Uma botânica arquitetônica: redefinindo a agência (e escopo) do arquivo de arquitetura

O ensaio a seguir é um trecho de "Architectural Botany: A Conversation with William Balée on Constructed Forests", o oitavo capítulo de “Environmental Histories of Architecture”, um livro de acesso gratuito publicado pelo Canadian Centre For Architecture. A publicação completa está disponível aqui: https://www.librarystack.org/environmental-histories-of-architecture/

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No início da década de 1980, enquanto trabalhava com o povo Ka'apor, na região leste da Amazônia, o botânico norte-americano William Balée, naquela época um jovem pesquisador, deparou-se pela primeira vez com o que os Ka'apor chamam de taper, isto é, um tipo específico de formação florestal que reconhecem como sendo “plantada” por seus ancestrais:

"Os consultores Ka'apor, que eu considerava os mais experientes no assunto sobre tipos de florestas e associações vegetais, me disseram que nosso destino, a floresta antiga, parecia ser uma floresta verdadeira, mas na realidade era uma antiga aldeia, abandonada há muito tempo por qualquer ocupante humano. Eles a chamavam de taper [...]. A própria taper — ou seja, a floresta — era uma testemunha viva e verdejante da existência daquelas vidas humanas passadas."[1]

Aos olhos não treinados — ou melhor, aos olhos treinados pelas estruturas da cultura ocidental — tais florestas pareciam paisagens naturais intocadas e primitivas. Mas os botânicos Ka'apor que informaram William Balée podiam facilmente identificá-las como tipos singulares de florestas, aos quais deram nomes adequados e atribuíram várias conotações históricas e simbólicas, reconhecendo a existência passada de uma antiga aldeia em padrões de árvores, cipós, palmeiras e outras plantas. "Há muito desapareceram as casas, os animais de estimação e os jardins em frente às portas", observou Balée, "mas as árvores que cercavam tudo eram um índice de eventos passados na história humana."[2]

Balée considerava particularmente notável nas florestas taper o fato de que, embora fossem produtos de projetos sociais, eram biologicamente tão ricas e densas como as florestas "verdadeiras", às vezes até mais ecologicamente diversas. A ciência ocidental emprega uma variedade de termos como "verdadeiras", "virgens", "primordiais" e " antigas" para classificar ambientes florestais não perturbados, com idade suficiente para alcançar um estado de clímax ecológico, quando a floresta abriga seus níveis mais altos de biodiversidade. Aquelas florestas taper exibiam características semelhantes, mas eram reconhecidas pelos Ka'apor como aldeias antigas, apresentando uma imagem da floresta que o aparato cognitivo da cultura e ciência ocidentais não era capaz de compreender. Elas pareciam verdadeiras florestas naturais, mas eram, na realidade, paisagens construídas. O que para o olhar ocidental parecia ser uma natureza confusa, um ambiente definido pela ausência de interferência, intenção e racionalidade humanas, os Ka'apor interpretavam como ruínas vivas de aldeias construídas por seus ancestrais, uma espécie de arqueologia arquitetônica saturada de um passado humano profundo, cuja memória se manifestava na própria estrutura botânica da floresta.

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Cortesia de Paulo Tavares

Não existe uma tradução exata para o que os Ka'apor identificam como taper, pois a linguagem ocidental carece do vocabulário e das estruturas de pensamento necessárias. Os Ka'apor distinguem pelo menos dois tipos de florestas: ka'a-te, que é equivalente à "floresta alta"; e taper, "que surge de uma longa transformação da paisagem da qual eles têm plena consciência", segundo disse Balée em entrevista que conduzi com ele em 2018.[3] Taper significa "uma floresta de crescimento antigo que possui uma causalidade humana associada a ela", ele tenta definir, reconhecendo o risco de sua tradução:

A linguagem é extremamente importante, pois, em sua língua, eles distinguem esses diferentes tipos de floresta. Foi muito importante, para mim, compreender essas diferenças através do sistema de classificação deles. Não se pode fazer isso sem entender a língua. O tradutor nunca seria capaz de traduzir; não há uma palavra real para essa floresta cultural em inglês ou português.[4]

