Rogelio Salmona, arquiteto latino-americano ou arquiteto na América Latina? / Germán Téllez

Rogelio Salmona é, em última instância, um arquiteto, a secas. É um acidente geográfico a localização de seu lugar natal, assim como o canto da América do Sul que, através de uma longa e complexa série de circunstancias externas a ele mesmo, lhe tocou por sorte como cenário de seu trabalho profissional. Salmona seria um destacado arquiteto em qualquer outra região do mundo, exceto aquelas nas quais, por antipatia anímica ou política não toleraria viver. Tudo isso é ainda mais certo, se o exercício profissional, como é o caso de Salmona, tem lugar num país “terceiro-mundista” ou (no eufemismo dos economistas) em “via de desenvolvimento”. Na Colômbia, onde a mão de obra para construir ainda tem custos acessíveis, e a clientela que pode pagar o luxo de um bom arquiteto ainda existe. Salmona tem um cenário apropriado a suas virtudes e limitações.

Por evidente que isso possa resultar, o que tem de latino-americano a obra de Salmona é justamente haver sido feita na América Latina, que é o mesmo que se pode dizer de toda a arquitetura deixada ao longo do continente pelo Império Espanhol durante o período colonial. Certas virtudes e deficiências arquitetônicas são universais, como é o talento artístico e a aptidão técnica. Se se descende das ideias gerais ao nível de conceitos de valor e interesse regional ou local, é óbvio que vão surgir rasgos que só são significantes paroquialmente, ou só têm sentido para um núcleo socialmente muito restrito. A claridade ou confusão ordenatória do espaço artificial requere categorias críticas para sua análise que podem surgir indiferentemente de profundas considerações metafísicas ou de prosaicas e superficiais tangências localistas. O regionalismo ou localismo ideológico latino-americanista é de recente data no campo da arquitetura. Começou, como era de esperar, por descender do universalismo conceitual predominante até há pouco, para indagar por uma suspeita e incerta “identidade” regional, fracionada por sua vez em sub-regionalismos que teoricamente se aproximam ainda mais a tal identificação de si mesmo. Prolongando este processo a suas últimas consequências, e abandonando ou negando pelo caminho tudo aquilo que, evidentemente, a arquitetura latino-americana não pode evitar ter em comum com a de outras regiões ou continentes do mundo, resta apenas a consideração final de que as formas construídas, que são do que se trata, ao final de contas, bem ou mal concebidas, qualquer que sejam as influências que pareçam incorporadas a elas, se acham implantadas (como a arquitetura colonial) em certos lugares do continente e não em outra parte. A noção de lugar geográfico passou assim, de simples característica física a categoria de valoração crítica. O circunstancial é agora virtude estética e mérito arquitetônico. O óbvio e lógico é agora estranho e esotérico.

Rogelio Salmona concebe e constrói muros de tijolo em Colômbia. Muros e tijolos são universais. Mas é também um muro de tijolo numa ladeira em Bogotá? Sim, num nível abstrato. Não, como fato físico ou concreto. Um lugar comum a nível universal pode ser também uma façanha curiosa a nível local. Salmona é um descendente de europeus, formado dentro de uma ilha cultural da Europa na América, ocupado em trasladar e adaptar antigas ideias construtivas para conformar espaços apropriados a uma realidade física latino-americana. Seu comportamento ante a formidável presença do espaço natural de sua pátria adotiva representa uma tomada de consciência emocional e espiritual que, por si mesma, pode ser qualificada como local, ou regional. Seu assombro ou aceitação ante a desmedida da geografia, da historia ou da presença humana na América Latina não são qualificáveis já como precedentes de um europeu, ou um nativo do continente, mas como o produto de uma sensibilidade pessoal única e irrepetível. Que isso tenha lugar na América Latina é coisa muito distinta e acessória à primeira. Dado que o último que vai acontecer alguma vez a Salmona é padecer alguma dessas “crises de identidade” que aparentemente, segundo mais de um crítico ou historiador regional, afetam permanentemente aos arquitetos do continente, se pode supor que seu trabalho profissional está mais influído pela preocupação de manter certo nível qualitativo em seus desenhos, que por ostentar um determinado “tom” regional. Salmona sabe muito bem quem é e por que. As vacilações e fraquezas que se infiltraram em suas obras aqui e ali contam certamente menos que a firmeza impositiva com a qual as dotou de rasgos sobressalientes e caráter intenso. Porém, para que chamar latino-americana a essa tarefa? Simplesmente para assinalar onde está tendo lugar? Então se poderia concluir que Salmona é um arquiteto que por algum azar do destino trabalha na América Latina, e não um arquiteto “latino-americano” de ofício.

Existe, realmente, uma “maneira latino-americana” de conceber arquitetura? Para Salmona, sim. É precisamente a que ele faz. Seu enfretamento com o mundo que o rodeia lhe serve para respaldar a tese de que o seu não é a eterna luta universal do homem com o anjo (e consigo mesmo), mas um modo vistoso e espetacular de ser latino-americano, de esfumar origens e referências europeias atrás do cenário formidável da América, de mesclar autenticidade com chauvinismo de modo destro e audaz, com o fim último de ocupar um lugar distintivo ante outros continentes e outras realidades. Em certo modo, se trata de uma revanche pessoal a longo prazo contra o eurocentrismo que, em efeito, conseguiu minimizar e excluir, durante muito tempo, do panorama mundial a América Latina.

