A cidade de Viena tem uma política habitacional bastante elogiada. Ela realmente tem muitos méritos, mas não é necessariamente perfeita. Na verdade, a política habitacional de Viena caminhou em uma direção diferente das outras cidades europeias, o que desperta o interesse de quem estuda o tema. Nesse episódio do podcast Housing Voice, produzido pela universidade UCLA, Justin Kadi apresenta algumas características que tornam a capital austríaca um caso único. O episódio também disponibiliza uma série de artigos científicos para quem quiser se aprofundar no assunto.
Porque Viena é diferente?
As habitações sociais surgiram em Viena após a Primeira Guerra Mundial, que deixou a cidade devastada pela pobreza. Durante a década de 1920, o governo municipal foi pioneiro em enfrentar a miséria com a construção de unidades habitacionais em larga escala. Nessa época foram construídos edifícios como o Karl-Marx-Hof, inaugurado em 1930. A escala do edifício — mais de um quilômetro de extensão — faz dele um marco arquitetônico, e também histórico.
Artigo Relacionado
Urbanismo sob perspectiva de gênero: Eva Kail e o concurso de projetos para VienaOutros países tiveram uma vivência parecida. As primeiras experiências de habitação de interesse social na Europa Ocidental datam no início do século XX, mas foi após a Segunda Guerra Mundial que o Poder Público fez do investimento em moradia um esforço em larga escala. A destruição causada pelos bombardeios, somada às altas taxas de natalidade das décadas posteriores, exigiu a construção de casas e apartamentos em ritmo acelerado.
A partir da década de 1970, o investimento em habitação começou a perder espaço na agenda dos governos europeus e a construção de habitação social diminuiu. Em muitos países esse estoque de moradia foi vendido para os moradores ou até mesmo para empresas imobiliárias.
Segundo Justin Kadi, Viena não adotou totalmente essas mudanças e optou por alternativas para contorná-las. As seguintes características tornam a cidade um caso atípico: o percentual do setor imobiliário destinado à habitação social não diminuiu ao longo das décadas; poucas unidades foram vendidas; novas unidades continuaram a ser produzidas em quantidade significativa; e a política habitacional continuou a atender uma parcela grande da população, não só os mais pobres.
Quem produz moradia?
Justin Kadi explica que não há uma definição única para o que é habitação social. O termo pode designar moradias que são fornecidas por governos ou organizações sem fins lucrativos, moradias que dependem de subsídios, moradias que adotam critérios sociais para selecionar os moradores ou simplesmente moradias cujo aluguel está abaixo do preço de mercado.
Em Viena, a maior parte da habitação social é alugada a preços abaixo do mercado, embora haja casos em que os moradores têm a possibilidade de comprar o imóvel. Essas unidades são construídas diretamente pelo governo municipal (council housing) ou por entes privados em um modelo de lucro limitado (limited-profit). Nesse último caso, o incorporador recebe subsídios para a construção e deve obedecer limites máximos de lucro e exigências de qualidade arquitetônica.
A forma mais comum de subsídio para o modelo limited-profit são empréstimos bancários de baixo custo. Os incorporadores competem por esses empréstimos e eles são dados a quem apresentar o melhor projeto. A maior parte dos subsídios vem dos pagamentos de empréstimos antigos. Também há regras que direcionam parte do lucro das incorporações para a manutenção dos edifícios e a construção de novas unidades.
Entre 2012 e 2018, mais de 60% das unidades foram construídas pelo sistema de limited-profit. O sucesso desse esquema de financiamento levou o governo municipal a paralisar a construção de habitação social com recursos próprios (council housing) em 2004.
É importante notar que os aluguéis no setor privado são, em média, 31% mais caros do que no setor limited-profit os preços de mercado. No entanto, chegam a ser 60% mais caros do que no setor council housing, em parte porque os edifícios construídos pelo município são mais antigos. Em 2015 o governo municipal decidiu retomar a construção de moradia, mas a quantidade anunciada (4 mil unidades até 2025) é insuficiente para manter uma participação relevante do setor.
Isso é preocupante em uma cidade que sofre com o envelhecimento da população ativa, com a consequente queda na arrecadação tributária e a redução da quantidade de moradores por unidade. O setor de council housing precisa ser retomado, mas enfrenta desafios como a dificuldade de adquirir terrenos bem localizados. Uma possível saída seria focar as moradias produzidas pelo próprio município no atendimento à população de baixa renda.
