Durante o mês de julho exploramos o Processo Projetual como tema mensal. Instigados por práticas que cruzam camadas distintas e (ainda) incomuns em suas criações, conversamos com o arquiteto Guto Requena. Ao projetar, seu estúdio experimenta com distintas tecnologias digitais a partir de um olhar sustentável e atento às pautas sociais para atingir o objetivo de proporcionar experiências inovadoras e afetivas. Hoje, o arquiteto acumula diversos prêmios nacionais e internacionais, entre eles o ArchDaily Building of the Year e o Prix Versailles da Unesco.
Na entrevista, Requena nos conta sobre sua trajetória, coloca a diversidade de sua equipe como um dos principais pontos de inovação do seu escritório, traça importantes questões sobre como fomentar e criar com novos materiais na arquitetura e muito mais.
Victor Delaqua (ArchDaily): Em escolas de arquitetura somos ensinados a pensar o espaço físico e, em seus projetos, você menciona a criação de uma arquitetura híbrida, na qual concreto e virtual se misturam. Como essa mistura influencia o seu processo projetual?
Guto Requena: Durante a faculdade, grandes mestres me ensinaram a ver a arquitetura a partir da forma, da função, dos fluxos, da relação com a rua, estética. No entanto, nenhum professor me estimulou a pensar o projeto a partir de uma questão que considero fundamental: teria a arquitetura o papel de estimular a empatia, a coletividade?
Essa pergunta parece ganhar mais sentido se a gente pensar que estamos cada vez mais isolados. Existe um risco muito grande das tecnologias nos isolarem, mas o ser humano é um ser social a priori. Então, como criar espaços e experiências que convidam as pessoas a se olharem e se encontrarem? A arquitetura também tem esse papel e isso não é inventar a roda, mas a grande questão contemporânea é a tecnologia. Para além do concreto, do tijolo, do metal, posso adicionar as tecnologias digitais para responder a isso - e existe uma materialidade e infraestrutura para essa arquitetura hibrida e interativa acontecer: cabo de rede, microcontroladores, LED, sensores, Arduíno.
Para mim, o grande fascínio foi a descoberta de outra experiência que surge dessa arquitetura híbrida. Pesquisei o tema no grupo Nomads da USP durante nove anos com financiamento da FAPESP, estudei muito a teoria, criei projetos conceituais e, finalmente, depois de 15 anos, consigo coletivamente pôr a mão na massa e executar projetos. Quando vemos a arquitetura trazendo a potência das pessoas se olharem, se unirem, se conhecerem a partir dessa fusão analógica e digital é muito satisfatório. Um momento de experimentação que não segue apenas o viés funcional. E, claro, por se tratar de uma experimentação, talvez existam projetos que não sejam tão legais ou não tenham dado certo, mas somos uma primeira geração a fazer isso, e nos permitimos a investigação.
No contexto brasileiro, esta vira uma arquitetura do desafio. Não existem grandes orçamentos, ainda não temos uma vasta formação de cientistas da computação, programadores. Nessas circunstâncias, a gente usa algo único do pensamento criativo brasileiro que é transformar o ordinário em extraordinário. Às vezes, mesmo com recursos mais limitados, alcançamos resultados grandiosos. Tem algo muito rico saindo dessa nova arquitetura brasileira – cinética, com projeções, sensores –, acho que o mundo vai olhar cada vez mais para isso. E me estimula ver que tem muitos estudantes cada vez mais interessados pelo tema. Agora há uma geração que está aprendendo programação e isso é o grande ponto de virada: ter arquitetos que entendem de programação. Por isso, defendo arduamente o ensino de programação nas escolas de arquitetura. Programação é uma linguagem, a gente precisa ensinar o básico dela para os futuros profissionais.
Para além da arquitetura, a programação deveria ser prevista no ensino fundamental, certo? Como você disse, ela é uma linguagem. Isso ajuda a pensar o mundo a partir de outras lógicas…
Exatamente. E há um outro importante ingrediente no seu comentário que é o abismo social que se forma. Hoje, vemos jovens em escolas particulares que possuem programação, robótica e computação em suas grades curriculares. Infelizmente, na maioria das escolas de ensino público isso não existe. Ou seja, há um modus operandi que já vem na formação de jovens privilegiados que chegam ao ensino de arquitetura mais familiarizados com o assunto. Então corremos um risco gigantesco de ter um distanciamento digital que amplia as desigualdades sociais.
Quanto aos avanços digitais, você traz diversos estímulos do corpo e do ambiente para o processo projetual junto de tecnologias automotivas. Agregando fatores cujos resultados você não necessariamente controla. Como essa ideia se desenvolve?
