Os Países Baixos, chamados coloquialmente de Holanda, são sinônimo de suas bicicletas, elemento icônico do panorama urbano da cidade. A integração dos ciclistas com veículos automotores muitas vezes surpreende os visitantes.
A ligação dos holandeses com as bicicletas é visível nas estatísticas: em 2021, 84% da população da Holanda utilizava bicicletas diariamente. Em Amsterdam, esse número chega a cerca de 63% da população, demonstrando uma forte preferência pelo veículo. Em contrapartida, apenas 7% dos brasileiros optam pela bicicleta como meio de transporte principal.
Na cidade de São Paulo, os números permanecem modestos. Apesar de possuir um total de 1,6 milhão de bicicletas em 2021, apenas 9 mil eram utilizadas diariamente, o que representa uma média de apenas 0,5% do total de uso.
A devoção às bicicletas parece estar enraizada na cultura, como se sempre tivesse sido assim, e as ciclovias e a infraestrutura urbana parecem ter sido planejadas para conferir a elas um papel central no transporte holandês.
No entanto, essa integração nem sempre foi uma realidade. Surge então a questão: como a Holanda evoluiu para se tornar tão propícia e com uma infraestrutura tão bem elaborada para acomodar as bicicletas no cotidiano?
A topografia das cidades holandesas proporciona um ambiente propício ao uso de bicicletas. Com terreno plano, suas cidades possuem um sistema de drenagem avançado, tendo como pilar os renomados canais. No entanto, não é apenas por esses fatores que o país acolhe tão bem as bicicletas.
Desde o seu advento no século XIX, a bicicleta foi prontamente recebida nos Países Baixos. Poderíamos até afirmar que as décadas de 1920 e 1930 representaram a era dourada das bicicletas na sua capital, superando qualquer outro meio de transporte.
Contudo, a situação mudou após a Segunda Guerra Mundial. No período pós-guerra, os carros estavam em alta. Além de serem vistos como veículos futuristas e um investimento promissor para a economia das cidades, eles se tornaram mais baratos.
Com a melhora da economia dos Países Baixos, as classes médias holandesas passaram a ter acesso ao automóvel. O aumento no número de carros saturou as ruas da capital, Amsterdam. Esse influxo também levou a um aumento nos acidentes de trânsito. Seguindo o pensamento da época, o país tentou resolver os problemas dando mais espaço aos automóveis, alargando as pistas e construindo viadutos de concreto.
Entre as décadas de 1950 e 60, o governo holandês iniciou a busca por especialistas que pudessem contribuir para a modernização de Amsterdam e oferecer ideias para um planejamento urbano mais adequado à presença dos carros.
Urbanistas e engenheiros frequentemente olhavam para os Estados Unidos como referência de um país que havia se adaptado bem ao uso de automóveis. Foi então que David Jokinen, um planejador urbano americano, foi contratado para conceber um plano urbanístico que se encaixasse na cidade.
Entre suas propostas estavam a construção de estradas e rodovias que atravessariam toda a cidade, o preenchimento dos famosos canais com concreto e a remodelação dos bairros tradicionais da classe trabalhadora.
Para um grupo de jovens, o problema era bastante evidente. O Provo, um grupo anarquista dedicado a promover uma cidade mais saudável e sustentável, tornou-se a voz da resistência aos carros.As “bicicletas brancas” foram uma das iniciativas pioneiras do Provo em Amsterdam, como afirma Matteo Guarnaccia no livro “PROVOS: Amsterdam e o Nascimento da Contracultura”.
Inicialmente, a ideia de desafiar a indústria automobilística parecia ousada e até um tanto utópica. Em uma época em que os carros dominavam, sugerir uma mudança tão significativa na paisagem urbana parecia um retrocesso impensável.
A proposta deles era simples: restringir o acesso de automóveis ao centro de Amsterdam, permitindo apenas o tráfego de bicicletas e pedestres. Estabelecer um limite máximo para carros e tornar os transportes públicos totalmente elétricos também estava nos planos.
