Segundo informações divulgadas pelo CAU/DF de 2022, mais de 82% do território urbano brasileiro se reproduz de maneira informal e autoconstruída, um fenômeno pulsante e manifesto em todo o país. Por “autoconstrução” nos referimos a uma arquitetura popular, que se expressa vivamente através de pessoas erguendo, de maneira livre, suas próprias casas.
Se, por um lado, este cenário apresenta ampla cultura construtiva, com soluções e tecnologias criativas e adaptações aos recursos e contextos locais, com valiosos saberes envolvidos, por outro, o que temos é um alto nível de precariedade habitacional, com ambientes insalubres e sem infraestrutura básica, expondo as pessoas que vivem nesses contextos a inúmeras situações de risco.
Isto resulta não apenas da falta de suporte técnico de profissionais da arquitetura, mas também da ausência de políticas públicas que garantam, em vias reais, o acesso à moradia e cidade dignas à população. Por isso, ações que sejam capazes de mitigar essas problemáticas são necessárias em caráter de urgência.
Concomitantemente, estudantes de arquitetura passam os anos da faculdade realizando projetos fictícios para equipamentos de grande porte, com os quais poucos terão a oportunidade de trabalhar depois de graduados, tais como centros culturais, escolas, bibliotecas, museus, edifícios multifuncionais, shoppings etc., sem terem contato, na maioria das vezes, com projetos reais e com a prática construtiva em si, o que acarreta um nítido distanciamento de parte desses profissionais da realidade vivenciada por grande parte da população.
Além disso, no exercício profissional de arquitetura é recorrente a apartação entre o desenho arquitetônico e a prática no canteiro de obras, estando dividido o ofício em dois corpos: o ser pensante — o ser que projeta, no caso os profissionais da arquitetura e urbanismo — e o ser que executa — o pedreiro e outros prestadores de serviços mais específicos.
É preciso chamar atenção para a necessidade de costura entre estes corpos e deles junto ao contexto, para que o processo se enriqueça e sirva às demandas do cotidiano com soluções de qualidade, as quais só se fazem possíveis a partir do momento em que todos os profissionais envolvidos se relacionam de maneira integrada.
As questões “para quem?”, “por quê?” e “como?” devem ser o ponto de partida dos processos de projeto e planejamento urbanos (em suas diferentes escalas), sobretudo em relação às potencialidades e demandas sociais, ambientais, culturais e econômicas, que possibilitem maior integração entre seres humanos e seu habitat.
E se a arquitetura saísse dos muros da escola e ocupasse outros espaços, conectando os saberes locais aos saberes acadêmicos em uma sala de aula aberta, envolvendo moradores locais, estudantes, artesãos, marceneiros, serralheiros, pedreiros, eletricistas, encanadores etc.?
Com esta pergunta em mente o projeto do Canteiro Móvel foi idealizado, a fim de ser um caminho para maior atuação de arquitetos frente ao contexto descrito, voltando-se à discussão a respeito do ensino e da prática de arquitetura, das relações de produção no canteiro de obras, da hierarquia entre profissionais, da política da estética, propondo um trabalho mais livre e colaborativo, envolvendo pesquisas e experiências de técnicas construtivas com foco no baixo custo e baixo impacto ambiental e na criação de soluções simples, eficazes, com o objetivo de otimizar processos e produtividade, a fim de tornar a arquitetura mais acessível.
São referências as reflexões do arquiteto Sérgio Ferro a respeito das relações entre o desenho e o canteiro de obras; as práticas participativas para projeto e construção de assessorias técnicas de movimentos de moradia, como USINA CTAH (Centro de Trabalhos para o Ambiente Habitado); e as práticas que vinculam canteiro experimental com graduação em arquitetura e comunidade do entorno.
O Canteiro Móvel é uma proposta político-pedagógica do coletivo Sem Muros Arquitetura Integrada, que tem a intenção de atuar enquanto instrumento que costura os corpos envolvidos no processo de projeto e construção. Estudantes e profissionais da arquitetura se unem aos construtores, à comunidade e ao território para, através da elaboração de tecnologias construtivas apropriadas (protótipos e intervenções), construir um caminho de aprendizado pautado na troca de saberes e no reconhecimento dos recursos locais (materiais, humanos, econômicos, sociais, culturais etc.).
Trata-se de uma escola aberta, diversa e itinerante de arquitetura e experimentação, que trabalha com pessoas e processos projetuais e construtivos in loco, respeitando as relações existentes, a partir de um trailer equipado com ferramentas de obras e materiais didáticos, que estaciona em um território e se abre à população e a tudo o que possa surgir desse encontro. O compartilhamento de conhecimento é essencial para a manutenção de qualquer cultura e a experiência é fundamental enquanto instância de aprendizagem.
É uma oportunidade de levar o canteiro de obras / experimentação a diversos locais e investigar o fazer arquitetura na prática. Desta forma, os moradores se apropriam de técnicas desenvolvidas e passam a ter mais autonomia frente às necessidades relacionadas ao seu habitat. O ensinar/aprender é desenhado de maneira colaborativa, em contextos de um cotidiano comum, para pessoas e territórios reais.
É também a proposta de um novo ciclo de pensamento social sobre a cidade e a arquitetura, em estreito contato com ações de renovação, trazendo uma ruptura epistemológica que substitui a imagem do arquiteto como único ser pensante no exercício projetual e construtivo, para um entendimento aprofundado sobre a função social do arquiteto em prol de uma arquitetura conectada ao contexto, e de um fazer na cidade a partir dos recursos existentes.
Uma mudança que emerge a partir da cultura local, de tecnologias apropriadas e de uma inversão no olhar, onde sujeitos que constroem participam ativamente das propostas e planejamentos , e os que projetam, por sua vez, estão mais presentes nas obras, compondo uma dinâmica de aprendizagem mútua.
Quanto maior o envolvimento da comunidade local nos processos construtivos, com participação desde o pensar e projetar espaços até a sua execução, maior a percepção em relação a suas próprias necessidades, maior o potencial de replicabilidade das soluções elaboradas, e mais fortalecidos se tornam os laços entre elas e o lugar, trazendo o sentimento de pertencimento e interação na vizinhança e atribuindo um papel importante a estas pessoas no desenvolvimento local, a partir da valorização do ser individual e coletivo. Além disso, arquitetos mais próximos à realidade deste atrelamento teórico-prático passam a projetar de outra maneira: o projeto se desenha para quem vai utilizá-lo e construí-lo, de maneira colaborativa e com os recursos disponíveis.
Todos os papéis dentro do processo se relacionam: se reconhecem as partes que compõem o todo, de modo que o todo seja muito mais que soma das partes.
Organização do texto por Bianca Collin Leopoldino, Ana Beatriz Giovani, Flavia Burcatovsky e Cassia Yebra
Sem Muros Arquitetura Integrada é um laboratório colaborativo de arquitetura com base na Permacultura. O projetar, experimentar e construir é para nós uma oportunidade de aprendizado e promoção de autonomia àqueles envolvidos, caminhando através de uma arquitetura integrada social, ambiental e economicamente, preservando os sistemas de manutenção da vida.