Além disso, o mercado privado da capital austríaca também tem uma capacidade fora do comum de produzir moradia. Segundo Michael Lewyn, Viena produz anualmente mais que o dobro de unidades habitacionais que Houston, nos EUA, e cerca de dez vezes mais que Manhattan, que tem uma população semelhante. O ritmo da construção civil também contribui para manter o preço dos imóveis sob controle.
Afinal, o que podemos aprender com Viena?
A política habitacional de Viena difere não só de outras cidades europeias, como também de outros municípios da Áustria. Por isso, a primeira lição é que a política habitacional deve ser definida por quem conhece a realidade local, ou seja, os governos municipais. O problema é que, na prática, isso não é tão simples.
Considerando os mais de 5 mil municípios brasileiros, é fácil perceber que a maioria deles não tem um especialista em política habitacional no quadro de servidores. Muitos não têm recursos para contratar uma consultoria externa, ou não enxergam essa necessidade. Além disso, a construção de moradias envolve um volume muito grande de recursos, e deixar as decisões no nível municipal favorece o desvio ou a má aplicação das verbas.
Ainda assim, é melhor que o governo federal oriente os prefeitos, colocando à sua disposição uma equipe de especialistas, e fiscalize a destinação dos recursos através de seus órgãos de controle. Outro ponto importante é que, na maioria dos casos, como o próprio caso de Viena, o município depende de verbas do governo federal para executar sua política de moradia. Portanto, é importante que o governo federal se comprometa com a continuidade da política habitacional, independente de ciclos eleitorais e mudanças de orientação política.
Outra lição é que a produção constante de moradia é necessária para que outras políticas não percam sua efetividade. Um exemplo clássico é o auxílio-aluguel. Distribuir esse auxílio costuma ser mais barato do que construir e manter edifícios inteiros. Em uma cidade onde a produção de moradia é contínua, esses auxílios são uma oportunidade de atender uma boa quantidade de pessoas sem que o governo comprometa uma parte grande do orçamento.
O problema é quando os auxílios são aplicados em uma cidade onde a construção de moradia não consegue acompanhar a demanda por habitação. Isso pode acontecer quando a produção de moradia é limitada por regras urbanísticas que prejudicam o aproveitamento do solo ou encarecem a construção civil. Se os auxílios forem aplicados nesta situação, teremos pessoas com mais recursos competindo pelo mesmo estoque de habitação. O resultado será um aumento no preço dos imóveis, tornando-os ainda mais inacessíveis para a população.
A última lição talvez seja a mais difícil. O Poder Público enfrenta um dilema entre focar a política habitacional na camada mais pobre da população ou atender também a classe média. Dar prioridade aos mais pobres significa um uso mais justo dos recursos públicos, que vêm de impostos pagos por toda a população. Mas também há complicações nessa escolha.
Pensando agora no caso do Brasil, uma política habitacional que atenda a diferentes faixas de renda pode contribuir para diminuir a inadimplência e dar mais viabilidade econômica aos projetos. No caso de conjuntos habitacionais de grande porte, a mistura de rendas é fundamental para que o lugar não se torne um gueto.
Também é fundamental que esses conjuntos incluam espaços para comércio e serviços, como padarias, costureiras, salões de beleza, oficinas, etc… Nesse caso, a mistura de rendas aproxima os consumidores dos prestadores de serviços. Nos últimos anos, os programas Minha Casa, Minha Vida e Casa Verde e Amarela abriram essa possibilidade ao preverem as categorias de Habitação de Interesse Social (HIS) e Habitação de Mercado Popular (HMP).
Há ainda a própria dificuldade de saber ao certo a renda dos beneficiários do programa. Não há checagem de renda para obter uma habitação social em Viena, o que significa que muitas famílias de classe média têm acesso a moradias subsidiadas. A justificativa oficial é que checar a renda dos moradores é um processo custoso, burocrático e que levanta questões de privacidade. Essa é uma questão polêmica que volta e meia aparece na política da cidade.
Em comparação com o Brasil, Viena tem menos desigualdade de renda e um orçamento para habitação mais alto. Por isso, o foco nos mais pobres talvez seja uma questão mais urgente na realidade brasileira. Certamente os recursos disponíveis em países desenvolvidos são muito maiores, o que impossibilita que nosso país aplique literalmente as mesmas políticas. Mas de qualquer forma, é um caso interessante de se conhecer, e pode inspirar algumas políticas em cidades brasileiras.
Via Caos Planejado