Voltada para desenvolvimento de projetos de arquitetura em favelas e periferias, a atuação do Coletivo LEVANTE tem demonstrado grande sensibilidade às características e particularidades desses contextos. Segundo o grupo, "o reconhecimento do que já existe e é atribuído de valores vividos e conquistados pelos moradores das favelas — paisagem, construções, identidades e relações" é o que buscam como matéria-prima dos projetos, uma abordagem que pode ser reconhecida em projetos como o Centro Cultural Lá da Favelinha e a Casa no Pomar do Cafezal, ganhadora do Prêmio Building of the Year 2023 do ArchDaily.
A equipe do Coletivo é formada atualmente por Alan Franca, Amanda Castilho, Anna Lobato, Fernando Maculan, Marcos Franchinni, Nattalia Bom Conselho, Giovanna Camisassa, Helder Machado, Kdu dos Anjos, Maria Soalheiro, Marina Vilela, Matheus Angel, Pedro Assis, Rafael Yanni e Ricardo Lobato. No entanto, como os trabalhos do LEVANTE têm demonstrado, a rede de profissionais, fornecedores, parceiros e colaboradores é extensa e se expande para além do coletivo em si, se revelando um valioso fator para a viabilização dos seus projetos.
Em entrevista para o ArchDaily, o Coletivo falou sobre os desafios, mas sobretudo sobre as oportunidades de trabalhar em contextos periféricos, além dos aprendizados e experiências que têm vivenciado ao longo dos seus seis anos de existência. Confira a entrevista, a seguir:
Susanna Moreira (ArchDaily): Como surgiu o Coletivo?
Coletivo Levante: A origem do Coletivo se dá na convergência de duas ações bastantes distintas. Em 2007, Fernando Maculan, Rafael Yanni e Mariza Machado Coelho iniciaram uma série de projetos no Aglomerado da Serra e no Morro das Pedras, em Belo Horizonte, através do escritório MACh Arquitetos. Entre os projetos, destaca-se a requalificação do Beco São Vicente, que uniu a criação de três pequenas praças a espaços dedicados à Associação de Costureiras do Aglomerado da Serra.
Neste mesmo período, Maculan integrou o Laboratório Piracema de Design, liderado pela artista Heloísa Crocco, que se propõe a uma pesquisa da forma na cultura brasileira através de trocas de saberes entre profissionais com formações acadêmicas diversas e artesãos detentores de conhecimentos e fazeres tradicionais. Como um dos desdobramentos do Piracema, em 2017 Maculan é convidado pelo SEBRAE-MG para atuar junto a comunidades urbanas e organizar uma oficina de upcycling de moda no Aglomerado da Serra. Dessa iniciativa surge a marca REMEXE, que hoje impacta direta e indiretamente dezenas de moradores.
Na organização da oficina ocorre o primeiro encontro de Maculan com Kdu dos Anjos, artista idealizador do Centro Cultural Lá da Favelinha. Como uma forma de atribuir ao prédio a maior liberdade possível frente aos usos imaginados para o centro, Maculan propõe uma ação conjunta de arquitetos para repensar o projeto e formar uma rede de parcerias para a viabilidade das obras. Naquele instante foi idealizado o coletivo, um pequeno núcleo formado por Fernando Maculan, Joana Magalhães e Paula Zasnicoff.
SM: Quais são as suas áreas de atuação?
CL: Temos nos dedicado a projetos de arquitetura em contextos de favelas e periferias, com ênfase em programas de natureza coletiva ou que, mesmo de contexto privado, possam se manifestar como um processo expansível ou replicável a um número maior de pessoas destes territórios e comunidades.
Reconhecemos a necessidade de resposta aos problemas espaciais e infraestruturais mais básicos e recorrentes nas favelas, mas experimentamos um convívio que faz aflorar os afetos, diálogos, valores e anseios para uma transformação inclusiva e participativa. Atuar na presença e não na ausência; na potência e não na carência – são nossas estratégias para a condução dos projetos e obras, em todos seus estágios.
