Quando fui convidado a participar nesse seminário com o tema «O mundo do croquis; Observação e croquis na UCV», me pareceu algo relativamente simples, já que nisso havia estado envolvido durante muitos anos através da docência no Atelier Arquitetônico, e de obras arquitetônicas particularmente na Cidade Aberta.
No entanto, na medida em que comecei a pensar que e como expor, reparei em que o assunto não era nada simples nem inocente. Se eu queria dizer algo relativamente verdadeiro e consistente, não podia eludir adentrar, ou ao menos roçar, o mundo criativo e artístico, com a complexidade que lhe é inerente.
Buscando que a exposição não se (me) tornasse excessivamente teórica e «acadêmica», e que ao final não calasse a verdade no essencial, optei finalmente por me firmar em algumas experiências e situações em que me tocou participar e fazer algumas reflexões em torno a elas.
Espero deste modo, poder iluminar em alguma medida o fundo do assunto, que é o que interessa, ainda que o conjunto não resulte talvez muito estruturado.
Queria destacar antes de tudo que os conceitos de «croquis» e «observação» não os vamos tomar como dois assuntos separados e de peso equivalente; senão que o Croquis o consideraremos contido na Observação, como uma parte dela.
Falaremos então, fundamentalmente, de Observação, e mais precisamente, de Observação Arquitetônica.
A primeira afirmação que queria fazer é que a Observação, tal como a entendemos aqui e em seu sentido mais radical, é possível porque «a condição humana é poética, e por ela o homem vive livremente na vigília de fazer um mundo»1.
O homem está irremediavelmente chamado e obrigado a fazer e refazer o mundo. Vale dizer a re-inventá-lo uma e outra vez (note-se que etimologicamente a palavra invento tem a ver com «ventura», e consequentemente com «aventura»).
E esta urgência e obrigação, pode cumpri-la porque tem a possibilidade de ver o mundo, seu mundo, sempre de novo, de vê-lo como por primeira vez («ver», está tomado em sentido amplo; talvez se poderia falar de «perceber»).
Temos então que este meio que nos envolve, e onde transcorre nossa vida, aparentemente tão concreto e objetivo, não é tal. Depende de nossa «mirada» e nosso «ponto de vista», para se mostrar e se revelar segundo rasgos e conotações profundamente diferentes.
«Observar», seria então essa atividade do espírito (e do corpo) que nos permite aceder, uma e outra vez, a uma nova, inédita, visão da realidade.
Observar, no sentido que o estamos considerando, se converte numa verdadeira abertura. Trata-se de algo profundamente artístico e portanto poético.
A propósito de «ver de novo», vou lhes contar o que ocorreu numa Phalène há muito tempo, na França, cujo relato conheci (eu não estava lá). A Phalène é uma sorte de Ato ou Jogo Poético, que se realiza entre vários, em algum lugar da cidade ou do campo. Podem participar nela a gente do lugar ou transeuntes. No grupo deve estar presente, isso sim, um poeta que em certe medida faz de cabeça. O resultado da Phalène é algum gênero de poema, ou um feito plástico.
Conto sucintamente a Phalène que lhes dizia:
Indo pelo campo francês, não longe de Paris, em dois carros, vai o grupo de umas 8 pessoas que haviam programado realizá-la.
Num dado momento, ante uma peculiar luminosidade que se produz numa colina, um dos participante pede para se deter (regra da Phalène), para realizar o ato poético. Descem dos carros e avançam pela colina; depois da vertente, em meio ao campo arado, aparece uma árvore solitária.
Vão a ele, e o rodeiam formando um círculo. Ali os poetas que participam recitam, de memoria, alguns poemas. Diz o relato que «elogiam» assim à árvore. Logo o Poeta que faz de cabeça, pede aos três artistas plásticos que participem, que façam eles também, desde seu ofício, algum signo (este será seu modo de Elogiar). Não tendo nenhum meio entre suas mãos, e na urgência do ato poético e em meio de seu silêncio, tomam uma pedra relativamente grande que está perto, a trasladam, a levantam e a colocam aprisionada entre os ganchos que se abrem do tronco.
Então, diz o relato, os que estavam aí ficaram perplexos, desconcertados, atônicos, porque «vimos a árvore como por primeira vez».
Bem, disso se trata a Observação: de «ver como por primeira vez».
Ainda que resulte aparentemente desproporcionado, quase escandaloso, através da Observação nós esperamos ter uma sorte de «vidência» (como diria Rimbaud) de algum ou alguns aspectos da realidade.
Se trata evidentemente de algo que não se pode garantir, de um presente ou dom; não é um procedimento, um método, que conduza necessariamente ao êxito.
Tentando avançar um pouco mais neste deixar aparecer que é a Observação, vejamos agora onde e como ela se localiza no processo criativo de uma obra de arquitetura. Para isso aproveitemos a experiência acumulada no desenvolvimento do Atelier Arquitetônico em que me tocou participar na Escola de Arquitetura e Desenho da PUCV.
