Ao longo das últimas décadas, as cidades vêm sofrendo profundas e rápidas transformações, as quais vêm impactando muito também a infância. Enquanto as cidades estão cada vez maiores e mais complexas, vem crescendo uma população infantil cuja qualidade de vida urbana deteriorou-se notavelmente. As crianças perderam seus espaços na cidade e encontram-se, cada vez mais, em espaços fechados e institucionalizados.
O imaginário da cidade enquanto perigosa vem se fortalecendo, estabelecendo uma relação cíclica: com menos crianças nas ruas, estas são dominadas por carros que circulam em alta velocidade, o que dificulta o uso do espaço, o que por sua vez incita o aumento da violência, o que afasta as crianças — e todos — das ruas. A baixa frequência de crianças brincando nas ruas e demais áreas públicas dos centros urbanos também faz com que este segmento seja pouco visível aos olhos dos adultos e das políticas públicas.
Assim, as cidades raramente são espaços acolhedores para as crianças, não lhes permitindo uma vivência urbana cidadã. Seja pelo pouco acesso e permissão para estar na rua e nos espaços públicos ou pela falta de qualidade e segurança destes, as crianças vão, cada vez mais, perdendo sua autonomia de movimento e, por consequência, seu direito à cidade, à paisagem e ao brincar.
Ao mesmo tempo, em nossa sociedade, as crianças são constantemente pensadas como alguém que ainda virá a ser, um sujeito em formação, um ser incompleto que se define em função de algo que é “evoluído”, “completo” – o adulto. Elas, muitas vezes, não são consideradas pelo que são hoje, mas por aquilo que virão a ser, de modo que seu ser hoje acaba limitado a uma prolongação dos pais, dos educadores e de outros adultos que a rodeiam. Muitas vezes encaradas como um mero recipiente onde se deposita informação visando um futuro produto — o adulto —, as crianças são pouco reconhecidas enquanto atores sociais no presente.
Essas são percepções notáveis primeiro pelo que revelam, mas também porque chamam atenção ao fato, muitas vezes negligenciado, de que as crianças são indiscutivelmente parte da sociedade e do mundo e é possível e urgente reconhecê-las como tal, colocando-as em seu lugar presente. Valorizar seu lugar enquanto agente social é ponto de partida para construir um diálogo mais cuidadoso e efetivo das crianças com a cidade.
É com isto em vista que o CoCriança surge, propondo devolver a voz e a vez das crianças, escutando-as, dialogando e integrando-as no processo de pensar e construir as cidades. Atuando desde 2017, o CoCriança é uma Organização da Sociedade Civil que une arquitetura e educação em processos participativos de transformação urbana e sensibilização junto a comunidades, com especial ênfase na infância. Com uma metodologia própria e já reconhecida em diversas instâncias, trabalhamos, junto e a partir das infâncias, a capacidade de transformar o meio em que vivemos em cooperação com os outros.
Quando falamos em projetos participativos, ressaltamos a importância do processo para além do resultado final projetual. Um processo participativo cria novas funções e sentidos, transformando a maneira com que os agentes podem se apropriar e se relacionar com o espaço. Vivenciar esse processo traz a dimensão da experiência para o projeto que, como coloca o professor Jorge Larrosa Bondía (2002), é aquilo que nos passa, nos toca e, ao nos passar, nos forma e nos transforma. Assim, uma das potências da participação é a possibilidade de incorporar sentido ao resultado final.
Em seu ideal, os processos participativos dão voz aos diferentes atores envolvidos, assumindo a dimensão política de redistribuição do poder. Devem valorizar a construção coletiva, colaborativa, realizada por todos – que possuem, dentro do processo, a mesma importância –, considerando e respeitando cada um individualmente sob uma perspectiva sensível, humana, valorizando as múltiplas vozes. Certamente há diferentes saberes em um processo participativo, e não se deve desvalorizar o saber técnico do arquiteto, mas o processo participativo estabelece-se enquanto um processo de criação conjunta, no qual pessoas com diferentes atribuições, talentos e vivências trabalham para a busca de uma solução (BOUCINHAS, 2005).
Portanto, quando falamos em participação das crianças, estamos falando da validação de suas vozes, em suas singularidades. Não existe apenas uma criança ou uma infância. Elas são múltiplas, plurais e, ao mesmo tempo, singulares. Da mesma forma, as relações com os espaços e entre as pessoas — inclusive as crianças — são variadas e construídas a partir do contexto em que estão.