Também temos adotado a ideia da reciclagem em diferentes formas de atuação, como na elaboração dos móveis do Centro Cultural e do parklet em frente a ele, construído com carteiras metálicas provenientes do depósito de inservíveis da prefeitura e fruto de uma parceria com o Movimento Gentileza e o Coletivo Micrópolis. Nos dois casos, moradores do aglomerado, na maioria crianças e jovens, foram diretamente envolvidos nos processos de criação e produção.
O Coletivo atua também na organização e projetos de exposições, como a que apresentou o trabalho do Lá da Favelinha no Museu da Moda de Belo Horizonte (MUMO). Nossas áreas de atuação estão em constante construção, sendo regidas pelas oportunidades que o tempo de presença em cada território pode fazer aflorar.
SM: O LEVANTE se define como um coletivo focado na elaboração de projetos em favelas e periferias. Quais são os principais desafios e os maiores aprendizados de projetar nesse contexto?
CL: O desafio mais sensível, que buscamos superar através da permanência, da escuta e do afeto, é estabelecer pontes sobre as barreiras presentes entre as favelas e outras partes da cidade. Há também os desafios físicos e espaciais de lidar com a precariedade de acessos, mobilidade e infraestrutura.
Entretanto, preferimos dizer que há várias oportunidades para o Coletivo ao projetar no contexto das favelas. À parte dos desafios estruturais, que extrapolam o alcance de nossa prática, percebemos que a via de superação de desafios pode se dar pela troca de saberes entre moradores e profissionais das mais variadas disciplinas que possam aportar, em “via de mão dupla”, seus conhecimentos.
Uma síntese dos aprendizados está reunida na forma do filme "Onde você vai morar em 2050?", realizado em 2017 por Fernando Maculan a partir de um convite da CASACOR Minas para uma série de palestras sob o tema Arquitetura para não arquitetos. A pergunta-título foi levada a moradores e frequentadores da favela da Serra e trouxe à tona uma série de perspectivas positivas sobre o modo de vida nas periferias e o que essas comunidades têm a ensinar para outras partes da cidade, tais como: o valor de uso atribuído aos imóveis, as gestões compartilhadas pelos moradores, a cooperação nos mutirões para a construção de casa, o verdadeiro sentido de comunidade, a relação única com a paisagem e a consciência crescente de que a favela tem seus próprios valores e identidades.
SM: O Centro Cultural Lá da Favelinha foi o primeiro projeto do Coletivo e resultado de um esforço multidisciplinar. Essa é uma abordagem que vocês buscam levar para projetos com outros programas?
CL: O Centro Cultural Lá da Favelinha abarcou, desde sua concepção à pós-ocupação, uma ação complexa e integrada. À equipe de arquitetura somaram-se profissionais de iluminação, paisagismo, consultoria estrutural e arte, todos trabalhando voluntariamente. Nosso trabalho envolveu também a formação de uma rede de fornecedores e apoiadores diretos, que contribuíram com a doação de materiais e serviços para a obra, como a Construtora UNI e o financiamento coletivo feito através da chamada Levante Favelinha, que arrecadou cento e vinte mil reais.
Com um fluxo financeiro intermitente, as obras e a execução de mobiliários e elementos têxteis se estenderam por quase 3 anos, o que demandou um grande esforço de acompanhamento técnico, até sua conclusão em 2021. O trabalho do Coletivo, entretanto, não se encerra nesse momento: desde então, temos participado de ações do Centro Cultural e acompanhado visitas de estudantes de arquitetura de diversas partes do Brasil.