Ao longo da década de 1980, enquanto trabalhava com comunidades Ka'apor, Balée foi treinado na língua tupi-guarani e realizou uma série de inventários botânicos detalhados em diferentes áreas do território daquele povo. Isso permitiu que ele compreendesse como o conhecimento botânico Ka'apor emprega sofisticados modos de interpretação da paisagem para classificar a floresta com maior variedade do que a ciência botânica ocidental, particularmente por meio da observação de certas espécies de árvores e palmeiras que funcionam como "índices de atividade humana".[5] Com o tempo, Balée aprendeu como arranjos e associações vegetais — a presença e distribuição de certos tipos de plantas, palmeiras e árvores; a variedade e concentração de certas espécies em determinado espaço; a forma da cobertura vegetal; a composição do solo etc. — podiam ser interpretados como registros arqueológicos do passado social dessas florestas. Esse conhecimento abriu caminho para compreender como os modos de habitar e manejar a terra desenvolvidos pela cultura Ka'apor, e por culturas de povos florestais em geral, produziram transformações notáveis, embora muitas vezes sutis, na paisagem da floresta, de modo que as florestas construídas por eles não são apenas estruturalmente semelhantes às florestas naturais, mas frequentemente mais biodiversas.

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Cortesia de Paulo Tavares

Além de extensas anotações de campo sobre o sistema botânico classificatório e linguístico dos Ka'apor, William Balée fez centenas de fotografias das formações florestais taper e coletou numerosas amostras botânicas de espécies que servem de índice da natureza humana e artificial dessas florestas. Este arquivo forneceu a base de evidências para o seminal trabalho científico que ele desenvolveu nas décadas de 1980 e 1990, onde argumenta que vastas áreas da Amazônia não são de fato naturais, mas "culturais"[6]. Balée não foi a única voz a avançar neste debate. No campo da arqueologia, diversas novas perspectivas também começaram a questionar as representações ocidentais da Amazônia como uma floresta considerada virgem, como, por exemplo, os trabalhos seminais de Michael Heckenberger e Eduardo Góes Neves.[7] Desde então, novos estudos não apenas corroboraram essas percepções iniciais, mas demonstraram que as observações de Balée eram na verdade extremamente conservadoras, mostrando que a floresta amazônica, o território mais biodiverso da Terra, é em grande medida um patrimônio espacial de projetos paisagísticos indígenas.

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Cortesia de Paulo Tavares

Desde que me deparei pela primeira vez com o trabalho de William Balée, há cerca de uma década, tenho interesse em estudar o arquivo de fotografias das florestas taper que ele fez na década de 1980 com os Ka’apor. Supondo que sejam imagens de paisagens construídas, reconhecendo que elas retratam elementos de florestas planejadas, essa coleção requer interpretação enquanto arquivo arquitetônico, em vez de um arquivo de história natural ou botânica, geralmente encontrados em jardins botânicos e museus. Portanto, é necessário mudar a perspectiva, decolonizar o olhar, começar a enxergar nessas fotografias um repertório de formas espaciais e tecnologias de desenho da paisagem que, como de fato são, produzem biodiversidade.

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Cortesia de Paulo Tavares

Na entrevista de 2018 que conduzi com William Balée, como parte do meu trabalho de campo para o projeto de pesquisa Architecture and/for the Environment do CCA, revisamos detalhadamente seu arquivo fotográfico. O que se destaca em nossa conversa é o ato de tradução entre botânica e arqueologia, natureza e arquitetura, que levanta várias questões importantes para a arquitetura e sua relação com o meio ambiente hoje. O que muda, por exemplo, quando reconhecemos que um espaço essencialmente natural ou selvagem — segundo a definição da estrutura epistêmica hegemônica da modernidade colonial — é na realidade um artefato cultural produzido socialmente? Além disso, o que a prática e a pesquisa arquitetônica podem aprender com essa arqueologia botânica, seus métodos e mudanças epistêmicas?

