Dizem que não importa o que acontece, mas como você vê. Também dizem que a literatura não reproduz a realidade, mas sim cria outra. Tudo começa com uma ideia. Só uma ideia. Imagem e imaginação andam juntas, isso significa que elas constituem o mecanismo para percepção, pensamento, linguagem e memória do homem. E em essência, arquitetura nada mais é do que organizar ideias. A pergunta é: como organizar as ideias? Ou ainda, como você vê as coisas? Existe mesmo percepção sem contexto social e cultural? A resposta curta é não. A resposta longa envolve antropologia interpretativa, um pouco de teoria e muita, muita crítica.
Antropologia interpretativa porque estamos falando de análises culturais e queremos tirar grandes conclusões a partir de fatos pequenos, mas densamente conectados. Como Geertz (2008) disse ao citar Max Weber, o homem é um ser que está amarrado às teias de significados que ele mesmo teceu. Ele assume a cultura como sendo essas teias e sua análise não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. Geertz (2008) defende um conceito semiótico de cultura, no qual há um padrão de significados que se transmite historicamente e que não deve ser entendido como um sistema fechado, mas como um objeto a ser interpretado continuamente. Em bom português: nada permanece sempre o mesmo. Pelo menos um pouco, as coisas mudam. É assim que funciona com a arquitetura, especialmente aquela reconhecida como patrimônio cultural. Por exemplo, o El Ateneo Grand Splend é uma livraria em Buenos Aires, além de ponto turístico, mas foi construído nas primeiras décadas do século XX para ser um museu. Como possibilitar essa mudança é justamente o papel dos arquitetos e a principal ferramenta para isso é muita teoria.
Teoria porque todos os dias nós estamos diante de edificações. Mas paramos para pensar o quê significam aquelas formas? O que está por trás do desenho da arquitetura? Precisamos investigar o que está além da matéria, estudando os significados das formas e a relevância deles em relação aos problemas e dilemas contemporâneos. Precisamos também entender os valores culturais que essas formas possuem para que sejamos capazes de selecionar e definir critérios para intervir nas edificações que possuem esses valores. É isso que a teoria faz. E isso importa muito, não só porque sem essas edificações a sociedade não existiria como conhecemos, mas, sobretudo, porque essas edificações influenciam muito a maneira como vivemos - individual e coletivamente. Na teoria arquitetônica, estudamos os por quês e exploramos as possibilidades de entendimento das formas e como estas se relacionam com a cultura. Significa, por exemplo, que a teoria pode fornecer argumentos sólidos para saber como intervir em casos de perda de importantes obras arquitetônicas, como a torre da Catedral de Notre Dame, parcialmente destruída em um incêndio em 2019.
E muita, muita crítica porque precisamos observar a realidade para interpretar e analisar os acontecimentos dentro de categorias definidas. Marina Waisman (2013, p. 31) dizia que a crítica “refere-se ao acontecer diário da arquitetura: à identificação de novas ideias, à avaliação e interpretação de novas obras ou propostas, ao descobrimento de novas tendências”. O que ela quer dizer é que a crítica emite juízos de valor interpretativos e explicativos. A crítica da arquitetura, portanto, por meio da escrita, interpreta e explica não só as formas arquitetônicas, mas os conceitos que estão por traz daquelas aparências, inserindo-os em um julgamento de valor a partir da experiência do profissional. A crítica, diferente da teoria, é pessoal. Depende de quem vê – ou de quem escreve.
A linguagem escrita pode não apenas expressar conceitos, mas pode influenciar a maneira com que olhamos e percebemos tanto a arte quanto as formas arquitetônicas. Para o bem e para o mal, a escrita faz coisas acontecerem. Que o diga Louis Leroy, o crítico responsável por dar nome ao “impressionismo”, movimento artístico considerado pioneiro na arte moderna. Leroy fez uma critica ao quadro de Monet intitulado Impressão: Nascer do sole, quando se referiu ao grupo de pintores que buscavam romper com a tradição acadêmica e representar a realidade tal como eles viam, os chamou de impressionistas. Era 1874 e Leroy escrevia para o jornal francês Le Charivari, com importante divulgação e notório reconhecimento. Nada disso foi capaz de fazer com que ele acertasse no seu julgamento crítico, embora de certa maneira, ele tenha acertado na sua colocação. A crítica escrita por ele foi infeliz, mas deu identidade e fama ao impressionismo. Malditos críticos.. Ops, benditos críticos!
Vamos ver três casos em que as palavras mudaram a percepção arquitetônica e, com isso, criaram novas realidades e diferentes caminhos para se pensar a arquitetura.
De Architectura
Começaremos de um começo. Não o da arquitetura, mas o da escrita da arquitetura. Se as pedras das ruínas gregas e romanas não falam, que bom que tivemos Marcos Vitrúvio Polião para escrever sobre elas. Um homem romano que viveu no século I a.C e que escreveu o primeiro Tratado de Arquitetura de origem grego-romana que temos conhecimento, influenciando com suas palavras o pensamento arquitetônico do quattrocento italiano. Embora existam indícios de que seus textos já eram conhecidos séculos antes da sua suposta descoberta, seu tratado chamado De Architectura se popularizou mesmo no século XV. Era 1416, quando seus manuscritos ganharam fama e, em 1490, Leonardo da Vinci criava o Homem Vitruviano. Verdade seja dita, se a arquitetura renascentista já tinha nascido — ela só cresceu e amadureceu com as palavras de Vitrúvio. Assim, quando Constantinopla e o domínio dos turcos caíram em 1453 e a Idade média teve fim, os conceitos vitruvianos de utilistas, firmirtas e venustas já haviam conquistado o mundo. Nascia a idade moderna.
