No Brasil, as festas populares costumam ter uma profunda ligação espacial, histórica e simbólica com os espaços públicos das cidades, proporcionando uma experiência única de ocupação, apropriação e reelaboração coletiva desses locais durante suas ocorrências. Esses eventos não apenas utilizam os espaços urbanos de maneiras diferenciadas de seus cotidianos, mas também constituem a paisagem cultural e social das cidades, lançando outros modos e possibilidades de apreendê-la. Ao apropriarem-se das ruas, em suas possibilidades e em seu sentido e entendimento mais amplo, elas as concedem outros usos, o que, muitas vezes, ainda transgridem suas atividades habituais.
Entre as diversas festividades, cenário que também inclui o tão conhecido carnaval brasileiro, podem ser mencionadas a Lavagem do Bonfim e a Festa de Iemanjá, em Salvador, o Círio de Nazaré, em Belém, e o Dia de São Jorge, no Rio de Janeiro, exemplos de festas populares que elaboram formas próprias de experiência do tempo, da circulação, dos afetos e dos gestos no espaço urbano. Segundo os pesquisadores Adrián Gorelik e Fernanda Peixoto, ao abordarmos a cidade enquanto um lugar de experimentação, um produto cultural em constante transformação, entende-se que a cultura urbana “permite uma compreensão mais complexa e integral tanto da cidade como da própria cultura”.
Em Salvador, cidade profundamente marcada pelo sincretismo dos ritos populares, o intenso calendário festivo dos primeiros meses do ano é uma tradição. Ocorrida no mês de janeiro, a Lavagem do Bonfim é uma das festas populares mais sagradas para a capital baiana. A procissão, que percorre cerca de oito quilômetros entre a Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia e a Colina Sagrada, onde está a Igreja do Bonfim, não é apenas um desfile religioso, mas uma manifestação que engloba as mais diversas camadas sociais e formas de expressão. Durante o trajeto, as ruas da Cidade Baixa são tomadas por milhares de participantes que, vistos do alto, formam um lindo tapete branco no espaço urbano, que se torna uma extensão do sagrado.
Outro evento emblemático soteropolitano é a Festa de Iemanjá, realizada no dia 2 de fevereiro. Nessa data, a praia do Rio Vermelho se torna um espaço de oferendas e rituais em homenagem à orixá rainha do mar. O espaço público da praia é transformado temporariamente em um local sagrado de devoção, desafiando a concepção usual de seu uso para o lazer. Durante a Festa de Iemanjá, a praia e seus arredores tornam-se um cenário onde a espiritualidade afro-brasileira se manifesta no espaço urbano, subvertendo, ainda que temporariamente, seu cotidiano e sua paisagem.
No Rio de Janeiro, o Dia de São Jorge, ou de Ogum, é celebrado em 23 de abril e a festa inicia com uma procissão que percorre as ruas do bairro de Quintino, culminando na igreja dedicada ao santo guerreiro. As ruas se tornam um palco para diversas expressões culturais, como shows de música, danças e feiras de artesanato. A cidade se apropria do espaço público de forma versátil, oferecendo não apenas um local para a devoção religiosa, mas também para a celebração da diversidade carioca. Essa interação entre o tradicional e o contemporâneo destaca a capacidade dessa festividade de não apenas ocupar, mas também enriquecer e reinventar o ambiente urbano do Rio de Janeiro, tornando-o um espaço de expressão cultural multifacetado.
Em Belém, ocorre o Círio de Nazaré, uma das maiores manifestações religiosas do Brasil, realizada em outubro. A procissão percorre 3,6 quilômetros, reunindo milhões de fiéis que acompanham a imagem de Nossa Senhora de Nazaré pelas ruas da cidade. O Círio converte o espaço público em uma arena de devoção coletiva, onde o trajeto da procissão não é apenas um percurso físico, mas um itinerário simbólico que conecta a devoção religiosa à história e à identidade da cidade. Durante o Círio, o espaço urbano torna-se não apenas um cenário para a devoção, mas um componente essencial na expressão da fé e na construção da identidade coletiva paraense.
Assim, além das transformações físicas dos espaços urbanos estabelecidas durante as festas populares, também é crucial ressaltar as relações de afeto e significado que as populações estabelecem com esses locais. As festividades se tornam momentos marcantes no calendário e na vida das cidades, fortalecendo memórias coletivas e laços comunitários, onde o espaço público transcende sua dimensão física para tornar-se um receptáculo de emoções, tradições e experiências compartilhadas. As festas populares brasileiras têm a capacidade de transformar os espaços urbanos em cenários de expressão cultural e espiritual, em que se destaca a relação íntima entre a população e esses espaços festivos, importantes na construção da identidade e coesão social das cidades brasileiras.