Naturalmente o estudo num Atelier universitário, com a dose de pedagogia que necessariamente tem, não é igual a um projeto ou obra concretos realizados fora; no entanto temos nos esmerado ao longo dos anos para que o Atelier recolha da maneira mais clara e verdadeira o essencial do processo criativo. Neste entendido considero que é uma referência válida, ainda que talvez excessivamente depurada.
Vejamos então, grosso modo, esse desenvolvimento do Atelier:
Distinguimos nele, três passos ou momentos:
Antes de entrar no desenvolvimento mesmo da obra devemos destacar, isso sim, a formulação de um Encargo. Este se refere às necessidades e requerimentos que a proposição arquitetônica deverá acolher. O Encargo vem desde fora da arquitetura mesma e se expressa em termos conhecidos e convencionados. Pode provir do Rei Minos, do Príncipe renascentista ou do prefeito, de um particular, etc. O processo arquitetônico propriamente tal, tem lugar depois de recolhido o Encargo.
1. O tempo da Observação.
2. A dilucidação do Ato Arquitetônico a que a obra dará cabida.
3. A disputa da Forma (não as formas), que se decanta finalmente num ordenamento material concreto.
Se nos atemos aos momentos que esquematicamente acabamos de destacar, vemos que o momento da Observação está situado no início do processo. É portanto em certa medida seu fundamento e tudo o que segue vai se afirmar e depender em grande medida dele.
Dentro de nossa proposição isto nos parece algo congruente, lógico. Porque a Observação –já dissemos– é essa mirada penetrante que vai revelar a realidade em que se inserirá a obra e à que deverá acolher. Porém vejamos no caso do Atelier, dirigido a configurar um projeto de obra, que é o que observamos?
No fundamental, situações do habitar extenso que se vinculam de maneira direta ou indireta com as exigências destacadas grosseiramente no Encargo.
Por exemplo: Observamos o bairro –com sua vida e seu espaço… as ruas próximas… o sítio da obra… Assim mesmo, atividades e tarefas a que a obra deverá dar cabida…
Por exemplo, no último Atelier: Escola e Conservatório de Música.
Esta sorte de mirada penetrante e quase misteriosa que é a Observação, é a que nos permite aceder cada vez, em cada caso –já destacamos– a uma nova realidade.
Pela Observação, o aparentemente conhecido, o ordinário, o trivial, o cotidiano, sai do neutro e homogêneo e cobra sentido, vale dizer cobra um sentido. E comparece assim como algo novo, inédito, que nos surpreende.
Por exemplo: A observação nos entrega uma clave (ou chave) que nos permite aceder, poderíamos dizer, ao segredo íntimo desse lugar, desse corpo, desse acontecimento.
A Observação nos tem transportado a uma nova realidade.
Agora, é nesta nova realidade –já não mais neutra e sem sentido– onde a obra arquitetônica deve se inserir; e é a estas novas «exigências», surgidas desta inédita realidade, às que ela deve dar cabida. Estamos verdadeiramente em outro mundo!
Não se trata já só de governar e combinar com maior ou menor lógica e habilidade a disposição (colocação) de recintos, destacados grosseiramente pelo Encargo.
Trata-se agora de uma realidade complexa, incerta, instável, que se sai do já conhecido. Trata-se de uma realidade que nos transcende. Transcendente, algo que nos sobrepassa, que nos tira fora de si. A obra então, para se inserir nela, deverá também participar desta transcendência.
Estamos de cheio na arte!
Estamos no domínio da e-moção e da admiração!
Estamos no mundo da beleza!
Aqui topamos, aqui se acabam as «explicações»!
Agora, a Observação de que temos vindo falando, esse modo de ver e contemplar para «chegar a ver como por primeira vez», a levamos a cabo basicamente apoiados com o desenho (certo tipo de desenho que chamamos «croquis») e com a palavra.
O croquis não é mero procedimento, uma sorte de mecanismo automático, inequívoco, que se aplica a algo conhecido de antemão e que só exige dedicação e certa habilidade. Não, não é assim em absoluto.
A realização de um croquis obriga necessariamente a eleger cada vez, vale dizer Abstrair, dentre as infinitas conotações luminosas que temos diante só algumas, comparativamente pouquíssimas.
Eleger por onde começar a recolher, eleger um primeiro rasgo, e logo outro e outro.
Eleger o tipo de linha capaz de interpretar cada rasgo –sua espessura, sua intensidade, seu grau de continuidade… Eleger, eleger, eleger cada vez e centos de vezes. E decidir também onde e quando deter-se –como diria Picasso.
Porém, em função de que se elege y se abstrai?