Isso tem importantes implicações para o que constitui o arquivo da arquitetura, bem como sua história e patrimônio.[8] Essa questão deve ser respondida não apenas examinando os materiais de arquivo da arquitetura, mas também identificando o que não está contido nesses arquivos, através das ausências que eles apresentam, que são, em si mesmas, formas de silenciamento histórico, apagamento e miopia. Essa ausência ou apagamento é perceptível, por exemplo, na forma como a arquitetura tem sido moldada pelo conceito de patrimônio mundial defendido pela UNESCO desde sua criação em 1945. Somente no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, no contexto das lutas indígenas em todo o mundo, que resultaram na primeira carta internacional dos direitos dos "povos tribais" (ILO 169), é que o conceito de paisagens culturais — que enfatiza as "obras combinadas da natureza e do homem"[9] — começou a ser discutido como uma forma de compreender o patrimônio paisagístico além da dicotomia natureza-cultura. Por muito tempo, essa estrutura ocidental restringiu a imaginação arquitetônica.

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No caso de An Architectural Botany, essa ausência ou apagamento fica evidente na maneira como a noção implicitamente colonial de patrimônio histórico e artístico tem apresentado o patrimônio cultural das civilizações da floresta, seja como objetos etnográficos ou, mais recentemente, como cultura imaterial, mas raramente como patrimônio arquitetônico. Podemos também observar essa ausência na forma como os projetos de paisagismo desenvolvidos pelas civilizações ameríndias são sub-representados nas instituições culturais e arquivos arquitetônicos contemporâneos, especialmente na vasta coleção de arquivo mantida pelo CCA, onde o trabalho An Architectural Botany foi originalmente desenvolvido. Uma instituição estabelecida em território de colonização de povoamento, o arquivo do CCA não apresenta nenhuma representação das arquiteturas paisagísticas indígenas que moldaram a terra na qual o edifício está situado, projetando tacitamente uma visão colonial, mesmo que inconscientemente. Esse vazio na coleção é tão revelador sobre a história da arquitetura e de seus sistemas institucionais e epistêmicos de poder quanto o que a coleção contém. Uma contra-história da arquitetura e do meio ambiente deve inevitavelmente se opor a esse aparato — institucional, imaginário, conceitual — que, de forma voluntária ou não, apoia tais estruturas de poder, e deve apontar para a decolonização do arquivo e das práticas arquivísticas, dentro do CCA e além dele.

Ao sondar esse vazio, essa ausência, a coleção fotográfica de Balée oferece uma estrutura conceitual para uma nova compreensão das relações entre arquitetura e meio ambiente, mais especificamente a maneira pela qual a arquitetura tem constituído uma força hegemônica — ideológica, imaginária e material — na formação de uma visão colonial da natureza. Isso lança luz sobre formas de mapear e narrar os emaranhamentos entre arquitetura e meio ambiente que questionam sistemas de conhecimento e representação em múltiplas escalas e campos disciplinares. O arquivo apresentado aqui aguarda outro olhar, outra forma de observar, enquadrar e selecionar, capaz de interpretar essas paisagens em um registro completamente diferente e dissidente. Um desvio de perspectiva.

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Cortesia de Paulo Tavares

Nesse sentido, ao refletir sobre as relações entre arquitetura e meio ambiente, paisagens construídas e naturais, é preciso estar atento ao problema da naturalização — isto é, da dessocialização e despolitização — do conceito de natureza, e, por extensão, do conceito de meio ambiente e seus correlatos. Como todo conceito universal desenvolvido pela cultura ocidental, a ideia de natureza é, na verdade, socialmente determinada e culturalmente específica, ou seja, um construto circunstancial e historicamente situado. As origens do conceito de natureza estão relacionadas a formas sociais — cultura, conhecimento, tecnologia, economia — que emergiram no contexto da expansão colonial europeia. Entre a vasta diversidade de culturas humanas que habitam este planeta, a maneira ocidental de ver a natureza é uma exceção, e não a regra, e é particular apesar de suas alegações de universalidade.[10] E, no entanto, como a história da modernidade colonial mostra, o poder global dessa perspectiva é proporcionalmente inverso. O conceito ocidental de natureza desempenhou um papel fundamental na conquista de terras nativas e no genocídio de povos indígenas, e hoje a mesma visão objetificada da natureza continua a legitimar processos de expropriação, deslocamento e privatização de terras.