Além disso, eles almejavam que as bicicletas brancas fossem um meio de transporte gratuito, disponíveis para qualquer pessoa interessada. Para eles, as bicicletas representavam o oposto dos carros, vistos como um meio de transporte perigoso, poluente e até meio brega.
Além das iniciativas dos Provos, como ficaram conhecidos os integrantes do movimento, os acidentes de trânsito continuavam a ocorrer a uma velocidade alarmante, resultando na perda de vidas infantis a caminho da escola. Isso reverberava de forma negativa por toda a população.
Em 1970, após mais de 400 mortes infantis causadas por acidentes automobilísticos, a população saiu às ruas em protesto contra essa triste realidade, em um movimento que ficou conhecido como “STOP DE KINDERMOORD”, ou seja, “PAREM COM O ASSASSINATO DE CRIANÇAS”. Esse evento trouxe ainda mais destaque à voz dos Provos, que persistiam na luta contra o domínio dos carros em prol das bicicletas.
Além disso, em 1973, durante a Guerra do Yom Kippur, em Israel, o preço do petróleo praticamente quadruplicou, devido à taxação da exportação do combustível. Todos esses elementos se uniram para que o governo revisse sua perspectiva em relação à mobilidade urbana.
No ano de 1978, o governo implementou o Plano de Circulação de Tráfego, uma iniciativa que transformou Amsterdam em uma cidade mais acolhedora para os ciclistas. O espaço para veículos de grande porte foi reduzido e realocado para a criação de ciclovias e zonas de convívio para pedestres. Isso melhorou a infraestrutura para o tráfego de bicicletas em toda a cidade.
No entanto, foi na década de 80 que os Países Baixos implementaram medidas significativas no trânsito. Isso incluiu a introdução de novas sinalizações, a expansão da rede de ciclovias, a imposição de limites rigorosos de velocidade, a instalação de lombadas, o aumento do preço dos estacionamentos nos centros e a redução do tamanho das vias, tudo com o objetivo de desencorajar a condução em alta velocidade. Ao mesmo tempo, cidades como Haia e Tilburg foram pioneiras ao adotar ciclovias pintadas de vermelho para garantir alta visibilidade, uma abordagem notável para a época.
O sucesso dessa iniciativa foi seguido por Delft, que estabeleceu uma extensa rede de ciclovias. Além disso, políticas de estacionamento de bicicletas foram implementadas, não apenas como medida preventiva contra roubo e vandalismo, mas também para oferecer instalações acessíveis e bem localizadas, muitas vezes a preços acessíveis ou mesmo gratuitamente. Essas medidas culminaram na criação do Bicycle Master Plan em 1990, promovendo o uso da bicicleta e uma cidade mais sustentável.
As diretrizes estabelecidas focaram na melhoria da acessibilidade e segurança viária, especialmente para crianças, bem como na otimização dos espaços urbanos. A restrição do acesso de automóveis em determinadas ruas impulsionou alternativas como bicicletas, transporte público eficiente e compartilhamento de caronas.
Essa abordagem reflete a política de mobilidade holandesa, que, apesar de buscar uma maior acessibilidade em todos os modos de transporte, destaca a bicicleta como um componente essencial na busca por uma melhor qualidade de vida na cidade.
Atualmente, o termo “Woonerf” ou “Ruas Vivas” é a síntese do compromisso que os Países Baixos assumiram em favor dos ciclistas e pedestres. Essa abordagem vai além da legislação; trata-se de uma transformação cultural que permeia cada canto do país.
É um convite a uma convivência mais harmoniosa entre os diferentes modos de transporte, priorizando o ser humano. Não apenas fortalecendo a segurança nas ruas, mas também promovendo um ambiente urbano mais saudável e inclusivo. A educação desempenha um papel fundamental nesse processo, capacitando a população a compreender e valorizar essa coexistência equilibrada.
Via Caos Planejado.