Há uma percepção na sociedade de que o número de pessoas em situação de rua tem crescido no Brasil. Para compreender melhor o tema, o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas com a População em Situação de Rua, criado no âmbito do Programa Polos de Cidadania, da Universidade Federal de Minas Gerais, compilou dados de milhares de municípios em uma série histórica que vai de 2012 a 2021. Infelizmente, os dados indicam que esse problema realmente vem se agravando em nosso país.
Neste artigo, vamos focar nos dados referentes às capitais estaduais e trazer algumas hipóteses a serem validadas a partir dos números apresentados. Na maioria dos casos, as capitais são as cidades mais populosas de cada estado, e também concentram a maior parte da população de rua do Brasil. Os dados para os demais municípios estão disponíveis no site do Observatório, que também oferece recortes por raça, gênero, idade e condição social.
Metodologia e a evolução da série histórica
Artigo Relacionado
Como inovar nas políticas públicas para pessoas em situação de rua? Conheça o Housing FirstSul
Sudeste
Centro-Oeste
Nordeste
Norte
Brasil
O Observatório disponibiliza os dados absolutos de cada capital de 2012 a 2021, assim como uma tabela para o ano de 2021 do tamanho da população em situação de rua para cada 100.000 habitantes, ou seja, relativo ao tamanho de cada cidade. Essa última medida é relevante dado que cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro, muito maiores que outras capitais brasileiras, apresentam crescimentos absolutos muito maiores, mas não necessariamente estão em uma condição pior que cidades menores em termos relativos.
Primeiramente, chama atenção que todas as capitais registraram crescimento da população em situação de rua no período 2012 – 2021. No entanto, também chama atenção os valores bastante baixos nos primeiros anos da série. Quatro capitais (Florianópolis, Teresina, Palmas e Macapá) registraram zero pessoas em situação de rua em 2012, e grandes cidades como Distrito Federal, Rio de Janeiro e Salvador registraram valores relativamente baixos para seu tamanho.
Uma das explicações pode ser que o CadÚnico, base de dados pública utilizada pelo Observatório para construção da série histórica, pode não ser abastecido adequadamente por todos os municípios. Ou seja, é possível que muitas das pessoas em situação de rua sejam simplesmente “invisíveis”, não sendo computadas nas avaliações municipais, e que o aumento, ao menos em parte, seja resultado de uma melhoria dos municípios em identificar e reportar esta população ao CadÚnico.
Ainda, cidades podem usar metodologias diferentes para fazer seu levantamento de população em situação de rua e, pior ainda, levantar números diferentes daquele registrado no CadÚnico. O Censo de População em Situação de Rua do Rio de Janeiro para o ano de 2020, por exemplo, registrou 7.272 pessoas, enquanto os dados do Observatório registraram 8.728 para o mesmo ano.
Censo semelhante para cidade de São Paulo de 2015 registrou 15.905, 15% menos que os 18.608 do Observatório. Da mesma forma, o Censo Pop Rua de 2013 de Belo Horizonte registrou 1.827 pessoas contra 3.034 na tabela do Observatório.
Apesar disso, os dados do Observatório são os únicos que podem ser avaliados pelo mesmo critério do CadÚnico para toda a série histórica de 2012 a 2021, sendo uma importante e poderosa ferramenta para políticas públicas.
Outro fator que chama atenção na série histórica é que, embora a transição entre 2019 para 2020 tenha continuado a tendência de crescimento dos anos anteriores, não foi registrado um aumento relativo durante a pandemia.
Pelo contrário: muitas cidades registraram uma queda expressiva na população em situação de rua entre 2020 e 2021, inclusive ajustado ao tamanho da sua população. Uma das hipóteses poderia ser o efeito do auxílio emergencial, que reduziu a extrema pobreza ao menor nível em 40 anos.
Além disso, instituições de caridade também viram um pico de doações no auge da pandemia que despencou com a gradual retomada à “normalidade”. Sem dúvida um evento de proporções como a pandemia do COVID-19 gerará ruídos em qualquer série histórica, e será interessante ver como os dados vão se comportar nos anos seguintes.
Quais cidades apresentam o maior desafio em relação à população em situação de rua?
São Paulo sem dúvida é uma cidade que frequentemente vem à tona quando se fala em população em situação de rua. Não apenas à escala em valores absolutos (a capital paulista apresenta quase a mesma população em situação de rua que todas as outras capitais somadas), como também figura em terceiro lugar entre as cidades com maior população de rua para cada 100 mil habitantes.
Porém, entre as grandes capitais, é Belo Horizonte que apresenta o maior desafio. Mesmo com uma população de 20% do tamanho de São Paulo, a cidade registra uma população em situação de rua 10% maior em termos relativos. Nesse sentido, é positivo ver a expansão de pesquisas como o Censo Pop Rua, realizado pela Faculdade de Medicina da UFMG a pedido da Prefeitura de Belo Horizonte para entender melhor as características dessa população e quais as melhores políticas públicas para ajudá-la.