Ao lidar com natureza(s) e ambiente(s), a arquitetura investigativa deve questionar os próprios conceitos com os quais está se envolvendo, desafiando suposições preconcebidas e definições convencionais, visando tornar visíveis sua natureza construída e o trabalho social, ideológico e político envolvido nesse processo construtivista. O senso comum de que o conceito de ambiente não é político refere-se precisamente a esse processo de "naturalização" — isto é, de ocultação ou esquecimento — dos aspectos históricos, sociais e políticos que impediram diferentes noções de natureza de surgirem e moldarem ideias, cidades e territórios. Como tais noções e conceitos se tornaram um problema para a arquitetura? Como outros foram negligenciados, silenciados ou até mesmo apagados? E, não menos importante, como a arquitetura constituiu um entre muitos sistemas de conhecimento e representação por meio do qual naturezas e ambientes foram inventados, produzidos e reproduzidos, dentro e além de seu campo disciplinar? Do ponto de vista metodológico, isso requer que a arquitetura investigativa trace as várias formas de codificação, representação, mapeamento, arquivamento e institucionalização do conhecimento realizado por meio da arquitetura, que produziu ideias e imagens de natureza, ideias e imaginários que, devido ao seu poder incontestado, parecem ser naturais e neutros, ou seja, sem história e política. A imersão no arquivo fotográfico de William Balée nos oferece um modo de ver tanto a natureza quanto a arquitetura sob um olhar diferente, dissidente e decolonial, projetando uma imagem da arquitetura enquanto plantio e do arquivo da arquitetura como uma botânica em potencial, ou seja, uma construção botânica que nos permitiria recuperar modos de reparar e cultivar o planeta Terra diante da crise climática global.

Notas

  1. Balée, William L. 2013. Cultural Forests of the Amazon: a Historical Ecology of People and Their Landscapes. Tuscaloosa: University of Alabama Press. 7 e 10 respectivamente.
  2. Balée, The Cultural Forests of the Amazon, 10
  3. William Balée, entrevistado pelo autor, 8 de agosto de 2018.
  4. William Balée, entrevistado pelo autor, 8 de agosto de 2018.
  5. William Balée, entrevistado pelo autor, 8 de agosto de 2018.
  6. Balée argumenta isso em vários artigos e papers científicos, mas especialmente no livro "Cultural Forests of the Amazon".
  7. Heckenberger, Michael. 2005. The Ecology of Power : Culture, Place, and Personhood in the Southern Amazon, A.D. 1000-2000. New York: Routledge.; Neves, Eduardo Góes. 2022. Sob os tempos do equinócio : oito mil anos de história na Amazônia central. São Paulo: EDUSP/FAPESP.)
  8. Discuto essas questões em maior detalhe, especialmente a do patrimônio arquitetônico, em Paulo Tavares “Trees, Vines, Palms and Other Architectural Monuments,” Harvard Design Magazine: Into the Woods, no. 45 (Spring/Summer 2018).
  9. Segundo definido na Convenção Mundial do Patrimônio da UNESCO 1992 UNESCO, veja: [online]
  10. Descola, Philippe, e Janet Lloyd. 2013. Beyond Nature and Culture. Chicago ; London: The University of Chicago Press.

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Sobre este autor
Cita: Tavares, Paulo. "Uma botânica arquitetônica: redefinindo a agência (e escopo) do arquivo de arquitetura" [An Architectural Botany [DO NOT PUBLISH THE ENGLISH VERSION]] 03 Set 2023. ArchDaily Brasil. (Trad. Baratto, Romullo) Acessado . <https://www.archdaily.com.br/br/1005384/uma-botanica-arquitetonica> ISSN 0719-8906

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