A experiência neste projeto provou que a organização de uma rede de profissionais e empresas parceiras é um poderoso instrumento para a viabilização de projetos e obras. Além dos trabalhos especializados, o Coletivo produz informações técnicas, maquetes e desenhos para a primeira materialização dos conceitos propostos, o que é fundamental no estabelecimento de parcerias institucionais e na busca de diversas formas de financiamento. Buscamos adotar e adaptar essa abordagem em outros programas, com diferentes graus de complexidade, especificidade e públicos envolvidos.
SM: Como se dá o processo projetual do coletivo? De que maneira, ou em que medida, as dinâmicas da favela e da vida em comunidade influenciam esse trabalho?
CL: Para tudo que fizemos até agora, seja pela intermitência da disponibilidade dos integrantes do Coletivo e de seus colaboradores voluntários, seja pelo fluxo financeiro descontínuo na execução das obras, gostamos de repetir uma expressão que traz em si um trocadilho com um estilo de dança muito presente na favela: um passinho de cada vez.
É interessante pensar que o tempo estendido dedicado aos trabalhos nas favelas permite uma contínua reflexão sobre a construção e dá espaço a adaptações e acasos. Percebemos que o tempo de espera geralmente é responsável pelo amadurecimento de uma ideia em torno de um processo que, na verdade, nunca para. De maneira análoga, este passo-a-passo está também simbolizado no logotipo do LEVANTE. As linhas correspondem à argamassa do rejunte colocado tijolo a tijolo, no sistema construtivo já predominante nas favelas onde temos atuado.
Quanto à influência das dinâmicas da vida em comunidade sobre nosso trabalho, destacamos duas abordagens que nos interessam em especial: a de subverter nossa prática profissional e incluir a reciclagem como forma de economia de recursos e de valorização do pré-existente, uma cultura que pode ser identificada nas favelas, onde o upcycling já estava instaurado muito antes deste termo ser adotado de forma corrente.
Nada na comunidade é estático: remexer, reorganizar, ajustar e adaptar são conceitos que estão na essência do dia-a-dia dinâmico da favela. Este princípio está diretamente aplicado no mobiliário do Centro Cultural Lá da Favelinha, mas também nas faixas de tela agrária executadas pelo ateliê REMEXE. No mesmo espaço, nosso trabalho procura criar uma arquitetura cênica de pisos, paredes e tetos que configuram verdadeiros “corpos de cor” (em clara referência a Hélio Oiticica), e que devem revelar e exaltar os bailarinos, modelos, empreendedores e artistas que encontram na Favelinha uma ponte para o mundo.
SM: Como vocês enxergam as relações entre centro e periferia no contexto da arquitetura e das cidades? Como buscar estratégias que distanciam-se das lógicas impositivas e hegemônicas de atuar em contextos periféricos?
CL: É fundamental o esforço de reverter o entendimento sobre pessoas e lugares que no Brasil são nomeados "à margem", por questões econômicas, raciais, de gênero ou territoriais, levando-os a ocupar o seu próprio centro, lugar simbólico de pertencimento e identidade. Hoje, mais de 17 milhões de brasileiros vivem em favelas. A certeza de que o Brasil pode se tornar um exemplo de transformação social e de exaltação dos valores de comunidades historicamente preteridas, cujas práticas possam ser evidenciadas e fortalecidas por ações como a nossa, é o que nos move hoje.
O que nos distancia dos modelos impositivos e hegemônicos de atuar em contextos periféricos é, em primeiro lugar, a forma de entrada na comunidade, que se dá através de lideranças locais cujo trabalho já está afirmado e reconhecido pelos moradores. Em seguida, procuramos estabelecer uma relação regida pela presença continuada dos integrantes do Coletivo, desde o movimento inicial de tomadas de decisões junto à comunidade, passando pela elaboração, desenvolvimento e viabilização dos projetos, até as ações pós-ocupação das edificações.
SM: A Casa no Pomar do Cafezal tem ganhado grande repercussão ao redor do mundo e recentemente conquistou o prêmio Building of The Year do ArchDaily na Categoria “Melhor Casa”. Poderiam comentar brevemente sobre algumas das estratégias usadas no projeto para lidar com terreno limitado, topografia, incidência solar, conforto e demais questões relacionadas ao contexto?