A participação é, portanto, a possibilidade de afirmar as muitas formas de perceber, habitar e criar a cidade, que partem de experiências diversas. É entender que a arquitetura não pode estagnar-se em uma única forma de dizer e produzir os espaços. É ampliar o debate e a produção que dele decorre para muitos atores. É validar as crianças como grupo que ocupa as cidades e é, ao mesmo tempo, garantir que suas experiências e formas de existir não sejam unificadas.
Nesse sentido, escutas e momentos de participação com crianças constituem uma pauta urgente para adentrar e compreender seus universos e poder refletir seus desejos e necessidades no espaço urbano, reconhecendo-as como cidadãs.
Como exemplo de intervenção urbana feita a partir de um processo participativo com crianças, trazemos o projeto da Rua das Crianças, realizado no âmbito do Prototype City São Paulo. O Prototype City é um programa de intercâmbio em arquitetura e urbanismo centrado na colaboração internacional para testar novas iniciativas em cidades ao redor do mundo. Iniciativa do British Council, em parceria com o IABsp e apoio do Instituto Alana, o Prototype City São Paulo foi um projeto participativo com os estudantes de 9º ano da EMEF Virgílio de Mello Franco, no Jardim Pantanal, São Paulo, resultando na transformação da Rua Erva do Sereno, onde estão situadas 4 escolas públicas, em uma “Rua das Crianças”. O CoCriança ficou responsável pelo desenvolvimento do processo, recorte comunitário, seleção de áreas de intervenção e elaboração do projeto, contando com a colaboração do escritório Intervention Architecture e do laboratório Co/LAB, da Universidade de Birmingham, ambos do Reino Unido. O processo também se inseriu nas atividades do Plano de Bairro do Jardim Pantanal, visando gerar um modelo de processo de construção colaborativa de uma intervenção no espaço público.
O processo foi iniciado em fevereiro de 2022 e, ao longo de 6 meses, a equipe de arquitetos e educadores atuou junto aos alunos para intervir no entorno da escola a fim de torná-lo mais brincante, inclusivo e acolhedor para todos, ativando o espaço público e o convívio comunitário.
O desenvolvimento do projeto de intervenção foi feito seguindo o Percurso Cocriança, metodologia própria de projeto participativo que alia oficinas e codesign em um processo de cocriação. Assim, todo o trabalho se estruturou a partir da escuta ativa dos adolescentes do 9º ano da escola, de modo que fossem co-autores das propostas de intervenção. Para isso, foram realizadas 8 oficinas com os alunos da escola, que partiram de uma investigação e diagnóstico, passando pela cocriação do espaço até sua materialização.
A partir da escuta e sistematização dos desejos e opiniões das crianças participantes, a equipe desenvolveu diretrizes para o projeto conceitual, que foi apresentado e validado com os alunos, para posterior desenvolvimento do projeto executivo.
"Acho que a gente foi bem ouvido porque, primeiro, elas começaram a incentivar a nossa criatividade para ver o que a gente queria e depois elas foram mostrando que das nossas ideias poderia surgir algo. E ficou muito bom porque eu não esperava nada desse projeto, mas acabou saindo”. — aluna da EMEF Virgílio de Mello Franco que participou do processo.
O projeto desenvolvido partiu da necessidade de evidenciar a presença das crianças e adolescentes que frequentam as quatro instituições de ensino e competem em segurança e conforto com um tráfego intenso de carros e motos. Para isso, foram estabelecidas duas diretrizes:
- Ampliar a atenção e a segurança para a circulação de crianças e jovens;
- Melhorar a experiência de crianças e jovens na rua, criando sombreamento e áreas de estar onde possam ocupar na entrada e saída das escolas.
A Rua das Crianças, como foi chamada a intervenção, foi pensada colorida, com placas de sinalização em postes e pintura em toda a calçada, com o objetivo captar a atenção dos motoristas e, assim, impactar na velocidade com que eles passavam pela rua, iniciando um processo de revisão da velocidade permitida, de sinalização e lombadas pela CET, a partir de estratégias de urbanismo tático.
Foram também projetadas diversas estruturas de cobertura a fim de garantir espaços sombreados para os alunos e seus familiares, possibilitando que possam permanecer de forma confortável no espaço.