É necessário haver descoberto uma certa Estrutura ordenadora nessa infinidade de conotações. Esta estrutura é algo que em alguma medida está aí, porém oculta; e eu devo descobri-la. Dito de outra maneira, eu imponho uma estrutura àquilo que estou vendo. Trata-se de um ato profundamente assertivo e poético. Trata-se de um fato construtivo e inédito.
A materialização de um croquis é um diálogo difícil entre a cabeça que elege e a mão que risca, ou melhor que rasga (rasgo), o branco aberto do papel. Ou, expressado com outras palavras, diálogo entre a mente que Abstrai (= elege, separa) e a mão que interpreta e executa.
Dissemos que na Observação estava também a palavra. Que tipo de palavra ou palavras?
Há desde logo uma palavra utilitária e descritiva, que pode complementar aspectos concretos que o croquis, por si mesmo, não pode representar; por exemplo, sons, temperatura, algo que acontece no lugar, algumas medidas, etc. Isto é necessário e está bem.
Mas há outra classe de palavra mais sutil, complexa e radical que acompanha o desenho e nasce simultaneamente com ele.
É a palavra que indaga acerca do que se está contemplando e desenhando, é uma palavra que nomina, que põe nomes.
Não se trata, naturalmente, de nomes descritivos ou funcionais.
Esta palavra tenta recolher o Sentido do que está em observação, e entregar sua chave. Por exemplo:
… Trata-se de uma «espessura luminosa»
«uma sorte de praça de duplo horizonte»
«uma greta que provoca vertigem, greta vertiginosa».
«uma encruzilhada da multiplicidade e do vazio…»
«uma borda que retém o movimento…»
«uma expansão dos corpos»
«a onda e a folha»2.
A aparição da palavra que nomina, faz que aquelas coisas e aspectos que o croquis vai recolhendo cobrem existência, e saiam do mundo homogêneo das possibilidades (o caos). A partir destes nomes, já se pode começar a pensar; essa sorte de jogo combinatório algébrico que se retroalimente e se multiplica.
É importante recalcar que este refletir se desencadeou a partir do croquis, o que garante um solo firme e original.
Para terminar, queria voltar ao processo criativo da obra de arquitetura que mencionamos antes. Aí destacamos um segundo momento que denominamos «a dilucidação do Ato Arquitetônico»; Ato ao qual a obra deverá dar cabida. A que chamamos Ato?
É claro que numa obra habitada (ou se habitando) tem lugar múltiplas e variadas ações, atividades, tarefas: caminhar, descansar, trabalhar nisto ou naquilo, conversar, comer, etc., e estas com todas suas variantes e matizes. São praticamente infinitas situações.
Agora, nós propomos que detrás de todas essas ações, ou por sobre todas elas, é possível, por meio da Observação (ou Elogio), vislumbrar uma sorte de Meta-atividade ou Meta-função, que em certa forma engloba todo este acontecer.
É a isto ao que denominamos o Ato da obra.
O Ato nomina genericamente um modo de ocupar a extensão, um modo de habitá-la. Podemos então dizer por exemplo: habitar no ritmo do ir e da retenção… habitar labiríntico numa luz difusa… habitar na vertigem de fugas e vertentes contrapostas… habitar a oquidão que se mostra a si mesma…
Evidentemente no processo criativo real estes nomes não são tão taxativos e certos. Eles surgem timidamente, numa sorte de disputa como nós mesmos, como interrogantes em busca de uma resposta. No entanto, pouco a pouco, se nos chegam luzes criativas, vão se decantando. Tudo isto num processo que poderíamos chamar dialético, em que o nome que tentamos pôr ilumina o que estamos tratando de ver, e isto a sua vez, nos mostra outros aspectos e volta à espera de um novo nome mais afinado.
Insisto, a Observação ou Elogio, nos abre a ver de novo, a ver aspectos inéditos, a ver e tomara nos adentrar, numa realidade desconhecida.
A obra em gestação, a busca e disputa da Forma, de Sua Forma, deve se ancorar e surgir desta realidade para poder dar cabida ao Ato. Como se desprende do que vimos expondo, a Observação –surgida do croquis e da palavra– tenta dar à obra um Fundamento Transcendente, arrancando «a disputa da Forma» do âmbito da mera combinatória funcional, apoiada num certo manejo plástico.
Quero destacar uma vez mais, ao concluir esta superficial e não muito ordenada exposição que o campo onde tem lugar a Observação e o Ato –como igualmente a imposição da Forma, da qual não falamos– é absolutamente artístico e portanto, lidando com o desconhecido.
Daí que, em estrito rigor, o que acontece em seu interior não se deixe definir e conceitualizar cabalmente.
© Da tradução: Igor Fracalossi
Referência: CRUZ PRIETO, Fabio. Sobre la Observación. Viña del Mar: Archivo Histórico José Vial Armstrong, Escuela de Arquitectura y Diseño, Pontificia Universidad Católica de Valparaíso, 1993. Biblioteca Con§tel, colección Oficio.