Ao estudar e viajar por cidades do mundo inteiro, uma das cenas urbanas mais marcantes que vi foi uma praça em Tóquio cheia de crianças uniformizadas, brincando durante seu intervalo escolar. A praça tinha apenas uma cerca baixa, mas pessoas diversas (como eu) podiam se misturar e interagir em meio às crianças. A independência infantil no Japão é mundialmente conhecida e foi recentemente retratada na série “Old Enough” do Netflix, onde crianças com menos de 6 anos fazem tarefas fora de casa, sozinhas, sem os pais. Para um morador de Tóquio talvez sejam cenas corriqueiras, mas para alguém com outro referencial urbano, é imediata a pergunta “como isso é possível?”, tão distante é da realidade da maior parte das nossas grandes cidades.
Uma resposta usual para esta pergunta no Brasil é que temos uma segurança pública precária, impunidade para criminosos e escassez de policiamento ostensivo. A falta de segurança teria tornado a cidade inviável para crianças, que são cada vez menos vistas em espaços públicos. A explicação do ponto de vista da segurança pública pode ser parte da resposta, mas a estrutura urbana das cidades em que vivemos é um elemento crucial que raramente é debatido fora da bolha acadêmica de urbanistas e sociólogos.
É importante entender as causas do nosso comportamento urbano. Nos acostumamos a uma realidade de aversão aos espaços urbanos. Principalmente para crianças, a experiência da cidade é limitada ao carro: de dentro de uma garagem para outra, do condomínio para o shopping, do clube para a escola. Ambientes confinados, mesmo que às vezes ao ar livre. Algumas famílias evitam até mesmo parques e praças, e a calçada é um espaço cada vez mais raro de ser pisado durante a infância.
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Rotas escolares seguras e acessíveis para as crianças: um plano de açãoUm dos fatores para este comportamento é o impacto da arquitetura no espaço urbano. Se você pensar na cidade mais agradável pela qual você já caminhou, provavelmente será uma com edifícios junto à calçada e fachadas contínuas entre eles, ou seja, sem espaços vazios entre os prédios. É o que ocorre em cidades europeias tradicionais, metrópoles caminháveis como Nova York e Tóquio ou, sem precisar ir tão longe, nossa vizinha Buenos Aires.
O fácil acesso de quem está na calçada para as atividades ocorrendo nos prédios, assim como a visibilidade de quem está dentro para quem está passando na rua, estimula a caminhada e a permanência no espaço público. Não é coincidência que shopping centers emulem essas características virtuosas de ruas de sucesso em seus simulacros fechados.
Jane Jacobs, uma das urbanistas mais influentes da história, chamou esta característica de “olhos da rua”, ou seja, uma sensação de segurança trazida pela vigilância natural dos próprios cidadãos, seja a partir dos edifícios ou por quem está passando. Se pensarmos nas ruas de Porto Alegre desenvolvidas em períodos mais recentes vemos, no espaço público, uma continuidade de muros e cercas que, para tentarem se proteger individualmente, criaram uma barreira para a cidade. Este resultado é, em grande parte, derivado da obrigatoriedade legal de afastamentos entre os edifícios e as calçadas, em uma busca nem sempre feliz por iluminação e ventilação.
Pesquisadores na área urbana encontraram forte correlação entre a continuidade e proximidade das fachadas à calçada à presença de pedestres. Ou seja, ruas com torres isoladas nos terrenos tendem a ter menos pedestres e, além disso, estão fortemente ligadas à presença de cercas e muros. Além disso, estudos também analisaram a relação entre o local de incidência de crimes às características arquitetônicas das vias onde ocorreram. Para a cidade de Florianópolis, a correlação mais significativa é de que as vias onde há muros altos e/ou cercas vivas com vegetação densa, gerando pouca ou nenhuma interação visual entre público e privado, mostraram-se ligadas aos locais de ocorrência de crimes.
O Project for Public Spaces, uma das instituições mais influentes na avaliação do desenho e da condição de espaços públicos, traz uma série de diretrizes que corroboram essa tese. Espaços de qualidade devem ter boa visibilidade, devem ser fáceis de acessar e também devem ser atraentes para diferentes públicos, permitindo diferentes usos e atividades. Por este motivo, a instituição também é crítica do cercamento de praças, pois se investe na segregação do espaço ao invés da sua qualificação e integração ao meio urbano.
Agravando os efeitos da arquitetura, o que temos visto é a total negligência da zeladoria dos espaços públicos, tornando-os ainda mais inóspitos para passagem, quiçá para permanência. A qualidade não só das praças mas também das calçadas mostra a total omissão do poder público em relação a uma das suas infraestruturas mais indispensáveis, se considerarmos a caminhada a forma de mobilidade mais democrática, além de ser a que também conecta o cidadão ao transporte coletivo e, em certo aspecto, também ao uso da bicicleta. Enquanto os carrinhos de bebê e até mesmo cadeirantes trepidam em calçadas esburacadas, camionetes 4×4 com suspensões hidráulicas deslizam por asfalto recapeado.
