Há alguns dias, num belo domingo de sol em pleno inverno, minha esposa e eu resolvemos levar nossos dois filhos pequenos para conhecerem o Parque Villa-Lobos, no extremo oeste da cidade de São Paulo, já quase na divisa com Osasco.
Não é um parque a que costumamos ir com frequência hoje em dia; mas é, sem dúvida, um local que faz parte da nossa memória afetiva. Ela cresceu em Cotia; eu, em Osasco. Ambas as cidades ficam na parte oeste da Região Metropolitana de São Paulo e o Parque talvez fosse o principal espaço público relativamente próximo das nossas casas durante nossa infância e juventude. Temos inclusive algumas fotos de lá no começo do nosso namoro, em 2013, à toa, ora estirados num amplo gramado verde, ora abraçados embaixo de uma árvore florida.
Após muito tempo sem ir àquele Parque, agora com dois filhos pequenos, a primeira coisa que fizemos ao chegar foi procurar aquele gramado e aquela árvore das fotos, que ficavam ali bem perto da entrada principal, se não nos falha a memória. Mas não os encontramos…
Atravessando o portão principal, depois de passarmos por um boulevard agora repleto de food trucks, logo nos deparamos com um grupo de pessoas dançando uma coreografia ao som de uma música muito, muito alta, em um espaço patrocinado por uma empresa privada.
À medida que caminhamos para o outro lado, a música pop da academia foi pouco a pouco dando lugar a um dos grandes clássicos do Patati Patatá, o que rapidamente chamou a atenção do meu filho mais velho, de três anos de idade, que nos puxou naquela direção.
A música vinha de um espaço repleto de grandes e coloridos brinquedos infláveis, nos quais era cobrada entrada por alguns minutos de diversão para os pequenos. Pouco mais de uma hora depois — e algumas dezenas de reais mais pobres —, conseguimos enfim retomar nossa busca, muitas vezes interrompida, porém, por ambulantes vendendo brinquedos de plástico e bexigas de super-heróis e outros personagens infantis, um verdadeiro jardim de tentações aos impulsos consumistas das crianças.
Caminhando mais um pouco, a trilha sonora do Patati Patatá deu lugar então a uma música ao vivo vinda de um festival gastronômico, o Taste São Paulo Festival, realizado em um espaço dentro do parque — e que também cobrava pela entrada, assim como a exposição Marvel Vingadores S.T.A.T.I.O.N., que ocupava outro espaço por ali.
“A solução pro nosso povo eu vou dá / Negócio bom assim ninguém nunca viu / Tá tudo pronto aqui, é só vim pegar / A solução é alugar o Brasil / Nós não vamo paga nada / Nós não vamo paga nada / É tudo free!”, cantava o Raul Seixas na minha cabeça. É tudo free, Raul? Que nada!
E nada também daquele idílico gramado das fotos do início do nosso namoro, que, concluímos, deve ter sido escondido por alguma daquelas muitas e barulhentas novas atrações surgidas após a recente concessão do parque para a iniciativa privada…
Quem acompanha meus artigos no Caos Planejado já deve ter percebido que estou muito longe de fazer o tipo fundamentalista que condena modelos de privatização, concessão ou qualquer tipo de parceria público-privada. Muito pelo contrário!
Tendo trabalhado a maior parte da minha vida profissional no setor privado e atuado nos últimos anos na administração municipal, tive a oportunidade de conhecer de perto os aspectos positivos e os desafios enfrentados por cada um desses setores.
No setor público, a restrição orçamentária, a burocracia e a infinidade de problemas da cidade fazem com que determinados equipamentos públicos muitas vezes sofram com falta de investimentos e zeladoria. No setor privado, por sua vez, a lucratividade é fundamental para a manutenção de um negócio. É da necessidade de constantes investimentos públicos e da possibilidade de se gerar renda para o setor privado que surge a oportunidade de parceria na gestão de determinados equipamentos.
Nos últimos anos, observamos uma verdadeira onda de concessões de equipamentos e espaços públicos para gestão e exploração da iniciativa privada na cidade de São Paulo. É o caso, por exemplo, dos parques municipais Ibirapuera e Trianon; dos parques estaduais Villa-Lobos e Água Branca; do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, mais conhecido como Pacaembu; e do Vale do Anhangabaú.
Um dos casos que tem tudo para dar certo, no meu entender, é o do Pacaembu: o estádio, que estava praticamente abandonado, sem grandes eventos e palco de cada vez menos jogos de futebol, foi concedido para uma concessionária privadaque está promovendo uma ambiciosa reforma, a qual, além da restauração do bem, deve proporcionar novos e múltiplos usos para o equipamento, incluindo restaurantes, bares, hotel, galeria de arte, centros de eventos, praças e boulevares.
É claro que, no caso de um estádio, as formas de exploração comercial são mais óbvias pelo simples fato de o equipamento já contar com “catracas”. No caso dos parques e demais espaços públicos onde o acesso é livre, por sua vez, a geração de renda tende a se dar principalmente através de publicidade e implantação esporádica de “catracas”, com a locação de espaços para eventos particulares, por exemplo. O desafio, nestes casos, é equacionar os interesses públicos e privados — e este equacionamento não é nada óbvio, envolvendo aspectos muitas vezes subjetivos relacionados à percepção dos frequentadores (Qual o limite aceitável de publicidade, por exemplo?).