Existe um aprendizado em trabalhar com tecnologia e algoritmos que é pensar a arquitetura para além da matéria. Pensar ela a partir da experiência e de outras oportunidades sensoriais. Por exemplo, a música, o áudio, que são capazes de fazer nosso cérebro pensar em espaços, lembrar de lugares, conectar o corpo com o ambiente.
Durante o meu mestrado, fiquei com muita preguiça da arquitetura porque não conseguia encontrar nela exemplos e respostas destes anseios, de entender que o corpo humano está em profunda transformação. A sensorialidade e a cognição estão em profunda transformação devido às novas tecnologias digitais. Então, sai da arquitetura e comecei a estudar filosofia, artes, lugares nos quais encontrei respostas, onde entrei em contato com a teoria do corpo ciborgue, entender que somos a primeira geração que possui o corpo orgânico cada vez mais misturado com o maquínico. Portanto, temos, de fato, outras sensorialidades, outras cognições. Isso me trouxe sentido para voltar à arquitetura e concluir meu mestrado. Antes da arquitetura temos que dar um zoom no pixel fundamental que é o homem, o ser-humano, entender essa transformação e esses novos comportamentos é fundamental para dar um zoom out e pensar a arquitetura, as cidades.
Agora, quando a gente trabalha com sensores, é necessário programá-los para criar a arquitetura cinética. Para isso, é necessário um olhar transdisciplinar, um olhar da programação. Algo inédito e muito rico em termos de processo de criação de projeto são os times multidisciplinares compostos também por cientistas da computação, engenheiros de hardware e software, programadores, no momento do criar. Então, não é o arquiteto que cria um conceito lindo e pede para uma pessoa executar. Neste processo, o engenheiro está presente na mesa de criação, porque vamos entender outras potencialidades. Isso não tem nada de novo, a arquitetura sempre foi um lugar multidisciplinar, mas com as tecnologias digitais, acho que a gente está chegando num ponto de conexão muito rico com outras áreas e tenho percebido que quando monto times multidisciplinares para criar projetos, a gente tem um nível de profundidade conceitual muito maior.
Um ponto fundamental, se vamos falar do futuro da arquitetura e da tecnologia, é a questão de raça e diversidade. A discussão de tecnologia, assim como a arquitetônica, não deve ser mais desligadas da questão racial. Eu tenho aprendido, e tenho muito ainda a aprender, o quanto meu escritório está ficando mais interessante, mais aprofundado nas discussões conforme passei a ter mais arquitetos pretos, não binários, pessoas trans compondo a equipe. Isso parece meio clichê de falar, mas é um fato. Os nossos projetos estão mais interessantes quando a gente tira a criação de apenas pessoas brancas, essa grande massa na qual somos nós os privilegiados. Abrir isso para essa nova geração tem levado o escritório a lugares inimagináveis. De forma que, para mim, a inovação tem vindo até menos da tecnologia e mais da potência dessa união de saberes.
De modo que a diversidade, seja racial ou por questões de gênero e orientação sexual, passa a influenciar caminhos distintos da norma ou do padrão…
Sim, temos diversos exemplos, como o recente documentário Cabaré Eldorado, que demonstram como a cultura queer está no epicentro de renovações culturais. Hoje, penso muito nos lugares de safe space da comunidade queer, lugares onde os pretos se sentem seguros e o poder que a arquitetura tem nisso. Tem algo muito interessante quando cruzamos a arquitetura com questões de raça e gênero. Através delas, há um potencial enorme para falarmos de novas arquiteturas. E, é claro, a tecnologia vem com isso tudo. Então, investigar essas possibilidades das arquiteturas que fogem dos padrões - que podem ser vistas como um lugar de coletividade, de conexão - historicamente é um lugar da comunidade queer e dos pretos. Em termos de arquitetura, é nestes espaços que há uma revolução acontecendo.
Além da tecnologia, o uso de elementos naturais é bastante constante na sua prática. Como a natureza te inspira em meio aos avanços digitais?
Quanto mais tecnológico me torno, mais conectado com a ancestralidade, com o ambiente natural eu venho ficando. Cresci no interior e na minha infância brinquei envolto pela natureza, um ambiente que sempre povoou muito meu imaginário e criatividade. Por mais cosmopolita que eu tenha virado depois, venho me reconectando cada vez mais com a natureza e isso tem se desdobrado nos meus projetos.
Quando a gente fala de futuro, quando vemos povos ancestrais, muitos deles falam de ciclo. Então, olhar para o futuro é olhar para trás, é presente e passado. E isso faz sentido. Por exemplo, quando a gente fala de impressão 3D na arquitetura, e ela é realizada com matéria biodegradável, estamos fazendo o que se fazia antigamente.
