Mais do que paisagens inertes ou cenários inanimados, as cidades constituem-se enquanto personagens ativas e significativas para a construção de muitas narrativas televisivas. Seja em séries ou em telenovelas, mais do que apenas um local onde as tramas se desenrolam, os ambientes urbanos desempenham um papel fundamental para os desdobramentos dos enredos, suas criações, diretrizes e contextos. Mas se, por um lado, as cidades e suas culturas urbanas contribuem para a composição de diversas tramas das telinhas, por outro lado, os programas televisivos também podem ajudar a moldar um certo imaginário idealizado sobre esses espaços urbanos, que geram expectativas irrealistas e reiteram uma série de estereótipos sobre as cidades representadas.
A televisão desempenha um papel crucial na construção de imaginários coletivos sobre cidades e suas culturas urbanas. Através de muitos programas, o telespectador é transportado para o cotidiano pulsante de metrópoles globais ou para as ruas tranquilas de cidades provincianas, experimentando narrativas que moldam percepções e leituras da opinião pública. A representação televisiva incorpora elementos culturais, sociais, geográficos e históricos que podem contribuir para a criação de uma determinada imagem urbana, que pode ser elaborada a partir de diversas lentes, desde os tons mais críticos à idealizações e romantizações.
A arquitetura, os pontos turísticos e a atmosfera cultural tornam-se parte integrante das narrativas televisivas, interferindo no desenvolvimento dos personagens, nas escolhas e até mesmo no tom emocional de muitas histórias. Muitas vezes, os programas escolhem destacar marcos icônicos e características que contribuem para a criação de uma certa identidade visual específica associada àquela área urbana, influenciando a percepção pública sobre ela. Paris é romantizada com seus cafés pitorescos e a Torre Eiffel, e é frequentemente apresentada como um cenário romântico e encantador, que intensifica as tramas centradas em relacionamentos e emoções. Já Nova York costuma ser associada aos arranha-céus e ao estilo de vida agitado, assumindo o papel de uma cidade impessoal e desafiadora, o que constantemente se reflete nos obstáculos que os personagens precisam superar em suas jornadas.
Friends, a icônica série de televisão ambientada em Nova York, apresenta um retrato descontraído da vida urbana na metrópole e desempenhou um papel importante na formação de uma imagem cativante da cidade. Ao longo de suas dez temporadas, a série não apenas explorou os laços de amizade entre os personagens principais, mas também incorporou Nova York como um personagem vital na trama. O bloco de apartamentos no Greenwich Village e o café Central Perk, locações emblemáticas, ainda se tornaram símbolos nova-iorquinos. Mas embora seja uma das séries mais queridas e populares de todos os tempos, Friends também recebe críticas por oferecer uma representação homogeneizada de Nova York, mostrando uma realidade que destoa da experiência de grande parte de seus habitantes, dado ao alto custo de vida e espaços limitados.
Já em Sex and the City, a mesma Nova York é apresentada como uma metrópole cosmopolita, elegante, irresistível e ainda mais elitizada. As aventuras amorosas e profissionais das quatro amigas protagonistas se misturam aos cenários de Manhattan, seus restaurantes chiques, escritórios e lojas de grife, projetando uma imagem glamorosa e vibrante da cidade. Ao explorar a cena da alta sociedade nova-iorquina, a série transcendeu a mera ambientação urbana para ajudar a reforçar a ideia de Nova York como o epicentro da moda, cultura e sofisticação. E embora tenha sido elogiada por sua abordagem ousada sobre algumas questões femininas, ainda em finais da década de 1990, a série também é acusada de apresentar uma visão exageradamente elitista da vida urbana de Nova York.
Emily in Paris, lançada em 2020, emergiu como uma série que tentou moldar uma narrativa encantadora e idealizada da cidade das luzes. Com suas deslumbrantes locações em Montmartre, o Rio Sena e a Torre Eiffel, a trama explora a moda, a cultura e os dilemas vividos por Emily, projetando uma visão glamurosa e romântica da capital francesa. Nesse sentido, a série recebeu diversas críticas por sua abordagem superficial e estilizada da cidade que lhe dá nome, pois ao invés de explorar a riqueza cultural e a complexidade da sociedade parisiense, muitas vezes recorreu a estereótipos fáceis e clichês, falhando em oferecer uma representação mais genuína e contextualizada da complexidade e diversidade que caracterizam a experiência parisiense real.
No Brasil, país culturalmente marcado pelas telenovelas, é possível notar como esses programas desempenharam um papel significativo na construção de narrativas idealizadas e na formação de imagens estereotipadas acerca de algumas cidades, especialmente do Rio de Janeiro. Segundo a pesquisadora Beatriz Jaguaribe, "nas telenovelas cariocas, imagens como as do Pão de Açúcar, das praias de Ipanema e Copacabana, do Jardim Botânico, entre outras locações, compõem um cardápio visual aprazível que oferece uma pausa cênica na trama e um deleite estético para o telespectador". A maneira como as novelas frequentemente retratavam a capital fluminense contribuíram para a construção de uma imagem romântica e exótica da cidade, criando tramas que, muitas vezes, estavam distantes de suas dinâmicas reais.
Mais do que qualquer outro meio, a televisão, sobretudo por intermédio da telenovela, galvanizou públicos espectadores e ofereceu mitologias da urbanidade carioca. [...] Atiçam o turismo e a especulação imobiliária por meio da vendagem da cidade, mostrando seus cartões-postais mais significativos. Consagram bairros de prestígio e também sugerem novos roteiros baseados nas locações onde se desenrolam seus enredos. — Beatriz Jaguaribe
Assim, as narrativas televisivas têm grande impacto na percepção pública acerca de algumas cidades, construindo imaginários acerca delas e de suas culturas urbanas. Embora essa representação seja muitas vezes simplificada e estilizada para fins narrativos, ela desempenha um papel crucial na formação da imagem pública de cidades ao redor do mundo. O espectador, por sua vez, deve manter uma visão crítica e reconhecer as nuances por trás das representações televisivas, a fim de cultivar uma compreensão mais rica e autêntica das complexidades que são, feliz e inevitavelmente, inerentes a qualquer vida urbana.
Referência bibliográfica
JAGUARIBE, Beatriz. A cidade midiática: telenovelas e mundo urbano. In: GORELIK, Adrián; PEIXOTO, Fernanda Arêas (Org). Cidades sul-americanas como arenas culturais. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.