CL: A repercussão da Casa do Pomar do Cafezal a partir da premiação Building of The Year tem sido motivo de constante reflexão por parte do Coletivo, em especial na escuta de moradores das comunidades, cujos relatos muitas vezes vão além dos atributos arquitetônicos que reconhecem na casa.
Quando visto de dentro do Aglomerado da Serra, o movimento se apresenta como expressão de orgulho, uma vez que as manchetes de todos os meios de comunicação nacional param de divulgar as notícias desfavoráveis e sensacionalistas, focadas nas tragédias e na criminalidade, para tratar de algo surpreendentemente positivo que vem deste mesmo local, e da descoberta, provocada pelo fato de que a dignidade e capricho que percebem na Casa no Pomar do Cafezal é algo que pode ser alcançado pela comunidade.
A estrutura espacial da casa responde a uma relação pretendida com a paisagem e com a vizinhança. A casa se organiza a partir de dois módulos de 3x3m, em dois níveis, além da laje acessada por uma escada de marinheiro, no terceiro nível. Fora dos módulos, se ajustando aos limites oblíquos do terreno, a área de serviço e o banheiro são concebidos como “puxadinhos” que desobedecem à ortogonalidade da casa. Em relação à topografia, estabelecemos três cotas de nível desde o ponto mais alto de chegada pelo beco, de modo que a implantação se desse de forma escalonada e com mínima movimentação de terra.
Contudo, é na opção deliberada por um repertório construtivo comum e recorrente na favela que o projeto parece se aproximar de seu objetivo de se tornar acessível e multiplicável. Estrutura de concreto armado sobre fundação de tubulões; tijolos cerâmicos furados deixados aparentes; bancadas e arremates de ardósia; esquadrias de ferro; piso de cimento queimado “vermelhão” e paredes de áreas molhadas revestidas com azulejos — soluções que são cotidianamente executadas pelos moradores das favelas, que também são, em grande parte, aqueles que constroem outras áreas da cidade.
SM: Poderiam falar sobre alguns dos projetos em curso?
CL: No Serrão, os projetos prioritários para 2023 são a Casa no Beco Dourado, o estúdio de gravação musical Favelinha Records, a Galeria de Arte Torre de Bebel e a Quadra do Canão, um espaço que será dedicado ao esporte e à cultura, podendo ser utilizado como estrutura complementar para a educação integrada das escolas municipais mais próximas. O Coletivo também elaborou um estudo para o Favelinha Shopping Center no Mercado Novo de BH como forma de fazer chegar a outros públicos aquilo que é produzido na favela pelas ações do Centro Cultural.
Para além dos limites do Serrão, o Coletivo iniciou o projeto da Quadra da Comunidade do Buraco Quente, em Belo Horizonte; e no terreiro de candomblé do Quilombo Manzo Ngunzo Kaiango, em Santa Luzia. No Morro do Santo Amaro, Rio de Janeiro, desenvolvemos o estudo para a Praça da Melhoria, em parceria com o Instituto Ademáfia; em São Paulo, elaboramos três estudos na zona leste para a chamada de projetos organizada pela Fundação Tide Setubal e BlendLab para o +Lapena Habitar, contemplando duas edificações de uso misto e a renovação de uma passarela sobre os trilhos da CPTM; além disso, também estamos prestes a iniciar projetos em Salvador e Manaus.
Passados mais de quinze anos desde as construções no Beco São Vicente, um dos propósitos do LEVANTE, no contexto do Aglomerado da Serra, é o estabelecimento de novas formas de uso e gestão comunitárias destas construções. Repensar um antigo projeto, agora de dentro para fora, com nossos amigos do Lá da Favelinha.
Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Fazer mais com menos. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuições de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.