Villa Savoye
E para falar em moderno, na arquitetura, nada mais simbólico que a Villa Savoye. Uma casa que nunca foi só uma casa. Segundo seus primeiros moradores, era um lugar difícil de habitar, embora isso tenha sido quase irrelevante para a crítica, que a colocou em um lugar de destaque na história da arquitetura. Erguida em 1931 e projetada por Le Corbusier, a casa é a síntese prática dos pontos para nova arquitetura do século XX: pilotis, janelas em fita, o terraço e o conceito de fachada e planta livres. Se ela não era boa de morar, era boa de comunicar. Até hoje é um símbolo. Ainda que a arquitetura seja, desde os primórdios, abrigo e utilidade, ela também pode ser — em alguns casos — arte. E pode representar mais do que servir. No caso da Villa Savoye, desde seus primeiros anos de existência, sua capacidade de comunicar o modernismo fez com que muita crítica positiva fosse escrita sobre ela. E as palavras ressoaram nas imagens e imaginação de todos os arquitetos que também estavam ansiosos para novas configurações que a arquitetura poderia ter. Um pouco escondida e inserida em uma área de campo distante 30 km de Paris, foram as palavras que colocaram a Villa Savoye na história da arquitetura mundial. E foram essas palavras que contribuíram para mudar o pensamento arquitetônico.
Jane Jacobs
Palavras criam também ideias. Jane Jacobs escreveu um livro inteiro para falar as suas e também as levou as ruas para protestar em favor de uma cidade cujas ideias favorecessem o morar e não o símbolo da modernidade. Morte e Vida nas Grandes Cidades foi publicado em 1961, quando o movimento moderno vinha perdendo força e seus problemas sociais se tornaram mais visíveis, como o zoneamento de setores. O objetivo da escrita de Jacobs era mostrar que os bairros são organismos vivos, que a cidade é feita para pessoas e não para carros e que nem tudo tem que ser milimetricamente racional. Não importa o que um lugar quer dizer, importa como você vive nesse lugar. Jane Jacobs nos lembra de que a experiência e as sensações importam.
Voltamos ao inicio, isto é, importa o que você vê. Mas, o que você vê varia de acordo com a sua visão de mundo. E escrever tem um papel determinante nessa visão. A escrita muda o mundo porque é capaz de sintetizar pensamentos difusos e mostrar a realidade. Entendemos o que está acontecendo para poder olhar para o futuro. Criticar e escrever sobre o presente no intuito de vislumbrar novos caminhos futuros é muito mais do que abstrações ou modelos utópicos. Escrever sobre arquitetura significa entender teoria e crítica como uma prática direcionada à realidade, contribuindo seja no projeto de nova arquitetura, seja nas intervenções sobre as preexistências históricas.
E é por isso que a escrita da arquitetura muda a própria arquitetura. Porque influencia no pensamento arquitetônico. Se a literatura cria uma nova realidade, teoria e crítica da arquitetura criam novas ideias e tornam visíveis novas possibilidades de criação. Arquitetura é construção, mas também pode ser arte – já dizia, ainda no século XIX, o escritor Johann Wolfgang von Goethe. E de todas as frases clichês do mundo artístico, uma que lembra a relação de retroalimentação entre escrita e criação foi dita por Paul Klee sobre a arte: ela não reproduz o visível, ela torna visível. Depende de quem vê. Ou melhor, depende de quando você vê. O tempo é uma espiral e, pelo menos um pouco, tudo muda. A escrita é também um meio de ver novas coisas que antes não eram vistas.
Que bom que Vitrúvio ensinou que a utilidade e a construção andam juntas, mas que também é necessário um pouco de beleza. Mesmo hoje sabendo-se que o conceito de beleza é indefinível, se sabe que ele existe. Só não é estático e nem permanente, pois está na espiral do tempo: pelo menos um pouco, tudo muda. O que achamos bonito tem a ver com nosso contexto cultural. Que bom que a escrita nos fez gostar da Villa Savoye, mesmo ela tendo, de certa maneira, falhado em sua função de abrigo. E que bom que nos fizeram ver que é importante ter escola perto de casa, e casa perto do mercado, e mercado perto de hospital. Tudo junto e misturado em um balé urbano. Um agradecimento, portanto, à Jane Jacobs e suas palavras. Sem a diversidade de usos a vida seria um pouco mais chata (e impossível). E para todas essas percepções foi preciso não só tempo, mas muita coisa escrita.
Referências
- WAISMAN, Marina. O interior da história: historiografia arquitetônica para uso de Latino-americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013.
- GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. 1ed. Rio de Janeiro: 2008.