Está em andamento a atualização do Plano Diretor de Porto Alegre. Muito tem se falado do futuro da cidade, mas o que podemos aprender com o passado para promover mais dinamicidade, caminhabilidade e gerar maior qualidade de vida para os cidadãos? Afinal, uma cidade mais agradável retem e atrai talentos, gerando inovação e riqueza. Neste artigo, faço uma retrospectiva dos momentos mais marcantes da evolução urbana de Porto Alegre, dividindo-os em quatro grandes períodos.
O primeiro período vai do surgimento do núcleo urbano até o final da Guerra dos Farrapos (1845). Porto Alegre teve seu crescimento inicialmente delimitado por suas condicionantes naturais, o Lago Guaíba e a topografia acentuada, tendo seu ponto alto no centro da península (ver imagem Elevações período 01), e pelas muralhas de defesa construídas.
O início do povoado se concentrou na margem Norte do Guaíba, tendo este como seu limite (que posteriormente foi ultrapassado por diversos aterros). Lá se desenvolveu a atividade comercial e portuária, motores econômicos da cidade de então. Com edificações baixas e geminadas, Porto Alegre se configurou em um traçado xadrez, como as cidades espanholas, mas seguiu predominantemente o modelo das cidades portuguesas, ao se adaptar à topografia.
Suas principais ruas se localizavam no sentido longitudinal da península — as atuais Rua dos Andradas, Rua Riachuelo e Rua Duque de Caxias, enquanto as vias transversais eram tratadas como becos estreitos e íngremes. No topo da colina, junto a Rua Duque de Caxias e a Praça da Matriz, foram implantadas as atividades administrativas e religiosas, assim como as residências daqueles ligados ao poder.
Para proteção do povoado, foi construída uma muralha, circundando a península onde hoje encontramos o Viaduto da Conceição, o Hospital Santa Casa, a Avenida João Pessoa e a Rua da República. Esse traçado pode ser visto no mapa do período 01. Após o fim dos conflitos da Guerra dos Farrapos, essa barreira foi demolida, dando início ao segundo período, o de expansão.
O segundo momento representa a expansão da cidade, ultrapassando suas barreiras tanto por terra quanto por água. Após a demolição da muralha, a população começou a habitar áreas mais distantes, os antigos arraiais, que eram ligados ao Centro por estradas que posteriormente se tornaram vias urbanas radiais, como a Av. João Pessoa, Av. Protásio Alves e Av. Bento Gonçalves. Nesse período foi realizado o primeiro aterro, junto à margem Norte para ampliação do porto, que rompeu com a barreira natural representada pelo Lago Guaíba. Com o rápido desenvolvimento, Porto Alegre passou a abrigar construções mais sofisticadas, como o Mercado Público e o Teatro São Pedro.
Após a proclamação da República (1889), se inicia o terceiro período, que é marcado por profundas mudanças sociais e, consequentemente, no espaço urbano. Grande parte da sociedade rural passou a ser urbana, a classe média se dilatou e as indústrias se deslocaram para a zona norte. Apesar do desenvolvimento econômico e cultural, a cidade ainda apresentava aspectos coloniais e infraestrutura deficiente, situação que não satisfazia os líderes políticos da época. Os governantes, então, promoveram a modernização da cidade, inspirados pela grande reforma urbana de Paris de Haussmann e pelas ideias positivistas — corrente filosófica vinda da França, que defendia o progresso por meio da ordem (originando os dizeres da bandeira brasileira).
Foi desenvolvido o primeiro Plano Diretor de Porto Alegre, o Plano Geral de Melhoramentos de 1914, que visava ordenar o espaço público a partir de grandes obras viárias, além da criação de espaços verdes para contemplação. Entre as vias estavam as atuais avenidas Júlio de Castilhos, Farrapos e Borges de Medeiros, com o Viaduto Otávio Rocha. Este Viaduto simboliza a última barreira rompida na configuração inicial de Porto Alegre, a topografia. Apesar de ser uma obra viária, o Viaduto “da Borges” reserva espaço ao pedestre, com amplas calçadas e escadarias que dão acesso a espaços de comércio.
Também nessa época, foram construídos edifícios ícones, que simbolizavam o progresso econômico da cidade. Entre eles estavam o MARGS, o Memorial do Rio Grande do Sul, o Paço Municipal e o Palácio Piratini. Para a construção do novo porto, atual Cais Mauá, foi realizado o segundo aterro na margem Norte, este de maiores proporções.
Durante o quarto período, a partir de 1943, ocorre a criação de um novo plano diretor influenciado por ideias modernistas, que modificou mais uma vez o espaço urbano, com o objetivo de ordená-lo. Este plano regulamentou a construção no lote privado, zoneando a cidade por usos e definindo limites de altura, de área construída e recuos. Uma extensa região na Zona Norte foi classificada como industrial, o 4º distrito, que mais tarde sofreria com o abandono e estagnação do território, devido à migração das indústrias para outras cidades e por não ser permitida a mudança de uso para substituição das edificações desocupadas.
A escala das propostas para o espaço público muda, planejando avenidas expressas e viadutos, sem dar atenção ao pedestre, como os Viadutos da Conceição, junto à rodoviária, e José Loureiro da Silva, na continuação da nostálgica Rua Duque de Caxias. É resgatada a ideia da criação de vias perimetrais para desafogar o trânsito das radiais existentes. Outros aterros são executados, surgindo uma nova área verde na margem Oeste junto ao Guaíba.
Na década de 70, mais de 120 anos após a demolição da muralha de defesa da cidade, foi construído um muro junto ao Cais Mauá, este com o objetivo de proteger o Centro Histórico de enchentes, como a que ocorreu em 1941 e gerou grande trauma na população. Surge então uma nova barreira. O muro restringe o contato com o Lago Guaíba, e Porto Alegre “vira as costas” para a margem que originou seu desenvolvimento. Muito se discute sobre a eficácia do muro e se é válido mantê-lo apesar das desvantagens urbanísticas que ele acarreta.
Atualmente, está em tramitação a concessão do Cais Mauá para a iniciativa privada, visando a revitalização da área. No Masterplan proposto, parte do polêmico muro será retirado, substituindo o sistema de contenção das águas. No dia 27 de setembro de 2023, após um grande volume de chuvas que atingiu a região, o Lago Guaíba chegou ao nível mais alto desde a enchente de 1941 e as comportas do muro foram fechadas, reacendendo a discussão da pertinência da estrutura. Aos seus defensores, será possível que em 2023 o único sistema de contenção eficaz seja este, que gera uma barreira visual e prejudica a ambiência num local de tanta importância histórica?
Apesar de alguns avanços, como projetos paisagísticos de valorização da orla e legislações de incentivo para reativar o desenvolvimento do Centro Histórico e do 4º Distrito, considero que ainda estejamos no quarto período, não tendo escrito mais um capítulo nessa história. A razão dessa afirmação está nas obras viárias que ainda seguem princípios de valorização do uso do carro em detrimento do pedestre.
São exemplos o Viaduto São Jorge, sobre a Avenida Bento Gonçalves e a trincheira da Avenida Anita Garibaldi, obras de grande investimento público com o objetivo de desafogar o trânsito, mas que incentivam uma dependência cada vez maior ao uso de automóveis particulares. Torço para que este próximo Plano Diretor dê protagonismo ao espaço público caminhável e vise a mobilidade através do transporte coletivo de qualidade, promovendo uma nova transição no modo de lidar com a cidade.
Tem curiosidade de explorar mais a Evolução Urbana de Porto Alegre? Assista a aula livre que ministrei para o Responsive Cities Institute:
Via Caos Planejado.