O Parque Villa-Lobos é um caso em que certos limites parecem ter sido ultrapassados. Afinal, o espaço, que já contava com elevada frequência de público, especialmente aos finais de semana, foi transformado em um verdadeiro shopping center, perdendo características que são fundamentais neste tipo de equipamento. Um parque é um local de lazer, entretenimento e práticas esportivas, é verdade, mas também — e primordialmente — de contemplação da natureza, conforme nos lembra a arquiteta e urbanista Claudia Cahali em matéria da Folha que analisa a expansão da publicidade no principal parque de São Paulo, o Ibirapuera.
Nas grandes cidades, em particular, os parques, como espaços de contemplação, desempenham um importante papel não somente para o clima e o meio ambiente, mas também para a saúde pública, visto que muitos estudos mostram que o contato com a natureza traz benefícios para a saúde. Tanto que em países como o Canadá e a Inglaterra já vêm até sendo adotada prescrição de natureza aos pacientes no combate a males como ansiedade, depressão e pressão arterial elevada — no Villa-Lobos, porém, é bem provável que a grande quantidade de estímulos visuais, sonoros e opções de consumo resultem, ao contrário, em mais ansiedade e depressão.
O Parque do Ibirapuera, especialmente quando comparado ao Villa-Lobos, mesmo após a concessão e o aumento da publicidade ainda pode ser considerado um verdadeiro oásis em meio ao caos de São Paulo. Colabora para isto o tamanho do Parque, que é maior, bem mais arborizado do que o Villa-Lobos e ainda conta com um belo lago. Por mais que o aumento da exposição de marcas e da oferta de food trucks, por exemplo, seja passível de críticas, a concessão ao menos trouxe uma nítida melhora da zeladoria, conforme reconhece a maioria dos frequentadores.
Resolvi escrever este artigo a respeito das transformações no Parque ao perceber que a impressão negativa que tive naquele domingo não era só minha. Na mesma semana em que visitei o Villa-Lobos, o advogado e professor de Direito Ambiental Guilherme José Purvin de Figueiredo publicou um artigo em que propõe um “tour fotográfico no espaço, agora capturado pelo setor privado”, mostrando “suas catracas e a publicidade selvagem enquanto outras áreas ‘não rentáveis’ estão deterioradas”.
De fato, não parece fazer sentido uma concessão privada que explora comercialmente um espaço público muito bem localizado, que já contava com uma elevada frequência de público, mas que, além de descaracterizar o espaço, não se mostra capaz de resolver antigos problemas relacionados à zeladoria ou mesmo à falta de árvores — em um domingo ensolarado como aquele foi difícil encontrar no Parque espaços arborizados e agradáveis para se refugiar embaixo de uma boa sombra.
O caso do Parque Villa-Lobos, porém, não é o único da cidade no qual certos aspectos da concessão para a iniciativa privada são problemáticos. Outro exemplo é o do Vale do Anhangabaú, que foi analisado recentemente pelo doutor em urbanismo Mauro Calliari em sua coluna na Folha.
Após uma longa reforma de mais de cem milhões de reais, paga pelos cofres públicos, a administração do espaço foi cedida para a iniciativa privada, que gera renda e tenta lucrar principalmente através da realização de grandes shows, festivais e festas privadas no local.
O show da banda “Florence + The Machine”, uma das minhas favoritas, realizado em junho naquele cenário rico em arquitetura, histórico, único, deve, sem dúvida, ter sido incrível. Para realização de shows como aquele, contudo, todo o entorno do Vale é cercado por grades e tapumes antes e após os eventos, quando o público fica impedido de acessar o espaço — segundo reportagem da Folha, até o início de maio o espaço já tinha ficado fechado para o público por mais de cem dias desde a sua concessão para a iniciativa privada, em dezembro de 2021.
Fosse só isto e já teríamos um baita problema — até porque a cidade já conta com diversos espaços privados para a realização de shows, festas e festivais; por que, então, ceder um espaço público para este fim?
Entretanto, a despeito da “privatização” de um dos espaços públicos mais icônicos da cidade por longos períodos, ainda nada de significativo foi observado em relação às contrapartidas esperadas com a concessão: faltam segurança, wi-fi, banheiros, os térreos dos prédios no entorno seguem vazios, bem como os quiosques onde estavam previstos pequenos comércios, fazendo com que o uso cotidiano do Vale do Anhangabaú continue bem abaixo do desejado e esperado com a custosa reforma.
Diante das dificuldades enfrentadas muitas vezes pelo setor público na gestão de equipamentos, concessões para a iniciativa privada podem sim ser uma boa maneira de garantir investimentos e manutenção de parques e espaços públicos de maneira geral, com possibilidade de economia de despesas e incremento de receita para a administração municipal ou estadual. O Parque do Ibirapuera me parece um bom exemplo disto.
Vale lembrar também, porém, que concessões não são o único nem necessariamente o melhor modelo de parceria com o setor privado. Em artigo publicado no Caos Planejado, André Sette e Guilherme Pereira citam os exemplos do Central Park, em Nova York, gerido por uma fundação sem fins lucrativos, mantida por doações; do The Royal Parks, entidade filantrópica que administra vários parques em Londres, incluindo o Hyde Park; e do Parque Burle Marx, em São Paulo, que é mantido pela Fundação Aron Birmann desde 1995.
Os casos das concessões do Parque Villa-Lobos e do Vale do Anhangabaú, em particular, mostram que é preciso tomar cuidado com os detalhes contratuais relacionados às concessões, com o risco para a população de descaracterização ou mesmo “privatização” dos espaços
O setor privado sem dúvida pode contribuir e muito na construção e manutenção de espaços públicos agradáveis e de qualidade na cidade. E também lucrar com isto, o que é legítimo. O interesse público e o direito à cidade, contudo, deveriam sempre prevalecer.
Via Caos Planejado.