízes mais profundas. As presenças arquitetônicas mais marcantes em função da quantidade de imigrantes são as dos quimbundos e da cultura eve proveniente Golfo da Guiné. Grande parte destas edificações (fig. 4) eram construídas em pau a pique e vedadas com taipa de sopapo com planta retangular e cobertura vegetal de duas águas.
Influências Luso-Germanicas
Os povos germânicos estiveram presentes na península ibérica do século V ao VIII e como grandes guerreiros eram também construtores de robustas fortificações. A contribuição destes povos para a arquitetura popular ibérica foi a introdução das estruturas em enxaimel onde as paredes são estruturadas em madeira como um plano inter-travado independente. Este termo está associado na maioria das vezes às construções ligadas à colonização germânica caracterizadas pelos elementos diagonais (fig. 5) mas também está presente em diversas construções com estruturas destacadas e independente presentes (fig. 6) na região entre os estados de Minas Gerais e da Bahia.
Contribuições Luso-berberes
As culturas berberes ou mouriscas estiveram na península Ibérica dos séculos VIII ao XV e deixaram em Portugal influências significativas. As casas berberes por causa do clima influenciado pelo Saara são construídas lado a lado formando filas não somente por questões de economia mas para proteger o espaço publico do vento quente e seco, estas casas se caracterizam pela economia de aberturas. Este modelo de urbanização e tipo de casa foi adaptado em Portugal com o nome de casa de pescadores e chegou ao Brasil através da colonização portuguesa como casas de porta e janela (fig. 7) onde podem ser encontradas de norte a sul do pais consistindo a forma mais importante de habitação no país até o fim do Império.
Arquiteturas populares e urbanas
Com início do ciclo do ouro no inicio do século XVIII no estado de Minas Gerais no interior do pais a elite colonizadora e os construtores portugueses, até então estabelecidos na costa atlântica brasileira, tiveram dificuldades em chegar às novas cidades que surgiam na região como Ouro Preto (fig. 8), Sabará e Mariana. Neste momento os colonizadores se viram forçados a convocar equipes nacionais para a tarefa. Vila Rica (o primeiro nome de Ouro Preto) surge como uma conurbação linear de assentamentos, a aldeia rua de caráter quase germânico mas também definida por construções seqüenciadas de imagem berberes-lusitanas.
Esta pode ser considerada talvez a primeira e mais importante operação brasileira de arquitetura e urbanismo. Embora a cidade se referencie principalmente por seus edifícios monumentais como as igrejas barrocas e outros prédios oficiais é a imagem dos casarios executado pelos construtores populares que define a estrutura urbana.
Esta participação dos construtores populares foi também decisiva nas outras cidades que surgem a seguir no estado e que se desenvolvem à margem da pressão dos colonizadores portugueses. Desta forma as vilas do Serro (fig. 9) e Diamantina, apresentam maior liberdade na composição dos espaços através de disposição menos regular dos edifícios entremeados por vegetação formando um ambiente urbano mais adequado aos trópicos sul americanos.
Fluxos e Imigrações
A identidade cultural brasileira não existiria sem a presença dos imigrantes europeus não ibéricos que nos séculos XIX e XX chegaram ao país.
A invasão holandesa em Recife nos meados do século XVII trouxe uma nova mescla ao panorama de uma cidade brasileira. Uma mistura de influências culturais e construtivas luso-batavas passa a ser vista como na imagem que mostra edifícios alinhados lado a lado (fig. 10) seguindo a tradição e proporção lusitana mas com o frontão escalonado holandês.
Outras nacionalidades deixaram e continuam deixando marcas na tradição construtiva popular brasileira como a imigração alemã no sul do pais (fig. 5) que até os anos 1940 gozava de certa autonomia social dissipada após o término da segunda guerra mundial mas presente até os dias de hoje na cultura e construções sulistas.
Os italianos também chegaram ao sul do pais introduzindo construções em cantaria (fig. 11) e posteriormente em madeira (fig. 12) às vezes com exagerado dimensionamento de peças estruturais e cobertura de telhas de madeira fendida.