Também foram incluídos na intervenção mobiliários lúdicos que permitissem usos diversos, validando o lugar dos alunos na rua. Além de contribuir para enriquecer o uso do espaço, eles também refletiam diferentes ações lúdicas selecionadas pelos alunos nas oficinas. Suas faces possuem partes lisas, coloridas e ásperas, com variações de alturas, formatos e inclinações. Troncos de eucalipto foram posicionados nos mobiliários, e neles foram instaladas cordas em diferentes formas: em rede, esticada e com franjas. Os usos observados após a construção foram diversos: palco, pista de skate, obstáculos de bicicleta, local para deitar, sentar, comer, pular entre as estruturas, correr utilizando as formas como obstáculos, entre outros.
Prezando pela limpeza e pelo contato com elementos naturais, aspectos trazidos pelos alunos em suas colocações, o projeto previu lixeiras e grandes vasos de plantas nos quais foram plantadas árvores frutíferas para o usufruto das escolas. Junto aos vasos e embaixo da cobertura, foram construídos bancos, criando pequenas praças de estar.
O projeto da Rua das Crianças foi selecionado para compor a 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo com um painel interativo e uma maquete. Buscamos uma representação lúdica que dialogasse com o público em geral, marcando a potência da participação e do olhar das crianças em intervenções urbanas.
Com a intervenção inaugurada em julho de 2022 e mantida até hoje pela comunidade do entorno, podemos dizer que o processo do Prototype City São Paulo foi uma experiência muito potente de cocriação internacional e de protagonismo dos jovens na transformação dos espaços que ocupam. O Percurso CoCriança estimulou que as crianças tivessem papel ativo na construção de um ambiente mais acolhedor e inclusivo para todos, ao mesmo tempo em que desenvolviam habilidades de comunicação e pensamento crítico.
"É interessante esse negócio de fazer, né? Esse espaço para a gente, meio que uma pracinha, uma área de lazer para as pessoas… é bom passar aqui e ver que deu certo. Eu, no começo, achei que não iria dar certo pelo fato de que estava demorando. Eu não estava acreditando mas, no final, foi bom ver que deu tudo certo assim, sabe?" — aluna da EMEF Virgílio de Mello Franco que participou do processo.
Além disso, destaca-se como as crianças foram capazes de projetar um espaço para além de seus desejos e necessidades individuais. Exemplo disso é o fato de que, mais de 7 meses após a inauguração do espaço na Rua Erva do Sereno, nos deparamos com algumas fotos de um grupo de skatistas no Instagram. As fotos tinham como palco a intervenção cocriada com as crianças da EMEF Virgílio de Mello Franco e estavam no perfil @flanantes_, um “coletivo inspirado na arte de flanar e ler a cidade, torná-la um objeto de investigação, descoberta e apropriação”. De autoria do fotógrafo Moisés da Silva (@contantinefotografia), a sequência de fotografias mostra um grupo de skatistas realizando manobras nos elementos geométricos de concreto da intervenção, havendo também uma foto de um dos skatistas deitado na rede colocada entre traves de madeira. Foi emocionante ver esses registros e confirmar que aquele espaço, idealizado pelas crianças, está de fato proporcionando um uso múltiplo, por diversos públicos, de diversas idades.
Por fim, é importante destacar que, ainda que o Prototype City São Paulo represente uma experiência de sucesso no sentido de cocriar espaços públicos junto e a partir da escuta e do diálogo com as crianças, ele representa apenas um exemplo do que gostaríamos que fosse uma prática recorrente no planejamento urbano. É importante marcar que o fato de as crianças terem sido ouvidas neste projeto de 6 meses não significa que as crianças estão sendo ouvidas nos assuntos que lhe dizem respeito. Ainda há muito trabalho pela frente. É preciso criar mecanismos e espaços permanentes de participação das infâncias e juventudes, para garantir o exercício de seus direitos à cidade, à participação, ao hoje.
"A gente realmente foi ouvido, né? E esse tipo de projeto em que a gente ouve a população e atende as necessidades dela é muito importante! Então, seria muito legal se isso fosse feito em mais lugares." — aluno da EMEF Virgílio de Mello Franco que participou do processo.
Referência bibliográfica
BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Rev. Bras. Educ. [online]. 2002, n.19, pp.20-28. ISSN 1413-2478.