O planejamento urbano tem, ao longo das últimas décadas, privilegiado o uso do carro como meio de transporte. Com foco na “fluidez do trânsito de veículos”, e não necessariamente no deslocamento de pessoas em diferentes modos de transporte, tampouco na qualidade urbanística da cidade, o investimento público na área de mobilidade tem sido direcionado para obras massivas direcionadas ao uso do carro, como alargamentos viários, túneis e viadutos.
Esta estratégia, em primeiro lugar, não atinge a sonhada velocidade de trânsito, dado que possui um efeito de indução de demanda: motoristas, ao se depararem com uma via de maior velocidade, rapidamente a adotam como uma nova opção, gerando um novo congestionamento logo após sua inauguração. Não só isso, como as vias rápidas dentro da cidade criam grandes barreiras urbanas que destroem a acessibilidade ao seu redor. Não é preciso de estudos acadêmicos para salientar que é rara a escolha de vias de alta velocidade para passeios com crianças.
A NACTO (National Association of City Transportation Officials), uma das principais instituições de pesquisa em transporte, traz uma série de recomendações no seu manual “Desenhando ruas para crianças”. Ao analisar todas as formas que uma criança tem contato com o espaço público, há formas de explorar não só a maior autonomia, independência e segurança das crianças e seus cuidadores no andar pela cidade, mas também de reconhecer as ruas como espaços de permanência, com oportunidades de brincadeiras ao ar livre, inspiração, desenvolvimento pessoal e conexões interpessoais. Isso envolve medidas como o aumento da largura e da qualidade de calçadas e canteiros, melhoria na gestão da arborização urbana, na iluminação pública para circulação em todos os horários assim como sinalização e tempos semafóricos que priorizem deslocamentos e travessias seguras para crianças.
Algumas cidades têm buscado implementar essas estratégias. No Brasil, Fortaleza tem sido uma das cidades brasileiras com políticas mais contundentes na humanização dos espaços públicos, chegando ao oitavo ano consecutivo de redução de mortes no trânsito, atingindo uma taxa quase 60% inferior em relação a 2014.
A redução dos limites de velocidade de 60km/h para 50km/h nas vias arteriais, além do aumento significativo da sinalização e da fiscalização foram algumas das estratégias adotadas para atingir esse objetivo. Além disso, a cidade criou o programa Esquina Segura, redesenhando e requalificando o desenho do espaço público em locais críticos da cidade.
No entorno do Centro Cultural Dragão do Mar, uma intervenção simples mas eficaz foi implantada de forma a organizar o espaço público em prol do pedestre, criando passagens prioritárias coloridas, aumentando a segurança. Estratégia semelhante está sendo buscada na Rua João Alfredo em Porto Alegre, que já iniciou a sua primeira fase de transformação.
A cidade de Barcelona, na Espanha, inovou ao criar o “bicibus”, uma iniciativa que junta e orienta crianças de forma organizada para que elas possam pedalar até a escola. O “pelotão” infantil faz diferentes paradas ao longo na cidade, com um itinerário que permite que as crianças possam se juntar ao “ônibus de bicicletas” até chegar na sua escola. Criado no início de 2021, no final de 2022 mais de 1200 crianças já haviam pedalado em mais de 90 rotas criadas para atender cerca de 70 escolas em 25 cidades da Catalunha, região cuja capital é Barcelona.
Mesmo Copenhague, que hoje se apresenta como uma referência mundial em qualidade urbanística e receptiva ao desenvolvimento infantil, nem sempre foi assim. A cidade é hoje conhecida pelo amplo uso da bicicleta, onde 44% dos deslocamentos de trabalho ou estudo são realizados em bicicleta (contra próximo de 3% em cidades brasileiras.
Nos anos 70, com a crescente motorização da cidade, o uso da bicicleta caiu drasticamente e carros inundaram o espaço público. Nyhavn, porto que é atual cartão postal da cidade cheio de pessoas e restaurantes, era basicamente um estacionamento para menos de 100 carros. Foi durante a década de 80 que se expandiu drasticamente a rede de ciclovias segregadas, além da reorganização de espaços públicos da cidade, criando as bases para o que a cidade é atualmente.
Respondendo à pergunta feito ao início, talvez esses exemplos mostrem que não é tarefa impossível humanizar nossas cidades. Podemos sim criar espaços mais acessíveis para crianças, partindo da consciência do nosso dever em reconquistarmos nossos espaços públicos.
Via Caos Planejado.