Hoje temos conhecimento e provas de que tiveram grandes cidades na Amazônia. Agrupamentos com mais de 300 mil pessoas, só que eram tão sofisticadas, que não deixaram traços. Apenas agora, com escaneamentos a partir do carbono, estamos começando a identificar essa história. Portanto, para nós brasileiros, há algo muito potente nessa nova e urgente arquitetura porque somos um povo que está culturalmente conectado com algo que vai além da matéria. O povo brasileiro, em geral, é muito espiritualizado, temos facilidade de ter um campo de visão ampliado e nos conectar com valores ancestrais.
E, a partir disso, temos que olhar para a natureza e entender que o futuro está nela. Não dá para continuar construindo a partir de fontes não renováveis. Ailton Krenak diz que estamos matando tudo, matando o rio. Não podemos seguir dessa maneira.
A construção civil é a segunda indústria que mais polui, atrás apenas da aeronáutica. Qual papel os arquitetos tem nisso? A gente precisa divulgar e falar mais abertamente que não dá pra construir em concreto. Não adianta fazer uma casa “sustentável”, colocar placa solar, luz de LED, um monte de móvel com certificado verde se a casa é inteira de concreto, com uma mão-de-obra preta – que ganhou uma miséria e trabalhou num regime precário – para construir uma casa de alto padrão, e depois buscar por uma certificação para cunhar a sustentabilidade.
Então, esse retorno para a natureza tem a ver com um viés de desenvolver uma arquitetura de fontes renováveis, que adota materiais biodegradáveis. Além disso, há a biofilia. Como hackear a arquitetura para dentro da natureza? Por que os arquitetos não estão investigando isso o suficiente? Num país como o Brasil, onde o que se planta, cresce, por que 99% dos novos empreendimentos não olham para isso?
Na minha prática a natureza entra no sentido holístico, de ancestralidade e como fator fundamental para falar de futuro. No estúdio, chegamos num momento que há dois anos já não construímos mais com concreto e investigamos outras alternativas.
Percebemos isso em alguns projetos, como as Flagships da Dolce Gusto Neo e Zissou. Neles, a inovação material ganha protagonismo. Como essa questão material permeia o processo projetual do seu escritório?
Tem um ingrediente criativo na minha equipe que é a busca pela inovação. E fazer inovação demanda tempo e pesquisa. Por isso, abrimos uma frente só de pesquisa e temos visto que estão surgindo materiais incríveis. É necessário que a gente se organize para apoiar e estimular as empresas responsáveis por essas inovações. Há, por exemplo, o surgimento de blocos de revestimento feitos com tecidos descartados, startups brasileiras trabalhando com micélio e gerando placas que podem ser cortadas em CNC, polímeros biodegradáveis que vem dos insetos.
Há uma revolução material, que precisa ser industrializada e escalada. Enquanto arquitetos, também precisamos apoiar esses projetos. Eu sempre enfatizo isso nas reuniões com meus clientes, sugerindo que quando uma marca apoia um projeto desse tipo, ela está apoiando um ecossistema de inovação. Afinal, para criar um projeto desse, é necessário ativar pesquisa, universidades, fornecedores. Então, quando a gente desenvolve uma obra com estes materiais, estamos estimulando e ativando uma rede de inovação. Não é só sobre uma loja ficar bonita, vai além disso.
Você sempre esteve muito ligado às questões tecnológicas e há uma questão atual que não tem como fugir: como você enxerga a Inteligência Artificial influenciando a profissão dos arquitetos?
Eu acho que tem muita potência, acho que vai mexer demais com o ensino de arquitetura e a formação do arquiteto. Acredito, sim, que vai democratizar a arquitetura. Hoje já tenho clientes que chegam com a imagem do Midjourney, tenho estudantes de outras áreas na Sorbonne, em Paris, que não sabem como desenhar e agora conseguem se expressar através de imagens. E isso é o poder da democratização. Sem citar como, a partir do celular, as pessoas hoje conseguem escanear o ambiente e ter um panorama do que é possível fazer nele. Pensando por esse viés, parte da criação será realizada previamente pelos clientes. A arquitetura será profundamente transformada. Tem arquiteto morrendo de medo e achando que está em risco. Eu olho com certo fascínio, pois pode levar a arquitetura para lugares que ainda não imaginamos.
Este artigo é parte dos Temas do ArchDaily: Processo Projetual. Mensalmente, exploramos um tema em profundidade através de artigos, entrevistas, notícias e projetos de arquitetura. Convidamos você a conhecer mais sobre os temas do ArchDaily. E, como sempre, o ArchDaily está aberto a contribuição de nossas leitoras e leitores; se você quiser enviar um artigo ou projeto, entre em contato.