Os imigrantes japoneses começaram a chegar no Brasil em 1908 e se dedicaram inicialmente à pratica da agricultura no estado de São Paulo. Do ponto de vista construtivo o desafio foi adaptar as técnicas tradicionais às condições climáticas brasileiras. Aos poucos os artesãos aprenderam a utilizar as madeiras locais e relacionar algumas de suas técnicas a outras já presentes no pais como a do enxaimel, mas sempre que possível considerando a técnica das ensamblages construtivas e a possibilidade de desmontagem das construções. Um bom exemplo da arquitetura popular de origem nipônica no Brasil é o Casarão do Chá (fig. 13) em Mogi da Cruzes no estado de São Paulo onde a madeira de eucalipto foi aproveitada de maneira naturalística com troncos e galhos secundários funcionando como parte da estrutura.
Resistência e vida
Certamente no panorama da construção popular no Brasil as favelas, ou bairros informais espontâneos, presentes na maioria das grandes cidades representa o maior espelho dos bolsões de miséria nacionais onde as populações pobres disseminadas pelo país buscam nas metrópoles uma melhoria de vida através do trabalho. A palavra favela designava anteriormente um tipo de urtiga muito resistente e difícil de ser eliminada.
Posteriormente este tipo de assentamento passou a existir após a abolição da escravatura quando os novos cidadãos alforriados buscavam por meios próprios a maneira possível de construir suas habitações. É polemico afirmar que as favelas sejam um tipo de arquitetura popular pois representam a imagem da pobreza e do desequilíbrio social do país, mas não se pode negar que essa luta pela sobrevivência não deixa de apresentar soluções engenhosas (fig. 14) de força e criatividade a partir de recursos muito esparsos.
Modernidade Popular
O advento da chegada da arquitetura moderna ao Brasil a partir do final dos anos 1930 representou um fenômeno cultural absorvido por todas as camadas da população. Mesmo as faixas sociais menos favorecidas que talvez trabalhassem nas construções mas que não vivenciavam aqueles novos edifícios e espaços percebiam que uma nova estética e tecnologia construtiva estava nascendo e que aquela imagem era o símbolo da modernização do pais e de sua sociedade.
No ímpeto de participar a qualquer custo daquelas transformações começaram a surgir a partir dos anos 1960 construções populares que faziam referência de forma muito ingênua aos ícones modernistas brasileiros chegando mesmo a beirar o que se chama de kitch. Assim se vê por todo país, dentre outros exemplos, casas mínimas e pobres, ou um pequeno armazém, com um suporte composto em alvenaria que lembra as colunas do Palácio da Alvorada de Brasília, ou obras de igrejas simples nas periferias das cidades que busquem referências formais nas coberturas arqueadas e na torre invertida da igreja de São Francisco, construída no conjunto da Pampulha em Belo Horizonte.
Então pode-se avaliar se não seria absurdo afirmar que o principal mérito da arquitetura moderna nascida no século XX no Brasil – e em especial na obra de Oscar Niemeyer que inventa signos facilmente reconhecíveis por toda a população – seria a de representar algum modo de evolução social e de propor uma nova estética nacional passível de apropriações por diversas camadas da população.
Este seria um novo capitulo da saga modernista brasileira: o modernismo popular, que sem negar as conquistas das novas culturas e tecnologias e nem as sabedorias, tradições diversas e métodos construtivos tradicionais, propusesse um novo modelo arquitetônico nacional embebido ao mesmo tempo em utopia e pragmatismo.
(*) texto publicado em espanhol no livro ‘Arquitectura Popular Dominicana’ nas pg. 33 a 40, livro organizado por Víctor Durán Núñez e Emilio José Brea García. Edição: Popular, Santo Domingo, 2009. Prêmio CICA, Comitê Internacional de Críticos de Arquitetura, 2011
Desenhos de Günter Weimer, presentes no livro Arquitetura popular brasileira, editora Livraria Martins Fontes, 2005.
Bibliografia:
WEIMER, Günter. Arquitetura popular brasileira. São Paulo, Livraria Martins Fontes Editora, 2005.