É certo que somente na Colômbia lhe fosse possível produzir o conjunto de obras que hoje constituem o testemunho de arquiteto de Rogelio Salmona. As paisagens, a historia, as pessoas colombianas propiciaram então essa arquitetura sua e não outra, especificamente para eles e em base a eles mesmos. A extrema intensidade do mundo latino-americano foi motivo de nostalgia e saudosismo para Salmona em seus anos europeus. Porém, qual é essa América Latina sentida e evocada por Salmona em apoio de seu labor de arquiteto? Num colóquio no México, Salmona, não sem certa ingenuidade, disse: “Na América Latina pode acontecer qualquer coisa, desde um tiroteio numa Primeira Comunhão em diante…”. Quiçá esquecia intencionalmente que a mesma ideia de singularismo circunstancial poderia ser expressa, com algum outro símil conveniente, por um asiático, ou um africano, pois como provar a exclusividade latino-americana do insólito, do exótico ou do absurdo? Assim como a verdadeira importância, o essencial, da literatura de Gabriel García Márquez ou Alejo Carpentier está menos na exaltação do caráter particular de suas regiões de origem que na dimensão universal de suas palavras (que é o que lhes permitiu superar o simples costumismo e ter acesso eloquente a todos os seres humanos que os possam ler), a arquitetura de Salmona, como a de uns poucos colegas seus espalhados através da vasta geografia da América Central e do Sul, resulta mais vital, importante e valiosa pelo que possa ter de universal, por seu permanente e profundo apoio em noções que vem do passado e recobram graça e vitalidade em mãos de arquitetos de hoje, que por sua suspeita identidade regional.

A cabo de 33 anos de insistente labor de arquiteto, Salmona certamente pode reclamar para si a manutenção de uma ideologia e uma linha de conduta intelectual “continua e coerente”, com ele mesmo a qualifica, “sem saltar daqui para lá, de uma tendência a outra”. Muitas de suas atitudes maduraram, mas não mudaram estruturalmente. A obra resultante de tudo isso, como certamente deve ser, oferece notáveis desigualdades qualitativas. Estas, por outra parte, são altibaixos situados dentro dos limites de uma alta qualidade média, e resultam “normales” na produção de Salmona. Destacam, isso sim, que é outro mito profissional a total unidade coesiva de todos os desenhos.

Através da obra de Salmona, e à maneira de selo pessoal nela, os sucessivos interesses intelectuais (ou obsessões ideológicas do momento) dominaram toda outra consideração. Os temas mesmos dos projetos foram deslocados a um segundo plano conceitual pela insistência de Salmona em voltar, uma e outra vez sobre recursos compositivos que o fascinam. Posto que Salmona sabe que nem ele nem nenhum outro arquiteto colombiano será nunca inventor de nada, virou em cambio suas tarefas criadoras a conseguir uma maestria total sobre uma série de modos compositivos dados, levando-os de um a outro projeto até um ponto no qual já não é possível obter resultados mais satisfatórios. Salmona sabe bem até onde pode ir com a ação vital do desenhador sem ter que se deter a reformular novamente a teoria. Posto que Salmona reclama uma dimensão poética indispensável na arquitetura, o seu seria o labor de um poeta totalmente fascinado, não por uma métrica em particular, mas por uma determinada forma lírica, o soneto, a oda, por exemplo. Numas poucas ocasiões, seus sonetos arquitetônicos, aparte de serem formalmente quase perfeitos, têm ademais um profundo conteúdo lírico, e são, mediante a presença dessa última condição, grande e formosa arquitetura. Porém, quiçá fortuitamente, Salmona não é um produtor em série de obras mestras, mas tampouco de mediocridades. Carece (e não lhe interessa) de uma metodologia clara, precisa e constante de trabalho, não lhe preocupam os movimentos de vanguarda profissionais por eles mesmos, e os olha com saudável desconfiança ideológica. Sabe bem, para esta época de sua vida, que seu labor é simplesmente o de um arquiteto que ama, compreende e respeita profundamente as realidades do país que o abriga e lhe dá trabalho, e que são outros quem se ocupam de torná-lo célebre e discutido, e em tornar paradigmático o que para ele é simplesmente lógico e cotidiano.

Rogelio Salmona mesmo, e portanto, sua obra de arquiteto, são ricos em referências profundamente sentidas e estruturadas, e em expressividades multiplicadas para configurar determinados ambientes. A inserção das “Torres do Parque” na paisagem de Bogotá, a delicada armação de espaços abertos e fechados na Casa de Hóspedes de Cartagena assim o provam. Neles existe uma qualidade sensorial que os leva além da simples percepção visual da arquitetura. Esta última, segundo Salmona, é precisamente o que as torna “arquitetura do lugar”, ou seja, todo o contrário da arquitetura “internacional” contra a qual se centrou sua permanente polêmica intelectual. Em efeito, a uma vasta porcentagem de arquitetura colombiana das últimas décadas lhe falta em interesse sensorial integrado o que lhe sobra em atrativo visual. Um punhado de obras de Salmona, em cambio, exige para sua captação todos os sentidos, ademais de certa malicia ou astúcia para ler como entrelinhas, as intenções ocultas e os significados implícitos, uns dentro de outros, de sua peculiar chave poética. A troco dessa imperiosa exigência, sua arquitetura, ocasionalmente, outorgará ao espectador o prazer praticamente sensual que só outorga um domínio formidável das formas construídas.

 

© Da Tradução: Igor Fracalossi

Referência: TÉLLEZ, Germán. “Rogelio Salmona, arquitecto latinoamericano o arquitecto en latinoamérica?”, em: CARBONELL, Galaor. Rogelio Salmona arquitectura y poética del lugar. Escala, 1991, pp.338-339.

Sobre este autor
Cita: Igor Fracalossi. "Rogelio Salmona, arquiteto latino-americano ou arquiteto na América Latina? / Germán Téllez" 09 Ago 2012. ArchDaily Brasil. Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/01-64136/rogelio-salmona-arquiteto-latino-americano-ou-arquiteto-na-america-latina-german-tellez> ISSN 0719-8906

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