Mesmo assim, Boa Vista encabeça a lista das maiores populações relativas, com 411 pessoas em situação de rua para cada 100 mil habitantes. A capital de Roraima, que quase não tinha registros até 2017, viu a população de rua explodir após a eleição venezuelana de 2018 e a subsequente crise migratória.
Também chama atenção Florianópolis, com uma população estimada em cerca de 500 mil pessoas, que saiu de um registro de zero pessoas em situação de rua em 2012 para um total próximo à de Goiânia e Recife, que tem três vezes mais habitantes. Tal crescimento expressivo gerou até a abertura de um inquérito pelo Ministério Público de Santa Catarina para investigar se outros municípios não estão “despachando” moradores de rua para a cidade.
No lado positivo, a cidade de Porto Alegre figurava, ao longo de quase toda série histórica, entre uma das capitais com maior população de rua em relação à população total. No entanto, a queda entre 2020 e 2021 foi tão expressiva que ela retornou praticamente ao mesmo patamar do início da série histórica.
Desta forma, entre todas as capitais, foi a que registrou o menor aumento na população de rua entre 2012 e 2021. Em reportagens recentes, um dos motivos da redução apontados pela Fundação de Assistência Social e Cidadania de Porto Alegre foi a limpeza nos registros e prontuários. Mesmo assim, alguns pesquisadores questionam a redução, embora tenha sido um efeito identificado em capitais de todo país.
Situação de rua como parte do problema habitacional
Pesquisas realizadas em nosso país apontam para um retrato bastante heterogêneo da população de rua. Em uma pesquisa realizada em Porto Alegre, foram apontados como motivo para a entrada em situação de rua: o conflito em seus núcleos familiares e vínculos amorosos (32,5%), o uso de substâncias psicoativas (29,4%) e o desemprego (8,9%), entre outros. Na capital gaúcha esta população é composta majoritariamente por homens (85,5%, em linha com a média nacional apresentada pelo Observatório), com ampla variação de raça, idade e tempo de permanência na rua.
A lista também reforça a tendência de concentração da população de rua nas capitais do Sul e Sudeste, acompanhadas do Distrito Federal, Salvador e Fortaleza. Essas cidades concentram boa parte da atividade econômica do país. Pode ser que o crescimento do número de empregos não tenha sido acompanhado de um crescimento equivalente na construção de residências. Neste cenário, os empregos atraem a vinda de migrantes, que passam a disputar as habitações existentes com a população de menor renda, levando a uma alta no preço da moradia.
Outra possibilidade é a de que essas capitais simplesmente tenham uma capacidade maior de realizar pesquisas e estimar o tamanho da população de rua. Como o Observatório usa dados produzidos pelas próprias Prefeituras, pode haver diferença quanto à forma de padronizar e coletar os dados.
Há uma grande quantidade de imóveis desocupados nessas capitais, o que traz a percepção de que “há mais casa sem gente do que gente sem casa”, ou seja, de que o problema habitacional poderia ser facilmente resolvido. Essa afirmação, que já foi desmentida pelo urbanista Nabil Bonduki, costuma desconsiderar a taxa natural de vacância, formada pelos imóveis que estão anunciados para aluguel ou venda, à espera de um novo morador. Além disso, muitos desses imóveis não podem ser ocupados prontamente devido ao seu estado deteriorado, ou por precisarem de um processo de conversão de uso custoso e burocrático.
Apesar disso, os imóveis que estão efetivamente abandonados devem ser ocupados sempre que possível, principalmente quando estão em áreas centrais. No caso de Porto Alegre, cerca de 80% da população de rua está concentrada no Centro Histórico.
Qualquer política de moradia que queira transferir essa população para regiões mais afastadas é falha, pois rompe os poucos vínculos sociais que essas pessoas mantêm. Assim sendo, é necessário prover moradia no próprio Centro Histórico, algo que só será possível com o investimento público em habitação de interesse social.
Como pontua o urbanista francês Alain Bertaud, “não existem soluções de mercado para pessoas que não têm renda”. Contudo, quanto mais pessoas puderem ser atendidas pelo mercado imobiliário, menor será o ônus com que o setor público terá que arcar. Parte da equação é flexibilizar exigências que encarecem a moradia, como a construção obrigatória de vagas de garagem, os afastamentos obrigatórios em relação aos limites do lote, a lentidão na aprovação de projetos e o baixo potencial construtivo em áreas centrais.
O Brasil tem realizado algumas experiências com programas de “Moradia Primeiro”, que encaram o problema da situação de rua como parte do deficit habitacional. Embora os resultados precisem ser melhor estudados, esses programas são um avanço em relação a abordagens que enxergavam a pessoa em situação de rua puramente como vítima de transtornos mentais, conflitos familiares ou dependência química. Incluir essas pessoas na conta da política habitacional é um passo na direção certa.
Via Caos Planejado.